Mergulhando no pensamento de Gustavo Gutiérrez, em debate promovido pelo IHU, o teólogo apresenta a fundamentação de um fazer teológico que marcou o mundo a partir da América Latina
Gustavo Gutiérrez Merino é um senhor nascido em Lima, no Peru, que em 08-06-2023 completou 95 anos. Padre dominicano, ele é considerado o fundador da Teologia da Libertação. No entanto, segundo o teólogo Francisco de Aquino Júnior, Gutiérrez nunca quis fundar nada nem se tornar um sujeito célebre. O religioso esteve muito mais preocupado em auscultar e responder aos problemas do mundo, em especial da América Latina, segundo a experiência do Deus de Jesus Cristo. “Gutiérrez diz que no método da teologia, se ela quer elaborar um discurso respeitoso e consequente sobre Deus, o primeiro passo é a espiritualidade, é a fé, é a vida cristã”, aponta Aquino.
Juntamente com os teólogos Leonardo Boff e José Oscar Beozzo, Aquino participou de um debate sobre o pensamento teológico de Gutiérrez promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A videoconferência foi realizada na última quinta-feira, 27-07-2023, e está disponível no canal do IHU no YouTube.
Segundo Aquino, para compreender o pensar teológico de Gutiérrez, é preciso assumir que “a Teologia da Libertação, com todos os limites de qualquer teologia, é um esforço de dizer uma palavra sobre o Deus de Jesus no mundo em que vivemos. (...) Mas uma palavra que não quer ser apenas um conceito teórico. Ela quer ser uma palavra eficaz, como é a palavra de Deus”, completa.
Aliás, conceber uma teologia encarnada é realmente central neste dominicano quase centenário, pois ele se incomoda com a abstração que a ciência teológica vai assumindo. “A teologia progressivamente se torna um discurso muito abstrato, preocupado com o rigor conceitual, com o rigor da lógica e, cada vez mais, se afasta da vida concreta, a ponto de parecer um discurso que pouco tem a ver com a vida”, explica Aquino. Mas Gutiérrez se move no sentido contrário, pois acredita que “a teologia se alimenta de uma vida espiritual profunda. (...) Esta é a seiva que renova, que revigora a teologia e por aí Gustavo Gutiérrez vai abrindo com uma perspectiva de teologia”, acrescenta Aquino.
Ao longo de sua explanação, o teólogo também não se prende a conceitos e chama muito mais atenção para os movimentos do pensamento de Gutiérrez e, por isso, destacamos, abaixo, a transcrição dos principais pontos da fala de Aquino. Mas não pense que é uma defesa cega da Teologia da Libertação. “É muito importante nos darmos conta de que a Teologia da Libertação não é um discurso pronto e acabado e não se trata de absolutizar uma formulação, um livro, uma obra ou um autor, mas de levar adiante este exercício de refletir a espiritualidade, a fé, a vida cristã no mundo que nos toca viver hoje, com categorias novas, com perspectivas novas”, adverte Aquino.
Francisco de Aquino Júnior (Foto: CNBB)
Francisco de Aquino Júnior é formado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte – FAJE e em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. É mestre em Teologia pela FAJE, doutor em Teologia pela Westfälische Wilhelms Universität Münster, na Alemanha, e realizou pós-doutorado em Teologia na FAJE. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza – FCF e no PPG em Teologia da Universidade Católica de Pernambuco – Unicap.
Entre seus livros publicados mais recentemente como um dos organizadores, destacamos “Por uma Igreja sinodal: reflexões teológico-pastorais” (Paulinas, 2022), “Igreja em saída sinodal para as periferias: reflexões sobre a Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe” (Paulus, 2022) e “Pastoral urbana: novos caminhos para a Igreja na cidade” (Vozes, 2021).
Nesta conversa sobre Gustavo Gutiérrez, eu gostaria de chamar atenção para a compreensão de teologia que ele ajudou a elaborar a partir de sua experiência de vida, de sua formação na Europa. Num processo imenso de renovação da teologia, Gutiérrez ajudou a elaborar uma compreensão de teologia. Existem pensadores que têm uma capacidade de intuição e criatividade muito grande. Há outros que têm uma capacidade maior de aprofundamento das ideias. Mas Gutiérrez é daqueles pensadores criativos que conseguem captar, intuir, esboçar, elaborar e abrir uma perspectiva nova – já faz alguns anos que Leonardo Boff tinha chamado atenção para o fato de que uma das grandes contribuições de Gustavo Gutiérrez é ter aberto para a teologia uma perspectiva nova.
Este seu gênio criativo e inventivo é intuído e esboçado em seu famoso livro, que nomeou uma nova forma de fazer teologia mundo afora: Teologia da Libertação: perspectivas (Edições Loyola, 2000), publicada originalmente em 1971. Logo no primeiro capítulo, Gutiérrez retoma a história da teologia e diz que, nos primeiros séculos da Igreja, a teologia é marcada por uma vida espiritual. É uma teologia profundamente espiritual, mistagógica.
Para Aquino, toda a criatividade e inventividade de Gutiérrez está nesta obra | Foto: divulgação
No segundo milênio, sobretudo a partir do século XII, a teologia se constitui como um discurso de caráter científico de acordo com a compreensão de ciência que havia na época, a compreensão aristotélica de ciência que, na teologia, se consolida sobretudo a partir de Tomás de Aquino. Acontece que, depois, a teologia progressivamente se torna um discurso muito abstrato, preocupado com o rigor conceitual, com o rigor da lógica e, cada vez mais, se afasta, da vida concreta, a ponto de parecer um discurso que pouco tem a ver com a vida.
Na primeira metade do século XX, há um movimento de renovação da teologia e um destes esforços presentes na França, sobretudo, era de recuperar a unidade fundamental da teologia com a espiritualidade. Ou seja, de perceber que a teologia não é apenas uma abstração, um silogismo lógico e coerente, sem nada a ver com a vida. A teologia se alimenta de uma vida espiritual profunda, esta é a seiva que renova, que revigora a teologia e por aí Gustavo Gutiérrez abre uma perspectiva teológica.
Em livro clássico, Teologia da Libertação, ele lembra que esta teologia não é apenas uma teologia do genitivo, uma teologia que trata do tema da libertação. Mais do que um tema específico, é uma maneira nova de fazer teologia. E o que é esta maneira nova? É uma reflexão crítica da práxis à luz da palavra de Deus. É uma reflexão profundamente vinculada à práxis cristã. Ele chega a dizer que ela se constitui como um momento do processo através do qual o mundo é renovado, abrindo-se no protesto, na luta, na resistência ao dom do Reino de Deus. Neste sentido, Gustavo Gutiérrez insiste na relação intrínseca entre espiritualidade e teologia, ou com categorias muito fortes e muito dominantes na época, a relação teoria/práxis. E ele formula a questão de uma forma muito didática que ajudou a compreender e a expandir.
Ele diz que toda teologia é uma palavra sobre Deus. O grande problema, complementa, é como falar de Deus de uma forma que seja respeitosa para com o mistério divino e de uma forma que dê sentido e sabor à vida.
Assim, Gutiérrez diz que, para a Teologia da Libertação, primeiro é preciso contemplar a Deus e realizar sua vontade. É o que ele chama de ato primeiro. Gutiérrez usa várias expressões, como contemplação e ação, oração e compromisso. Não é uma coisa ou outra. Este primeiro momento tem a ver com a contemplação do mistério de Deus e a realização de seu desígnio. É oração e compromisso. É solidariedade e oração. É o que ele chama de vida cristã, de fé, de espiritualidade.
Ele afirma que só depois é possível elaborar, desenvolver uma reflexão que seja respeitosa para com o mistério de Deus e que tenha sentido e dê sabor à vida. É o que chama de ato segundo.
Por isso, considero que Gutiérrez formulou de uma maneira bem didática a Teologia da Libertação: ato primeiro e ato segundo. O ato primeiro é a vida cristã, é a fé, é a espiritualidade. Sempre com este duplo aspecto: a contemplação do mistério de Deus e a realização de seus desígnios. O ato segundo é a reflexão, é a teoria.
Portanto, o momento teórico supõe estar enraizado e nutrido constantemente do momento primeiro. É tão interessante porque ele chama este momento primeiro às vezes de vida cristã, às vezes de fé, às vezes de espiritualidade, e retoma aquela tradição e aquele movimento francês de busca da unidade entre a teologia e a espiritualidade. Ele faz uma afirmação que acho que é uma das mais criativas, das mais fecundas e ousadas acerca da relação intrínseca entre teologia e espiritualidade: “nossa espiritualidade é nossa metodologia”.
Com isso, ele explica que o primeiro passo para elaborar um discurso autêntico, respeitoso e consequente sobre Deus é a contemplação do mistério divino e a realização de sua vontade. O primeiro passo é a espiritualidade. Não é que a espiritualidade seja uma coisa anterior à teologia, porque sem espiritualidade não há teologia. Método, no grego, significa caminho. É o caminho que se percorre para uma determinada meta. Então, Gutiérrez diz que o método da teologia, se ela quer elaborar um discurso respeitoso e consequente sobre Deus, o primeiro passo é a espiritualidade, é a fé, é a vida cristã.
Neste sentido, ele insiste na inseparabilidade entre espiritualidade e teologia. A teologia não é apenas uma especulação, não é um silogismo teórico, não é simplesmente arqueologia teológica, ou seja, um estudo dos conceitos e teorias que se desenvolveram ao longo da história. A teologia é uma reflexão sobre a experiência de Deus hoje.
Mesmo na teologia quando estudamos a Escritura, quando estudamos a própria história da teologia, o Magistério da Igreja, estudamos tudo isso em função de algo mais fundamental. Do contrário, a teologia seria teoria de teoria. Seria uma espécie de arqueologia conceitual ou teórica. O que é próprio da teologia é explicitar, dar visibilidade à experiência fundamental de Deus.
Outro aspecto importante na reflexão de Gustavo Gutiérrez é que a experiência de Deus e a reflexão sobre a experiência de Deus não são feitas nas nuvens. Elas são sempre feitas num contexto concreto e este contexto repercute no modo de vida e no modo de reflexão.
Também de uma forma didática, Gutiérrez ajuda a compreender um aspecto fundamental na Teologia da Libertação: “na Europa, a pergunta fundamental hoje é como fazer teologia no mundo que se tornou adulto, num mundo secular”. Ele pega até uma pergunta de Bonhoeffer na prisão, que diz: “como fazer teologia no mundo que se tornou adulto?” A teologia moderna é um esforço gigantesco de pensar a fé, refletir sobre a fé num mundo moderno, como as categorias modernas, como as formas modernas de pensar o mundo. E a Europa produziu uma teologia muito progressista e importante. Leonardo Boff e José Oscar Beozzo beberam desta fonte, Gutiérrez também. Eu sou mais novo, mas também bebi e ainda bebo desta fonte.
No entanto, Gutiérrez diz que na América Latina os problemas fundamentais não são a secularização, a modernidade. Os problemas fundamentais na América Latina são a fome, a pobreza, a morte. Então, nossa pergunta é outra.
Se a pergunta fundamental do primeiro mundo é “como fazer teologia no mundo que se tornou adulto, um mundo moderno e formular um discurso razoável e compreensível?”, para nós a pergunta fundamental é: “como fazer teologia a partir do sofrimento humano?”
Esta ideia está no título de um livro de Gutiérrez, Falar de Deus a partir do sofrimento do inocente (Vozes, 1987). Como fazer teologia a partir do sofrimento humano? Para Gutiérrez, isto dá identidade à teologia. A teologia europeia tem como interlocutor fundamental o homem moderno, o homem adulto. A Teologia da Libertação tem como interlocutor fundamental o não humano, aquele a quem são negadas as condições mais básicas e fundamentais da vida.
Obra de Gutiérrez que se questiona: como fazer teologia a partir do sofrimento humano? | Foto: divulgação
Por isso, a pergunta também é distinta. Como fazer teologia à parte do sofrimento humano? Como dizer às não pessoas que elas são amadas por Deus? No fundo, temos duas intuições fundamentais que depois Gutiérrez resume de uma forma fantástica em um outro livro, “A força histórica dos pobres” (Vozes, 1981), uma coletânea de artigos.
Livro que reúne artigos de Gustavo Gutiérrez | Foto: divulgação
Ele diz assim: “na Teologia da Libertação há duas intuições centrais que foram as primeiras, cronologicamente, que continuam constituindo sua coluna vertebral. Estamos nos referindo ao método teológico e a perspectiva do pobre”. Então, há duas intuições fundamentais na teologia de Gustavo Gutiérrez. Por um lado, está a compreensão da teologia como ato segundo em relação ao ato primeiro, que é a vida cristã, a fé, a práxis, enquanto a teologia como ato segundo é a reflexão. Ou seja, primeiro é preciso contemplar a Deus e realizar seu desígnio. Oração e compromisso, contemplação e ação. Só depois podemos fazer uma reflexão consequente.
No fundo, está aqui em jogo o problema da relação entre teoria e prática. E há aqui um ambiente cultural de Modernidade em que se destaca o caráter mais ativo do ser humano, no pensamento, pois o pensamento não é apenas um reflexo da realidade, mas o ser humano interfere no pensamento. Tem aqui toda uma sensibilidade com relação à capacidade do ser humano de agir, de transformar a realidade.
Isso também repercute na teologia. Temos aqui um ambiente que ajuda a compreender e ressaltar esta relação intrínseca com a teoria da teologia enquanto teoria em relação com a fé, a espiritualidade enquanto prática. Para Gutiérrez, do ponto de vista do método, é esta relação intrínseca entre teoria e prática, ato primeiro e ato segundo. Mas isso não basta para dar uma Teologia da Libertação. Se fosse, toda e Europa teria dado nisso.
Temos um elemento fundamental que é a práxis. Aqui, na América Latina, ela está ligada fundamentalmente à libertação de todas as formas de dominação. Há uma perspectiva fundamental que Gutiérrez chama de “a perspectiva do pobre”. E o pobre não é no sentido estritamente econômico. Ele já falava, naquela época, dos pobres, das culturas oprimidas, da mulher duplamente explorada, dos pobres marginalizados, das classes, das raças, há já uma compreensão bastante ampla de pobre que não se reduz ao econômico, ainda que dê destaque a ele.
Gutiérrez insistiu muito que o pobre não é apenas o necessitado. O pobre é também uma forma de vida, é uma cultura. Neste pobre há resistência, criatividade, festa, amizade, religião, fé, ou seja, o mundo do pobre não se reduz à negação de direito ou à carência. Há um âmbito de resistência, de criatividade que, do ponto de vista da fé, vai ser muito desenvolvido por um teólogo que faleceu recentemente, importante na América Latina, que é Victor Codina.
Codina, como Gutiérrez, percebe como, a partir de baixo, a partir dos porões da humanidade, o espírito de Deus vai movimentando, vai resistindo, vai recriando a vida praticamente a partir do nada. Neste sentido, Gustavo Gutiérrez deu uma contribuição enorme à Igreja da América Latina e ao mundo. Ele teve a intuição e a capacidade de esboçar de uma forma didática, abrangente e provocativa uma perspectiva nova de fazer teologia que nasce aqui, mas que provoca a teologia da Europa, que provoca o primeiro mundo e que é extremamente atual, no sentido de ajudar a perceber que a teologia não é apenas especulação, abstração, teoria de teoria.
Assim, o que está em jogo constante e permanentemente na teologia é a reflexão sobre a experiência de Deus. É a reflexão sobre a fé, sobre a espiritualidade e isto num sentido bastante amplo. Se levarmos a sério isso, veremos que a teologia é sempre contextual, que está sempre inserida porque a fé se vive sempre em contexto, e a reflexão sobre a fé também.
Neste sentido, é muito importante nos darmos conta de que a Teologia da Libertação não é um discurso pronto e acabado e não se trata de absolutizar uma formulação, um livro, uma obra ou um autor, mas de levar adiante este exercício de refletir a espiritualidade, a fé, a vida cristã no mundo que nos toca viver hoje, com categorias novas, com perspectivas novas. Perguntaram a Gutiérrez se ele escreveria Teologia da Libertação: perspectivas da mesma forma. E ele disse: “não, claro que não. A teologia é como uma carta de amor e eu não escreveria à minha amada hoje com as mesmas palavras e com o mesmo jeito que escreveria há 50 anos”.
Por isso, não se trata de absolutizar nenhuma elaboração teórica de uma época ou autor, mas de ser um esforço permanente, criativo, profético de viver a fé e pensar a fé numa reflexão que existe em função da própria fé. Isto para fecundar a fé, para que ela seja mais profunda, intensa, eficaz, ou seja, poder fazer fermentar o mundo com a força do Evangelho.
Trago estes elementos fundamentais da teologia de Gustavo Gutiérrez que vocês podem aprofundar nos livros dele que são extremamente atuais, como Teologia da Libertação: perspectivas, que é o primeiro. Depois, tem um livrinho que recolhe o texto que ele escreveu como tese de doutorado e que sintetiza suas publicações. O título é A verdade vos libertará: confronto (Edições Loyola, 2000).
Livro que sintetiza a tese de doutorado de Gutiérrez | Foto: divulgação
O primeiro capítulo é o texto que ele apresentou como tese doutoral, em que divide em três partes e dá um conceito de teologia. Primeira parte: “Aa Teologia da Libertação é uma linguagem sobre Deus”; “A partir do reverso da história”, segunda parte; “Para dar testemunho da ressurreição”, terceira parte. As três partes do texto já dão uma síntese da compreensão e da prática da teologia que ele fez.
Questionado por um dos espectadores, Telmo José Amaral de Figueiredo, sobre como os teólogos da libertação respondem aos questionamentos de Clodovis Boff, Aquino responde:
Saiba mais sobre os questionamentos de Clovis Boff aqui no texto de Faustino Teixeira.
Em primeiro lugar, naquele livrinho clássico “Como fazer Teologia da Libertação” (Vozes, 2011), de Leonardo Boff e Clodovis Boff, eles dizem de uma forma muito clara que toda teologia autêntica nasce de uma experiência profunda de Deus. Ou, como diz Gustavo Gutiérrez, no início de toda a reflexão teológica estão a fé, a vida cristã, a espiritualidade, o ato primeiro.
Obra de Leonardo e Clodovis Boff sobre a teologia da libertação | Foto: divulgação
E a Teologia da Libertação, como qualquer teologia, está enraizada numa profunda experiência de Deus vivida no meio dos pobres, da injustiça, ou, como aparece nesse livrinho de Leonardo e Clodovis, “a experiência de Deus no pobre”. Ou, como Gustavo Gutiérrez diz: “falar de Deus a partir dos inocentes, dos outros, dos cristos açoitados”.
Esta experiência espiritual, esta experiência de Deus na América Latina, tem sido tão intensa que foi capaz de fazer com que tanta gente pudesse dar a própria vida para que o amor de Deus se tornasse realidade como dom Óscar Romero e tantos outros.
Na semana passada, estivemos em Rondonópolis o 15º Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Foram mais de 1.500 pessoas de todos os cantos do Brasil, lideranças comunitárias, agentes de pastoral, padres, religiosos, bispos, um momento intenso de convivência fraterna, de oração e de reflexão sobre os desafios da realidade e sobre a missão de fazer com que o Evangelho de Jesus Cristo se faça realidade e se faça fonte de vida para todos. Por isso, a primeira coisa a dizer é que a Igreja da América Latina, sobre a qual a Teologia da Libertação procura refletir e teorizar, tem base fundamental na experiência do Deus de Jesus que nos leva ao esforço de viver como irmãos e de lutar para construir um mundo fraterno.
Um segundo aspecto que trago é que toda a teologia tem a marca do seu tempo, da sua cultura e de seu contexto. A primeira teologia cristã é o Novo Testamento, como chamamos. Ali, a reflexão sobre a fé foi escrita no contexto da cultura semítica. Ela tem uma forma mais narrativa, simbólica, descritiva e muito menos conceitual. Nos primeiros séculos do cristianismo, a Igreja presente na cultura helenística teve que buscar, pensar, expressar e dizer a fé com a linguagem própria daquela cultura, com aquela forma de pensar. Ela pode ser vista como a primeira grande inculturação do cristianismo e da teologia. E isso tem suas vantagens e limites.
A vantagem foi tornar possível viver a fé cristã na cultura greco-helenística. Agora, a cultura grega, a forma grega de pensar também tem muitos problemas, é uma forma de pensar dualista. Veja os conceitos de matéria e espírito, corpo e alma, sentidos e razão. Esta forma de pensar marcou profundamente o cristianismo e deixou traços de dualismo muito fortes ainda hoje na mentalidade popular e na forma de fazer teologia. Isso ocorre a tal ponto que o discurso teológico fica marcado pela forma grega de pensar, que certas imagens de Deus parecem mais com o motor imóvel de Aristóteles do que com o Deus de Israel e com o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Muitas vezes, as discussões sobre imanência e transcendência, natural e sobrenatural estão marcadas por uma certa filosofia dualista que separa e opõe matéria e espírito, corpo e alma, razão e sentido, imanência e transcendência. Nós nos inserimos numa tradição em que Deus se manifesta na história de um povo, se envolvendo na história de um povo, fazendo aliança com este povo e assumindo a causa dos últimos. “Eu vi, eu ouvi os lamentos e sofrimentos de meu povo e desci para libertá-los”.
Em Jesus Cristo, essa experiência chega ao extremo de ele se identificar com os últimos do mundo. “O que fizerem a um destes, a mim fizeram”. É muito importante nos darmos conta de que, às vezes, por trás de certas tensões, debates, críticas estão em jogo determinados pressupostos teóricos que damos por naturais, por evidente. Certas filosofias criam uma imagem de um Deus tão transcendente, tão distante que, no fim, não parece mais o Deus de Jesus que entra na história humana, que assume a própria história humana e que, a partir daí e a partir de baixo, se manifesta.
Por fim, é preciso dizer que nenhuma teologia é perfeita, está acaba ou é pronta. Costumo dizer nas aulas de teologia que a teologia fala do absoluto, mas nenhuma teologia é absoluta. E não é absoluta nem a teologia que o Clodovis faz, nem a que o Leonardo faz, que a o Beozzo faz, a que o Ratzinger fez, que Karl Rahner fez. Toda teologia tem seus limites e pode ser aprofundada, melhorada, corrigida. O fundamental não é canonizar e absolutizar nenhum conceito, nenhuma teoria.
O desafio fundamental é, no tempo que nos toca viver, poder crescer na intimidade com Deus que se vive a relação com o irmão. Não podemos perder esta perspectiva: a filiação divina se vive na fraternidade humana. O critério e a medida da comunhão com Deus passam pelos últimos deste mundo. Para herdar o Reino dos Céus é preciso se fazer próximo dos caídos à beira do caminho. O critério do juízo final é fazer ou não fazer pelos últimos.
Neste sentido, afirmo que estamos na melhor tradição de Jesus, a experiência de Deus nos pobres, a comunhão com Deus que nos compromete com a transformação do mundo, de viver como irmãos, viver um mundo mais justo e fraterno. O Deus em que cremos não é apenas uma ideia, um conceito abstrato, distante. O Deus em que cremos é o que criou todas as coisas, que entrou na história humana e assumiu a causa dos últimos.
Por isso, quem crê no Deus de Jesus nunca vai estar farto do humano, porque não há acesso a Deus que não seja mediado por sua obra criadora, de modo particular pelo ser humano e pelo ser humano massacrado e oprimido. Por isso, o caminho para Deus – e o Concílio Vaticano II já dizia – é o homem. E se formos mais fiéis à Bíblia, diremos que o caminho a Deus é pelos caídos à beira do caminho, os pobres.
A Teologia da Libertação, com todos os limites de qualquer teologia, é um esforço de dizer uma palavra sobre o Deus de Jesus no mundo em que vivemos. Mas uma palavra que não quer ser apenas um conceito teórico. Ela quer ser uma palavra eficaz, como é a palavra de Deus.