Os efeitos do colonialismo sobre os povos recolocam três questões filosóficas centrais: “O que é o homem?”, “O que significa ser livre?”, “O que significa ser verdadeiro?”, destaca o filósofo
Ao refletir sobre o colonialismo e seus efeitos nos povos africanos, Lewis Gordon recorre à “filosofia existencial africana” não só para objetar as razões colonialistas apresentadas pelos conquistadores ao colonizarem os diferentes povos que habitavam o território africano, mas para recolocar algumas perguntas filosóficas que podem orientar as teorias decoloniais:
“A filosofia existencial africana nos pede que façamos quatro perguntas importantes: 1) Se o colonialismo nos humaniza, devemos nos perguntar o que significa ser humano. 2) Se o colonialismo nos escraviza, devemos nos perguntar o que significa ser livre. 3) Se o colonialismo mente para nós, devemos perguntar o que significa ser verdadeiro. 4) E, também, precisamos perguntar por que enfrentamos a colonização o tempo todo. Será que todo sofrimento valeu a pena e essa é a crise da redenção?”
Na conferência virtual ministrada em 20-10-2022 no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, como parte do Ciclo de Estudos “Saberes Decoloniais: inquietações e saídas às crises de hoje”, Gordon disse que o colonialismo criou e continua criando dois tipos de mentiras. Ele explica: “A primeira mentira é dita através do conceito de pele negra – podemos falar de mulata ou indígena também, ou seja, os de pele negra estariam abaixo do humano. Isso cria um grupo novo de pessoas que devem ficar acima das outras. Mas se um grupo está acima do humano, ele é deus. Esse outro grupo é chamado de supremacia branca, que também é uma mentira. Se ambas são mentiras, se uma estiver acima do humano e a outra abaixo, a pergunta que surge é: onde está o humano? A resposta é que o colonialismo é uma tentativa de assassinato contra a humanidade e isso significa que, onde o humano tentar se afirmar, ele vai ser violentamente reprimido. Vemos isto hoje no autoritarismo, na extrema-direita”.
Na conferência a seguir, publicada no formato de entrevista, destacamos os principais trechos da exposição de Lewis Ricardo Gordon sobre poder, liberdade e responsabilidade à luz do novo regime climático. “Se estamos lutando por um mundo que, no final das contas, tem a ver com liberdade, precisa ser um mundo habitável. Para ser um mundo habitável, precisamos construir condições de tal forma que nossa ação e nosso compromisso existencial, no fim, alcancem aqueles que nunca conheceremos. Se essas condições forem feitas corretamente, aqueles que nunca vamos conhecer vão herdar um mundo no qual eles possam realmente viver em termos significativos para eles”, afirma.
Lewis Ricardo Gordon
Foto: Universidade de Coimbra)
Lewis Ricardo Gordon é doutor e mestre em Filosofia pela Universidade Yale, EUA. É professor de Filosofia e Estudos Africanos, na Universidade de Connecticut. Gordon também lecionou nas universidades Brown, Yale, Purdue e Temple. Trabalha nas áreas de filosofia africana, existencialismo, fenomenologia, teoria social e política, pensamento pós-colonial, teorias de raça e racismo, filosofias da libertação, estética, educação e religião.
A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 02-11-2022.
IHU – Como caracteriza o tempo que estamos vivendo?
Lewis R. Gordon – O tempo que vivemos é um tempo no qual as pessoas que tomaram o poder não se importam mais com os ancestrais, não se importam com os descendentes. Como podemos raciocinar com pessoas que têm arrogância de pensar que a morte delas significa o fim do mundo? Toda vida e todo entendimento ético e político requerem respeito não apenas por aqueles que conhecemos, mas por aqueles que nunca conheceremos.
Nem sempre o mundo foi compreendido como um mundo ocidental. De fato, essa visão é bastante recente. Igualmente, nem sempre houve um mundo negro – só recentemente as pessoas começaram a pensar em si mesmas dessa forma. Nós herdamos uma forma de pensar sobre nós mesmos que causa violência na comunidade.
Dito isso, eu gostaria de questionar a forma como falamos de “moderno”. Mesmo quando queremos nos descolonizar, nós nos recolonizamos porque não pomos em dúvida a forma como questionamos o nosso próprio pensamento. Algumas pessoas que trabalham o pensamento decolonial presumem que o pensamento moderno é e deve ser europeu. Eu não concordo com isso porque não há motivo para nenhum povo tomar a posição de que não pertence ao presente. Na colonização, as pessoas ficaram conhecidas como europeias e alegaram que, para pertencer ao presente, os povos tinham que ser europeus. Segundo esse raciocínio, todos os outros povos, se não são europeus, não pertencem ao presente. Como podem ver, a história que o mundo moderno criou é baseada em práticas coloniais de retirada do poder, de bloqueio do poder da maioria global. Podemos chamar isso de desempoderamento. Esse é um elemento-chave do mundo moderno europeu. Significa que devemos repensar a maneira como falamos de poder.
IHU – Pode dar alguns exemplos?
Lewis R. Gordon – À medida que falo, vou sugerir uma variedade de maneiras de repensar os nossos conceitos porque não é apenas o moderno como conceito que foi colonizado pelo mundo euromoderno, mas algo mais radical, a própria ideia dos conceitos.
Quando se quer dominar um povo, desumanizá-lo ou escravizá-los, é preciso convencê-lo de que ele não tem capacidade de pensar. Se um povo não tem capacidade de pensar, significa que as palavras, os conceitos e as ideias, isto é, todas as coisas que permitem a comunicação dos seres humanos são ilegítimas quando vêm do povo a ser colonizado. Nesse sentido, a primeira coisa a ser feita é questionar a ideia de que todas as ideias vêm da Europa.
Há outras coisas que temos que questionar: a ideia de que até mesmo o conceito de ser humano vem da Europa. A realidade é que todas as comunidades humanas tiveram uma maneira de falar sobre quem e o que nós somos. E nós comunicamos isso uns aos outros quando nos encontramos, mas, a violência, as imposições, são impostas sobre nós. Então, uma das coisas que devemos compreender é que não podemos sustentar o colonialismo apenas com violência material. O que deve ser acrescentado é criar uma forma de autocolonização para fazer com que nós empreendamos o trabalho de policiar as nossas capacidades. Para isso, é necessário compreendermos um conceito importante, o conceito de poder.
IHU – Como compreende esse conceito?
Lewis R. Gordon – Poder é a capacidade de fazer com que as coisas aconteçam com acesso às condições necessárias. Isso significa que poder sempre é uma relação. Muitas pessoas pensam o poder em termos de Deus ou deuses. Essa ideia de poder é relativa a algo que é tão poderoso, que em si mesmo é a condição de sua possibilidade. Mas isso não é o que os seres humanos são. Os seres humanos não são totalmente poderosos. Somos suficientemente poderosos para desafiar a ideia do todo poderoso. Pensem sobre isso. Nós, seres humanos, podemos desobedecer a Deus. O que Deus pode fazer se nós dissermos “isso não me interessa”? É uma capacidade humana extraordinária de poder usar a palavra “não”.
Existiram outros tipos de humanos antes de nós, que também criaram tecnologias, ideias e culturas. Nós, homo sapiens, entramos em um mundo que já era muito rico cerca de 300 mil anos atrás. E é nesse marco que começamos a perceber que a nossa capacidade de nos comunicar e de construir mundos cria uma situação tal que nós não precisamos estar localizados no lugar que habitamos. Estou falando para vocês dos Estados Unidos e vocês estão no Brasil. Temos a tecnologia, a linguagem e a mente e incorporamos essas tecnologias para atravessar os oceanos e poder afetar um ao outro.
Se o ser humano não tivesse poder, estaríamos presos dentro de nossos corpos. Mas a nossa capacidade de poder nos permite alcançar o mundo e, ao fazer isso, nos permite produzir arte, ideias e nos capacita a criar o valor radical do amor e do crescimento. Agora, o colonialismo vai contra isso. Ou seja, podemos usar o poder para contribuir no crescimento do mundo, para dar condições de que os outros tenham poder e para influir em suas vidas, ou podemos usar o poder para bloquear e impedir as pessoas, torná-las prisioneiras do seu próprio corpo. Isso é o que faz o colonialismo através de mentiras. Herdamos tantas mentiras, entre elas, a ideia de que no passado distante havia pessoas que não pensavam.
Sou professor de filosofia e quando ensino meus alunos, sempre começo com uma conversa sobre o pensamento, o amor pela aprendizagem e com a leitura de uma reflexão filosófica de quatro mil anos atrás. Isso porque parte da colonização da nossa mente está baseada na mentira de que o pensamento filosófico começou há 2500 anos, em Atenas, na Grécia antiga. Se quiserem encontrar ideias de filosofia anteriores a esse período, é possível ler um pensador da África antiga chamado Antef I [1], que escreveu há quatro mil anos sobre sabedoria, conhecimento e o que significa ser um filósofo.
IHU – Como compreende o processo de colonização a partir da África?
Lewis R. Gordon – Se tomarmos a África como exemplo, ou a África Atlântica, significa que devemos levar a sério os povos que lá habitavam: fulânis, iorubás, igbo. Muitos desses povos foram sequestrados e transformados no que chamamos de povos negros. Mas é preciso entender que não foram somente eles.
Se formos para o outro lado do continente, encontraremos outros grupos, como os khoikhoi e muitos outros que foram entendidos como povos negros. Se formos para a Ásia Ocidental, encontraremos um período no qual todos os tipos de povos foram transformados no que chamamos de negro, assim como na Austrália. O mesmo ocorre na Nova Zelândia. Muitos grupos indígenas da América do Sul e da América Central também foram chamados de negros pelas pessoas que impuseram esse conceito sobre eles. Quando digo isso, não quero dizer que há algo intrinsicamente errado em ser negro. O que quero dizer é que a forma decolonizadora torna o que é negro algo ruim.
Nesse sentido, a filosofia existencial africana nos pede que façamos quatro perguntas importantes:
1) Se o colonialismo nos humaniza, devemos nos perguntar o que significa ser humano.
2) Se o colonialismo nos escraviza, devemos nos perguntar o que significa ser livre.
3) Se o colonialismo mente para nós, devemos perguntar o que significa ser verdadeiro. E aqui temos uma crise de conhecimento porque parte da filosofia, da ciência e da literatura foi usada para os propósitos da colonização e, portanto, criou-se uma crise de justificativa.
4) E, também, precisamos perguntar por que enfrentamos isso a todo o tempo. Será que todo sofrimento valeu a pena e essa é a crise da redenção?
A discussão sobre a origem racial e étnica distorce os povos da África. Os povos da África não eram brutos que estavam no meio do mato. O motivo pelo qual o mundo moderno prosperou é porque as pessoas que foram escravizadas tinham um trabalho capacitado e levaram seu conhecimento para os locais onde atuaram, desde conhecimento sobre irrigação, medicina, arquitetura, até técnicas militares. Eles fizeram os locais florescerem, prosperarem.
Se pensarmos nas economias, veremos que o capitalismo, que é uma parte importante do colonialismo, também é uma mentira porque o capitalismo sempre se anuncia como o mercado, mas isso é uma abstração. A verdade é que a humanidade sempre teve mercados, no plural. Mercados eram os lugares aonde as pessoas iam para se encontrar, para obter notícias, para aprender, para compartilhar ideias. Os mercados eram instituições muito humanas, mas o capitalismo impõe uma abstração aos mercados, que se chama “o mercado”, como um deus. Esse mercado está interessado não no intercâmbio e nas trocas humanas, mas em um conceito chamado negócios – e negócio quer lucro em relação às pessoas. Esse é o ingrediente no colonialismo. Nessa concepção, absolutamente nada deve ficar fora do mercado. Se nada pode ficar fora do mercado, até mesmo os nossos valores estarão à venda.
O que o colonialismo fez e continua fazendo é criar dois tipos de mentiras. A primeira mentira é dita através do conceito de pele negra – podemos falar de mulata ou indígena também, ou seja, os de pele negra estariam abaixo do humano. Isso cria um grupo novo de pessoas que devem ficar acima das outras. Mas se um grupo está acima do humano, ele é deus. Esse outro grupo é chamado de supremacia branca, que também é uma mentira. Se ambas são mentiras, se uma estiver acima do humano e a outra abaixo, a pergunta que surge é: onde está o humano? A resposta é que o colonialismo é uma tentativa de assassinato contra a humanidade e isso significa que, onde o humano tentar se afirmar, ele vai ser violentamente reprimido. Vemos isto hoje no autoritarismo, na extrema-direita.
Todos os movimentos de direita estão ligados a uma crise. Crise significa que uma decisão precisa ser tomada. Mas algumas pessoas têm medo de tomar uma decisão, então elas querem voltar a um passado imaginário onde as coisas eram perfeitas. Mas isso é apenas um salto na infância. Qualquer um que entende a infância reconhece que, no mundo das crianças, os adultos são deuses. É por isso que as pessoas de extrema-direita quase sempre estão procurando pais ou homens fortes como protetores. Mas esses homens fortes e protetores são mentirosos porque, ao serem seres humanos, não podem nem proteger a si próprios.
O poder da humanidade sempre esteve na socialidade, na comunicabilidade e nas instituições políticas. Sempre há aqueles que dizem que as pessoas, no passado, viviam em um mundo perfeito que estavam tentando melhorar. A crise do nosso tempo consiste na nossa vez de tentar tornar algo melhor. Isso significa que, se quisermos construir um futuro, ele pode ser feito não a partir de um retorno ao passado, mas com o compromisso de construir um futuro. Isso nos conduz ao cerne e à chave do pós-ocidental. A noção de Ocidente é uma fraude, uma mentira. Há muitas pessoas que, quando pensam em racismo, colonialismo, não conseguem entender que o maior medo de todos os racistas e de todos os racismos é a sua irrelevância. Se pudermos mudar as condições, então teremos desempoderado o colonialismo e o racismo.
IHU – Como a decolonização contribuiu para o processo de reavaliação do colonialismo?
Lewis R. Gordon – Os colonizadores sempre mentem para as populações do sul global. Eles dizem: “Vejam o que construímos!” Mas eles não construíram nada porque foi o trabalho, a criatividade e a energia das pessoas colonizadas e escravizadas que construíram algo. Então, a decolonização se torna o repensamento criativo dos valores, uma imaginação diferente. Se queremos seguir adiante, temos que repensar a libertação. Muitas pessoas confundem libertação com liberdade. Toda a libertação é ausência de um obstáculo. Mas estar libertado não significa estar livre. Se você é enviado para uma floresta, significa que está libertado, mas se você não tem ninguém com quem se comunicar, se não tiver linguagem, socialidade ou responsabilidade, não tem pertencimento e existência humana.
Os seres humanos vivem em mundos humanos, mas mundos humanos são mundos comunicados e negociados. Isso significa que temos que repensar o que é liberdade, assim como precisamos repensar o que é poder. Liberdade requer pertencimento, o que significa um lar. E quando digo um lar, não quero dizer simplesmente um domicílio como um lugar fixo. Um lar significa que podemos pertencer a uma comunidade, a um lugar geográfico, a uma relação, à família, ao cônjuge, aos amigos. Eles são o nosso lar. Liberdade requer pertencimento. É por isso que os fugitivos, embora estejam fugindo, não são livres porque eles não têm um lugar para o qual possam voltar como sendo um lar.
A outra coisa necessária é a responsabilidade porque, com a responsabilidade, vem a capacidade de afetar o mundo e a representação de poder trabalhar com os outros. Responsabilidade e empoderamento estão relacionados. Quando digo que os seres humanos vivem em um mundo humano, significa que o mundo é um mundo de possibilidade. O que o colonialismo quer fazer é tentar fechar as possibilidades. Ele cria contrários, separação, mas a existência humana é dialética. Nós podemos estar em uma relação com a vida, com as árvores, os animais, com as ideias.
Se estamos lutando por um mundo que, no final das contas, tem a ver com liberdade, tem que ser um mundo habitável. Para ser um mundo habitável, precisamos construir condições de tal forma que nossa ação e nosso compromisso existencial, no fim, alcancem aqueles que nunca conheceremos. Se essas condições forem feitas corretamente, aqueles que nunca vamos conhecer vão herdar um mundo no qual eles possam realmente viver em termos significativos para eles.
[1] A origem da palavra sofia reside na língua africana Mdu Ntr, idioma do antigo Egito, onde a palavra seba, significando “o sábio”, aparece primeiro em 2052 a.C. no túmulo de Antef I, muito antes da existência da Grécia ou do grego. Estabeleceu-se como sebo em copta e sophia em grego. Quanto ao filósofo, o amante da sabedoria, este é exatamente o sentido de seba, o sábio, nos escritos antigos dos túmulos egípcios. Disponível aqui. (Nota do IHU)