Por: João Vitor Santos | Tradução: Moisés Sbardelotto | 20 Setembro 2017
As imagens de pessoas morrendo afogadas no mar, ou mesmo de botes recheados de subnutridos, chocam o mundo inteiro. É a chamada crise migratória do século XXI. Entretanto, apesar do impacto, o mundo parece dar as costas para o lugar de onde saem a maioria dessas pessoas: o continente africano. É o que denuncia o missionário italiano Alex Zanotelli. “As riquezas da África são a sua maldição”, dispara. “A África é o continente crucificado”, completa. Segundo ele, “a riqueza está cada vez mais nas mãos de poucos, apesar das massas populares cada vez mais empobrecidas. Aumentam as guerras e os conflitos armados, razão pela qual milhões migram buscando uma vida melhor”.
Zanotelli, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, explica que a miséria é fruto da exploração de outros países aos recursos naturais de países africanos. Isso resulta em desigualdade econômica e violência, ainda recrudescidas pelas tradições tribais e por governos ditatoriais. O mais triste é que os países que complicam a realidade africana são os mesmos que fecham as portas aos imigrantes. “O desafio das migrações na Europa deveria ser relativizado, quando se sabe que 86% dos migrantes são acolhidos hoje pelos países empobrecidos do mundo”, propõe. “Quão provável é que a Europa, com mais de 500 milhões de habitantes, não consiga acolher 200 mil migrantes por ano que chegam a ela? É o crescente racismo na Europa, fomentado por partidos xenófobos, que leva a rejeitar os migrantes. No entanto, a Europa é uma região que está envelhecendo e que precisa de novos trabalhadores”.
Alex Zanotell | Foto: La Fede Quotidiana
Alex Zanotelli é italiano, missionário comboniano, atuou por oito anos no Sudão, na África. Por quase dez anos, foi diretor da revista Nigrizia, publicação italiana que era referência em assuntos africanos. Também atuou em favelas que cercam Nairobi, no Quênia, onde fundou pequenas comunidades cristãs e cooperativa de reciclagem. Ainda atuou em Udada, comunidade com problemas de prostituição, e também lutou por reforma agrária, tema-chave da política do Quênia. Atualmente é diretor do Mosaico da Paz, revista mantida pela organização italiana de Pax Christi – o Movimento Internacional de Paz Católica, que aborda temas relacionados ao meio ambiente, não violência, desarmamento, diálogo inter-religioso pela paz, economia da justiça, entre outros.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A partir da sua experiência na África, como o senhor vê a realidade do continente?
Alex Zanotelli – É difícil apresentar brevemente a realidade da África. As riquezas da África são a sua maldição. A cobiça das grandes potências (incluindo China e Índia) está aumentando. Aumenta também o Produto Interno Bruto - PIB de tantas nações. Mas a riqueza está cada vez mais nas mãos de poucos, apesar das massas populares cada vez mais empobrecidas. Cerca de 200 milhões de africanos vivem hoje em favelas assustadoras. Aumentam as guerras e os conflitos armados, razão pela qual milhões migram buscando uma vida melhor.
IHU On-Line – Quais as questões de fundo das tensões que eclodem na África?
Alex Zanotelli – As tensões na África explodem por muitas razões. A primeira, certamente, se deve às enormes disparidades econômicas. A segunda é o tribalismo: um exemplo atual é a guerra entre Dinka [1] e Nuer [2] no Sudão do Sul, que já produziu milhões de deslocados e de refugiados. A terceira é política: regimes ditatoriais ou repressivos, como na Eritreia, Sudão, Burundi, Ruanda. Quarta razão: a riqueza do subsolo, como no Congo.
IHU On-Line – Por que a África, especialmente ao sul do Saara, é tão invisibilizada? Como compreender, minimamente, a realidade do continente? De que forma a cultura islâmica incide no continente?
Alex Zanotelli – A África está pouco presente na mídia ocidental porque não importa. Eu escrevi um apelo: “Quebremos o silêncio sobre a África”, no qual ataquei o silêncio da mídia italiana sobre a África. Não é fácil para um cidadão europeu ter uma ideia do que acontece no continente africano. A cultura islâmica está muito presente na África, que é hoje o continente onde mais se concretiza o confronto entre Islã e cristianismo.
IHU On-Line – Podemos afirmar que o continente africano ainda vive a lógica colonialista?
Alex Zanotelli – O continente africano ainda vive a lógica do colonialismo que, agora, se transformou em neocolonialismo neoliberal, que nada mais é do que o triunfo do mercado global. O exemplo recente disso são os Economic Partnership Agreements - EPA [Acordos de Parceria Econômica] impostos pela União Europeia à África, contra a vontade dos países subsaarianos. A África está cada vez mais presa à cobiça do Ocidente, mas também de países como China e Índia. A África é o continente crucificado.
IHU On-Line – Os conflitos africanos são recrudescidos pela ação e intervenção de países ocidentais? De que forma?
Alex Zanotelli – Sim, os conflitos na África são intensificados pela intervenção dos países ocidentais pelas matérias-primas, mas, sobretudo, pela venda de armas que vão armar regimes muitas vezes repressivos e fazer guerras.
IHU On-Line – Como o senhor tem observado, em específico, os conflitos do Sudão do Sul, do Sudão, da Somália e de toda região da África Central? Quais os fatores que levam à eclosão da guerra civil e o que vem, há anos, impedindo seu arrefecimento?
Alex Zanotelli – Os conflitos no Sudão do Sul, Sudão, Somália e África Central são muito diferentes entre si. O Sudão do Sul, a mais jovem nação da África, nasceu em 2011, depois de mais de 30 anos de luta com o regime de Cartum (Sudão). É o confronto entre um Sudão muito ocidentalizado e um Sul profundamente africano: dois mundos postos juntos pelo poder colonial inglês! Agora, no conflito no Sudão do Sul, eclodiu o confronto entre os dois povos mais fortes do país: os Denka e os Nuer, que, juntos, tinham lutado pela independência. O presidente do Sudão do Sul foi, desde o início, Salva Kiir [3], um Dinka que lentamente excluiu os Nuer do poder. O confronto é tribal. E a guerra civil agora em curso é dramática, com milhares de mortes e milhões de refugiados e deslocados.
No Sudão, o regime militar de Cartum continua bombardeando o povo Nuba que vive nos montes Nuba e que pede o direito à sua autonomia. Igualmente duro é o governo do Sudão com os povos de Darfur, onde, há anos, está em curso uma guerrilha.
A Somália, por sua vez, está há 30 anos em guerra civil: uma guerra de todos contra todos, especialmente entre os elementos mais moderados e fundamentalistas islâmicos (shabab). Não há uma solução à vista.
Enquanto na África Central há uma série de nações em guerra civil. A primeira é a República Centro-Africana, há anos em guerra entre os elementos cristãos e os elementos islâmicos (seleka). A segunda é o Congo, que, principalmente na região do Kivu, vive há anos em perpétuo conflito, especialmente pelas suas imensas riquezas. É enorme a interferência nesse território de Ruanda e de Uganda, mas, nos bastidores, há poderes econômicos mundiais.
Por fim, está o Burundi, que está à beira de outra guerra civil, porque o chefe de Estado não quer abrir mão do poder.
IHU On-Line – Qual a relação entre os conflitos e as guerras da África com a chamada “crise migratória”?
Alex Zanotelli – É claro que há uma relação direta entre os conflitos e as guerras na África e as migrações. Muitos fogem de situações de guerra e conflitos predominantes na região do Sahel, a faixa que divide a África do Norte da África Subsaariana, como o Mali, o Sudão, a Somália... Mas muitos também fogem de regimes ditatoriais como a Eritreia e a Etiópia, de situações de fome e por razões climáticas (a desertificação). A Organização das Nações Unidas - ONU espera mais de 50 milhões de refugiados climáticos até 2050, apenas da África.
IHU On-Line – Por que as grandes potências ocidentais, em particular nações europeias, desconsideram os conflitos africanos?
Alex Zanotelli – As grandes potências ocidentais ignoram os conflitos africanos porque são a sua causa, ou com as suas políticas predatórias, ou com a venda de armas.
IHU On-Line – O silêncio da Europa em relação aos conflitos africanos não torna o continente hipócrita quando se diz vítima do processo migratório?
Alex Zanotelli – Sim, é pura hipocrisia da parte da Europa dizer-se vítima do processo migratório, porque ela é até mesmo a sua causa.
IHU On-Line – Quais os desafios para, de fato, enfrentar a realidade de milhões de pessoas que migram para outros países?
Alex Zanotelli – O desafio das migrações na Europa deveria ser relativizado, quando se sabe que 86% dos migrantes são acolhidos hoje pelos países empobrecidos do mundo. O Quênia acolhe dois milhões de somalis; a Uganda, mais de um milhão de sudaneses do sul; o Líbano (com seis milhões de habitantes) acolhe um milhão e meio de sírios.
Quão provável é que a Europa, com mais de 500 milhões de habitantes, não consiga acolher 200 mil migrantes por ano que chegam a ela? É o crescente racismo na Europa, fomentado por partidos xenófobos, que leva a rejeitar os migrantes. No entanto, a Europa é uma região que está envelhecendo e que precisa de novos trabalhadores.
IHU On-Line – Quem é o migrante africano de hoje? E como compreender esse sujeito?
Alex Zanotelli – Não existe um “migrante africano”. Existem migrantes provenientes do norte da África, geralmente muçulmanos, que desprezam os negros provenientes da África oriental, que têm bem pouco a ver com os do Sahel... São mundos em si mesmos.
IHU On-Line – Como avalia a atuação de organismos internacionais na realidade africana? Que avanços têm feito e quais seus limites?
Alex Zanotelli – As grandes organizações internacionais que operam na África são enormes estruturas que devoram para manterem para si mesmas 80% dos fundos que recebem.
IHU On-Line – Faça um relato sobre o papel dos missionários religiosos na África e os desafios que enfrentam diante de tanta guerra, desigualdade e pobreza.
Alex Zanotelli – A missão hoje na África deve se converter: a missão se “paroquializou”! Os missionários devem aprender a viver nas fronteiras do sofrimento humano, compartilhando os sofrimentos desses povos; devem ir viver nas periferias, nas assustadoras favelas (são 200 milhões os africanos que vivem em favelas), devem ser pobres e peregrinos com os peregrinos da história.
Notas:
[1] Dinka: grupo étnico do Sudão do Sul, habitando a região do Bahr al-Ghazal, Junqali e partes do Cordofão do Sul e do Alto Nilo. São majoritariamente um povo agropastoril, praticando o pastoreio de gado em campos ribeirinhos durante a estação seca e plantam milheto e outras variedades de grãos em acampamentos fixos, durante a estação das chuvas. Estima-se que a população total esteja por volta dos dois milhões de pessoas, constituindo cerca de 20% da população do país. São o maior grupo étnico do Sudão do Sul. (Nota da IHU On-Line)
[2] Nuer: são uma confederação de tribos localizadas no sul do Sudão e no oeste da Etiópia. Segundo E.E. Evans-Prichard, são um exemplo clássico de linhagem segmentária ou linhagem multicêntrica como solução do problema da unidade tribal; cerca de 200.000 vivem em povoados cultivando milho durante a estação das chuvas e pastoreando gado em regime de nomadismo quase constante durante as estações secas. (Nota da IHU On-Line)
[3] Salva Kiir Mayardit (1951): é o presidente do Sudão do Sul. Nos anos de 1960, Kiir uniu-se aos rebeldes do sul na primeira guerra civil sudanesa. Membro-fundador e líder do Exército Popular de Libertação do Sudão (SPLA), que lutou durante a segunda guerra civil sudanesa, Kiir foi escolhido como representante da organização no processo de paz, após a assinatura do Tratado de Naivasha, em janeiro de 2005, acordo que, formalmente pôs fim à guerra. (Nota da IHU On-Line)
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África: os dramas do continente amaldiçoado pela sua riqueza. Entrevista especial com Alex Zanotelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU