Por: André | 03 Setembro 2015
“Somos refugiados das guerras que vocês fazem”, pode-se ler em um cartaz que um migrante africano traz pendurado ao pescoço. Diante das tragédias destes últimos dias, “crimes que ofendem toda a família humana”, como os definiu o Papa Francisco durante o Angelus do domingo, 30 de agosto, os políticos repetem muitas vezes a importância de ajudar estes povos “em sua casa”. Há quem ataca delirantemente a Igreja e em particular o Papa Francisco, há também quem fala de uma “invasão” em curso (embora os desembarques na Itália, por exemplo, sejam pouco mais que os do ano passado), há quem invoca restrições e a construção de barreiras, e quem, justamente, denuncia os traficantes criminosos.
Fonte: http://bit.ly/1Iyrrn1 |
A reportagem é de Andrea Tornielli e publicada por Vatican Insider, 31-08-2015. A tradução é de André Langer.
Mas reflete-se muito pouco, sobretudo no Ocidente, sobre as causas profundas destes fenômenos: as relações com um determinado modelo econômico, com as decisões estratégico-militares das últimas décadas, com o financiamento a países e grupos terroristas que ontem eram aliados e hoje são inimigos, com a falta de uma política que saiba enxergar além do interesse imediato e além das próximas eleições. Estes são alguns exemplos sobre os quais deveríamos refletir.
O caso da Eritreia
Entre janeiro e maio de 2015, 10.000 eritreus desembarcaram nas costas italianas. Eles fogem do país, rico em recursos naturais, devido à falta de trabalho e de futuro. Eden Getachew, assessora e pesquisadora para o Alto Comissariado das Nações Unidas sobre o caso eritreu, disse: “Comecei o serviço militar na Eritreia aos 17 anos. E, enquanto uma mulher não se casar e tiver filhos, fica sempre à disposição do Exército... Apesar das ligações familiares, não retorno ao meu país, porque estaria à sua mercê”.
No papel – prossegue Eden Getachew –, o serviço militar tem uma duração de 18 meses, mas na realidade “continua por tempo indefinido, às vezes, sem receber nenhum pagamento ou recebendo um dólar por dia. Os soldados são obrigados a trabalhar em empresas do Estado que têm contratos com empresas estrangeiras. O dinheiro que o regime ganha serve para manter o poder. Durante os primeiros anos da década de 1990, acontecia o contrário, muitos quiseram entrar no país, pois parecia renascer. A Eritreia é um país rico em recursos, mas as terras são confiscadas pelo Estado. O custo de vida é alto, as famílias recebem rações de comida mediante cupons distribuídos pelas autoridades locais, e se em seu interior houver opositores ao governo, obviamente as famílias são castigadas e deixam de receber a ajuda”. Há governos que limitam as liberdades e as oligarquias corruptas, claro, mas também se deveria perguntar quais são as empresas, as multinacionais, a quem convém que essa situação se perpetue.
Os investidores na República Centro-Africana
A ong britânica Global Witness, em um relatório intitulado “Madeira ensanguentada”, documentou o pano de fundo do grave conflito que explodiu no país em 2012, uma das crises humanitárias esquecidas. Graças a documentos e testemunhos tornou-se público que algumas empresas, comprometidas com o negócio da madeira, financiaram várias facções de rebeldes, grupos armados acusados de crimes de guerra, para poder obter contratos e a madeira destes mesmos grupos. São sociedades que pertencem a empresários belgas, franceses, alemães, chineses e libaneses. O relatório da Global Witness também critica a União Europeia, que importa dois terços da madeira centro-africana, por não terem feito a vigilância requerida, como exigem as normativas comunitárias.
Efeitos do financiamento: o caso de Gana
A dívida africana voltou a crescer e é possível que muitos governos não consigam manter os próprios compromissos. Durante a década passada, depois do projeto Highly Indebtes Poor Countries (Hipc), do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, vários países da África Subsaariana obtiveram uma redução que serviu para que retomassem um pouco de fôlego ao terem acesso a novos empréstimos. Em 2007, Gana foi o primeiro país que se assomou aos mercados internacionais, emitindo obrigações na ordem de 750 milhões de dólares; depois o fizeram o Senegal, Nigéria, Zâmbia e Ruanda.
Os fundos de investimento, postos à disposição pela alta finança, foram utilizados parcialmente, para apoiar atividades empresariais estrangeiras na África, mas também serviram para financiar as oligarquias locais corruptas. Sem planos de desenvolvimento nacional, foram construídas catedrais no deserto, infraestruturas sem conexão entre si ou iniciativas empresariais expostas à compra por parte das multinacionais, em particular no âmbito das matérias-primas e das fontes de energia. A especulação desenfreada provocou a desvalorização das moedas locais.
Em Gana, país considerado como emblema do ‘boom africano’ pelo crescimento do Produto Interno Bruto, o governo viu-se obrigado a vender seus setores estratégicos: água, petróleo, eletricidade, telefonia, cacau e diamantes. Foi responsabilidade das autoridades locais, claro, mas também das instituições financeiras internacionais, que estão de olho nas concessões para a exploração das matérias-primas e na privatização das terras para bloquear o aumento da dívida. Grandes possibilidades para os negócios dos europeus, chineses e estadunidenses, devido à forte depreciação da moeda local. Pouco ou nada foi investido em políticas de bem-estar.
Algo semelhante está acontecendo na Zâmbia, que teve sua dívida rebaixada após a emissão, dois anos antes, de bônus na ordem de 750 milhões de dólares. Também se pode recordar que a União Europeia impôs, desde outubro de 2014, a todos os países envolvidos nos tratados de cooperação, os países em desenvolvimento, os EPA (Economic Partnership Agreement). Trata-se de acordos comerciais que podem ter consequências muito negativas para os países africanos que não são capazes de competir com a economia europeia.
No mercado de Cotonou, em Benim, os tomates produzidos em Villa Literno (Itália) custam menos que os produzidos pelos camponeses africanos, graças aos subsídios europeus à agricultura. Neste ritmo, dentro de poucos anos os africanos já não serão donos nem da água nem do pão que produzem. Um empobrecimento que, e não é difícil prevê-lo, provocará novos e mais consistentes fenômenos migratórios.
Nossas guerras e os terroristas que eram os nossos aliados
É um dado que dificilmente pode ser questionado: as decisões estratégico-militares ocidentais no Oriente Médio e no Norte da África, durante o último quartel de século, foram desastrosas. O já precário equilíbrio em regiões cujas fronteiras foram “criadas” no começo do século XX foi destroçado com a decisão de acabar com os regimes de alguns ditadores, como Saddam Hussein e Muammar Gadafi. Ditadores sanguinários, mas considerados aliados da Europa e do Ocidente na hora de fazer negócios ou de combater o inimigo do momento. As duas guerras no Iraque, assim como a guerra na Líbia, foram decididas e administradas sem nenhum projeto para o período pós-bélico. O resultado final foi a total desestabilização da zona e a transformação de ambos os países em sementeiras de grupos terroristas fundamentalistas.
Os atuais números da migração não são muito mais elevados do que nos anos anteriores, mas quando Gadafi estava no poder, os refugiados eram presos e às vezes abandonados no deserto. Como esquecer que os talibãs foram financiados para fazer frente aos soviéticos e que até alguns meses antes do surgimento do Estado Islâmico vários grupos de milicianos fundamentalistas que o constituíram e que combatiam contra o “inimigo” Bashar al Assad na Síria foram impulsionados com armas e dinheiro ocidental? E o que dizer dos contatos e contratos que nos aliam com os árabes que estão envolvidos com o apoio ao fundamentalismo salafita?
Alarme Islã
Diante dos massacres cotidianos (de cristãos, mas também de membros de outras minorias e inclusive de outros muçulmanos), da limpeza étnica, das decapitações, da destruição de obras de patrimônio da humanidade, cresce o temor pelo que representa o Estado Islâmico e por seus objetivos. Paradoxalmente, em diferentes casos, o Ocidente assinala como inimigo, “grande Satanás” de turno, o aliado de ontem ou de anteontem.
Ao mesmo tempo, os países ocidentais fazem muito pouco, ou nada, para ajudar os intelectuais do modernismo islâmico, as universidades e os centros de cultura nos quais se trata de neutralizar as obsessões fundamentalistas, intolerantes e agressivas do salafismo. Não existem apenas os autores intelectuais da jihad, da guerra santa; existem também autores, escritores, pensadores, como os egípcios Sayyed al-Qimani e Khalil Abd al-Karim, que apresentam leituras alternavas à interpretação fundamentalista.
“Alguns destes pensadores e reformadores foram eliminados no silêncio e no desinteresse do Ocidente – explicou ao Vatican Insider o missionário comboniano Giulio Albanese, diretor da revista Popoli e Missione –, como no caso de Mahmoud Muhamed Taha, condenado à morte pelo presidente sudanês Gaafar Nimeiri em 18 de janeiro de 1985. Ele interpretava o Corão chegando a uma clara separação entre a dimensão religiosa, universalmente válida e imutável, e a dimensão política, relacionada com as situações históricas. Propunha a reconciliação do Islã com a liberdade religiosa, com os direitos humanos e com a igualdade dos sexos. Foi assassinado como apóstata pelo regime de Khartoum, que naquele momento era aliado do Ocidente”.
Um destino semelhante, continua o missionário, teve o pai do reformismo islâmico iraniano, Ali Shariati, que dizia: “Devemos reformar o Islã tornando-o o eixo da libertação de nossas sociedades, ainda presas a uma dimensão social tribal, isto é, à Idade Média do Oriente, ao passo que hoje é o instrumento utilizado pelos reacionários para evitar o progresso e o desenvolvimento social”. Foi morto em 1977 pela polícia secreta do xá da Pérsia.
Uma pergunta sobre a migração
Até aqui damos alguns exemplos. Exemplos parciais, que podem ajudar a compreender a complexidade da realidade de tudo o que está acontecendo e a necessidade de respostas que não se limitem à guerra contra os traficantes de pessoas ou à restrição das normas sobre a migração. “Aos políticos e formadores de opinião que hoje afirmam a necessidade de ‘ajudar os africanos em sua casa’ – observou o Pe. Giulio Albanese – seria preciso recordar que isso, infelizmente, não aconteceu no passado e não está acontecendo no presente. É mais, as políticas de investimento em nível internacional (ocidentais e não somente) têm, atualmente, um sinal contrário. Trata-se de um paradoxo, quando se considera que estamos falando do continente com taxas de crescimento superiores às de muitos países do Primeiro Mundo”.
E, na relação com as acusações de corrupção e da consciência sobre as causas endêmicas da má política dos governos africanos e de suas oligarquias, o Pe. Albanese recorda: “Nós dizemos que os países do Sul do mundo têm governos corruptos. É verdade. Mas a corrupção é um negócio com uma demanda e uma oferta. Há as oligarquias africanas, mas também há as multinacionais que exploram. Seria preciso começar a se fazer perguntas a esse respeito, assim como sobre a necessidade de reformar o modelo de desenvolvimento imposto pela globalização, como indicou claramente o Papa Francisco tanto na exortação apostólica Evangelii Gaudium, como na encíclica Laudato si’”.
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Refugiados das nossas guerras e dos nossos negócios - Instituto Humanitas Unisinos - IHU