02 Fevereiro 2017
A jornada do presidente Donald J. Trump à Casa Branca começou com uma simples promessa: “Vou construir um grande, grande muro em nossa fronteira sul”, anunciou em junho de 2015, quando poucos levavam a sério as ambições, ou chances, do magnata hoteleiro. “Farei com que o México pague por ele. Guardem as minhas palavras”.
O próprio Sr. Trump iria minimizar essas palavras logo após as eleições – “Em certas áreas (...) pode haver cercamento”, disse em entrevista ao programa “60 Minutes” em 13 de novembro. Em última instância, porém, não importa se é um grande muro ou apenas uma longa cerca. Se ele o construir, os imigrantes ainda sim virão.
A reportagem é de Ashley McKinless, publicada por America, 12-01-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eles virão da Guatemala, de Honduras e de El Salvador, onde uma mix apavorante de pobreza, violência e corrupção deixa famílias sem opções senão a de fugir para o norte. Estas pessoas pagarão “coyotes”, algo entre 5 mil a 14 mil dólares para três chances de lançar o dado da sorte, e conseguir cruzar a fronteira. Correrão o risco de extorsão, sequestro e estupro no trecho de 4 mil quilômetros ao norte, muitos deles andando no teto de “la bestia” (trem cheio de outros imigrantes) ou brigando para respirar no fundo de um caminhão carregado.
Não importa se for um grande muro ou apenas uma longa cerca. Se Trump o construir, eles ainda vão vir.
Quando as estradas terminam, eles caminham quilômetros no calor punitivo do deserto ao norte do México, esquivando-se dos agentes da Patrulha Fronteiriça, de cartéis e vigias americanos até que os sortudos cruzam sem ser detectados para dentro dos EUA. Alguns não conseguirão sair vivos do deserto. O restante será detido e mandado de volta ao pais de origem a um custo médio aos contribuintes americanos de U$ 12.500 cada.
Encontro-me de pé num centro de processamento de detenção ainda vazio na Cidade da Guatemala, onde são recebidos, registrados e enviados de volta para os países de origem os migrantes capturados na fronteira. Câmeras e dispositivos de gravação são proibidos, e ouço que não devo iniciar conversas com os detidos, alguns dos quais podem estar traumatizados com a repentina mudança de planos depois de viajar de tão longe e chegar tão perto da linha de chegada. O prédio fica no final da base da força aérea nacional no Aeroporto Internacional de La Aurora. No lado de dentro, a sensação é a de um refeitório escolar, com lanches em sacos plásticos e cadeiras dobráveis. Uma mesa de madeira e 12 computadores velhos em frente à sala principal dão a entender que o espaço está décadas atrasado. Música de marimba soam de autofalantes no teto como uma risada forçada.
Numa grande placa atrás da mesa lemos: “Ya estás en tu país y con tu gente” (Tu já estás em teu país e com a tua gente). É uma acolhida agridoce para muitos destes migrantes, que dizem que amam o seu país e que teriam permanecido na Guatemala se pudessem.
Os detentos começam a sair do avião, estacionado a uma distância de 100 metros aproximadamente. Os 10 primeiros são mulheres e crianças; caminham de três em três, ou em pares. Em seguida, uma fila muito mais longa de homens, jovens e velhos, inicia a procissão em direção ao prédio. Na medida em que entram no edifício, alguns soltam um sorriso. Muitos olham estoicamente para frente; outros, exaustos e visivelmente irritados, olham para o piso. Muitos ainda vestem a camisa que usavam nos centros de detenção nos EUA. Por motivos de segurança, calçados com cadarço e cintas não são autorizados. As correntes e os grilhões que seguravam foram removidos.
162 guatemaltecas preenchem as cadeiras ali dispostas. Três ou quatro vezes ao dia, quatro ou cinco dias por semana, voos trazendo nada menos que 260 migrantes chegam à base aérea. Esses números testemunham a gravidade da crise migratória, ainda que a cena não seja inteiramente sombria. Assim que todos se sentam, ocorre um encontro animado entre a representante do Ministério de Assuntos Exteriores e os migrantes que estão retornando.
“Graças a Deus, pois estamos todos vivos, quando muitos morrem nesse trajeto”, ela diz aos recém-chegados. “Não pensem que são perdedores. Vocês assumiram um risco”. Alguns viram a cabeça para o lado, outros mostram alegria. Claro está que muitas dessas pessoas já estiveram nesta situação antes.
É o caso do Miguel, de 30 anos de idade, homem robusto e voz mansa, disposta a contar sua história. Ele diz que primeiro rumou para os EUA em 2000 quando tinha 14 anos, porque não havia emprego na cidade onde morava, no norte da Guatemala. Acabou em White Plains, no estado de Nova York, trabalhando como paisagista por nove anos. Seis anos atrás, voltou para a Guatemala para cuidar do pai doente. Depois que este morreu, ele e a namorada, grávida na época, novamente rumaram para o norte. Ela conseguiu ultrapassar a fronteira, ele não.
Dois cruzamentos fracassados na fronteira e um ano e meio depois ele ainda não conseguiu se reencontrar com o filho. Diz que vai tentar a sorte novamente – talvez amanhã, talvez dentro de alguns meses.
O presidente Trump detalhou como planeja conter o fluxo desse êxodo desesperado. Mas a porta giratória do centro de deportação da Guatemala deixa bem clara uma coisa: uma política migratória que começa e termina com a fortificação da fronteira americana está fadada a errar e custar caro.
Poucos enxergam a futilidade de uma política americana de construção de um muro mais claramente do que Mauro Verzeletti, CS. Missionário scalabriniano, conhecido entre os migrantes e funcionários aqui como Padre Mauro, administra a Casa del Migrante, que provê uma estada temporária às pessoas em deslocamento, além de assistência humanitária e aconselhamento psicológico. Diariamente ele recebe uma planilha dos voos de chegada no aeroporto da Cidade da Guatemala e despacha uma van branca para os viajantes guatemaltecas que não têm para onde ir. O Padre Mauro passa grande parte do seu tempo dedicando-se às necessidades imediatas dos que chegam ao aeroporto, ministério considerado por ele essencial, mas que é apenas um curativo diante da crise migratória como um todo. O que o país precisa, diz ele, é que seus representantes e a comunidade internacional resolvam as condições que fazem que milhares de pessoas como Miguel rumam para o norte todo mês.
A situação dos migrantes e refugiados da América Central foi motivo de manchetes em 2014, quando um aumento no número de famílias e crianças desacompanhadas sobrecarregou o sistema imigratório americano. Embora as manchetes nos jornais tenham desaparecido, o número de crianças desacompanhadas apreendidas pela Patrulha Fronteiriça americana não diminuiu. Em 2016, 18.914 jovens guatemaltecas foram pegos – quase 2 mil a mais do que os 17.057 apreendidos dois anos antes.
Ao norte da fronteira, o debate político tem voltado a atenção sobre se estas famílias ou crianças devem ser consideradas migrantes econômicas, que estão sujeitas à deportação, ou refugiados, que podem reivindicar o direito legítimo a asilo. Essas categorias, porém, não se refletem na vida da maioria dos guatemaltecos, diz o Padre Mauro. A pobreza e a violência, no passado e no presente, estão profundamente interligadas no país.
Como outros países na região, a Guatemala viveu uma guerra civil devastadora que durou décadas entre militares autoritários apoiados pelos EUA e grupos rebeldes de esquerda, que foram apoiados pela comunidade indígena maia e pelos produtores rurais pobres. A guerra terminou em 1996, mas os padrões de exclusão e discriminação persistem.
Em 1993, Virginia Searing, SC, veio para Quiché, região devastada pela tática de terra arrasada do governo, para estabelecer um programa de saúde mental às comunidades vitimadas. Segundo ela, os pais e avós na região “viram os seus entes queridos serem queimados vivos, mortos a facão, torturados, violentados sexualmente. Eles passaram por isso. Como alguém pode viver tendo experienciado algo assim?
Esse trauma não resolvido, assim como a raiva impotente diante de um sistema econômico que ainda recompensa os ricos e corruptos, diz a Irmã Searing, muitas vezes se expressa na forma de violência sexual, abandono familiar e abuso doméstico e infantil.
Uma mulher que foge com os filhos que não consegue alimentar, escondendo-se de um marido que a abusa, é realmente uma migrante? Ou seria mais adequado chamá-la de refugiada?
Por décadas, os EUA promoveram políticas neoliberais como a melhor resposta econômica para a mistura mortífera da pobreza com a violência. Enquanto isso, direcionou-se a assistência estrangeira às forças de segurança estatais com históricos de direitos humanos estarrecedores.
O Acordo de Livre Comércio da América Central, assinado em 2004, prometia trazer empregos à região e reduzir a migração para os EUA. Em vez disso, segundo o Padre Mauro, esse acordo enriqueceu os oligarcas e as empresas multinacionais, e deslocou pequenos fazendeiros. Uma década depois, a Guatemala tem uma indústria exportadora de biocombustíveis em expansão – e é o quarto país no índice de desnutrição crônica do mundo: 50% das crianças com menos de 5 anos estão desnutridas, e o índice é ainda mais elevado entre as populações indígenas.
O Padre Mauro acredita que a resposta americana à crise fronteiriça de 2014 irá trazer resultados iguais aos de antes.
O governo Obama deu o seu apoio com o “Alliance for Prosperity” (Aliança para a prosperidade), um plano em 5 anos, com valores na casa dos 22 bilhões de dólares a serem recebidos pelos governos da Guatemala, Honduras e El Salvador, plano que visa reduzir os incentivos para a migração ativando o crescimento do setor privado, fortalecendo o Estado democrático de direito e combatendo a violência das gangues e do narcotráfico. Cerca de 60% desse dinheiro está reservado para medidas de policiamento e segurança nas fronteiras, e grande parte da ajuda para o desenvolvimento está focado em atrair empresas estrangeiras ao invés de ser investido em saúde, educação e segurança social. Estes serviços públicos foram prejudicados por uma cultura de evasão fiscal entre os empresários e a elite do país.
O que os 60% dos guatemaltecos que vivem na pobreza necessitam, insiste o Padre Mauro, é o acesso “a las tres T’s: trabajo, techo, tierra” (trabalho, teto, terra). É a formulação empregada pelo Papa Francisco em um discurso duro durante o II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, reunião de organizações civis de base, ocorrido em julho de 2015: “Quero voltar a unir a minha voz à vossa: terra, teto e trabalho para todos os nossos irmãos e irmãs. Disse-o e repito: são direitos sagrados”.
Os pequenos proprietários agrícolas da Nuevo Eden, coperativa de café em San Marcos, distrito exuberante, na região montanhosa ao oeste da Guatelama, vêm lutando por este direito há décadas.
No auge da guerra civil, as famílias da região fugiram para o México a fim de escapar das atrocidades perpetradas contra o povo maia por grupos militares e paramilitares.
Vilas inteiras foram arrasadas, mulheres foram estupradas, famílias foram reunidas dentro de igrejas e queimadas numa campanha brutal considerada por muitos aqui como um genocídio. A comunidade esteve em exílio por 16 anos, e quando a guerra terminou, levaram-se outros dois anos de organização e lutas para forçar o governo guatemalteco entregar o dinheiro para comprar de volta a terra prometida nos acordos de paz.
Mas ainda não havia chegado o fim dos problemas e provações. Grandes negociantes estabeleciam o preço dos grãos de café. Ter lucro é difícil, mesmo num ano bom. Então, em 2012, “roya” – fungo que, devido às alterações climáticas, está chegando a árvores em altitudes que outrora foram consideradas imunes – dissipou de 70 a 80% de toda a cultura do ano.
A produção voltou a se recuperar, graças em parte a uma parceria com a Catholic Relief Services, que em 2014 investiu capital semente para plantações de café resilientes à ferrugem e introduziu economias comunitárias e programas de empréstimo que ajudaram os produtores a diversificar suas culturas e melhorar as técnicas de cultivo. A certa altura, alcançaram uma altitude onde até mesmo as sementes mais resilientes não conseguiam pegar raiz.
O que mais preocupa estes produtores, no entanto, é o que o futuro trará aos jovens da região.
Jovens como Angelita. Aos 18 anos ela já trabalha como voluntário no corpo de bombeiros e parteira – até agora já fez cinco partos. Atua também como “smokejumper”, pessoas destemidas que caem de paraquedas em certos locais para combater o fogo. Estudou literatura e computação na escola, tem ajudado o seu pai nos campos e sua mãe na cozinha, além de jogar futebol no tempo livre. Angelita tem um curriculum de vida e uma ambição inspiradores.
Mas, como a maioria das pessoas com menos de 30 anos, ela não tem emprego nem perspectiva de dar continuidade aos estudos. Quando os amigos e amigas lhe perguntam por que ela faz tantas coisas sem ganhar nada em troca, simplesmente responde: “Es mi vocación” – sustentar a família, fortalecer a comunidade, construir o seu país constituem esta vocação. E escutá-la falar é saber que se tivesse a menor das oportunidades, ela faria tudo e muito mais.
No ano passado, Angelita e outros 20 jovens das comunidades vizinhas tiveram a chance, com o apoio do Catholic Relief Services e da Caritas Internationalis, de viajar para a Cidade da Guatemala para a formação de uma semana em “cupping”, processo de avaliação do aroma, do sabor e o corpo do café. Estes jovens se formaram no ensino médio com títulos para a docência, administração e computação, mas se orgulham mesmo é desta nova habilidade e querem compartilhá-la com as cooperativas para que os produtores possam pôr um preço mais elevado em suas colheitas. Mas enquanto um café mais competitivo pode produzir benefícios para a comunidade, ainda não é suficiente para prover o tipo de emprego formal que os jovens desesperadamente precisam, caso fiquem na região.
Angelita é um de dez irmãos; três de seus quatro irmãos homens já estão morando nos EUA. Outros em sua comunidade também migraram ou entraram para a crime a fim de terem uma renda e sustentar a família. Susana, outra participante do programa de cupping, há três anos formou-se no ensino médio com a possibilidade de lecionar e não conseguiu encontrar trabalho ainda. Os poucos postos de trabalho de professor são dados aos membros das famílias de funcionários do governo, segundo ela.
Susana disse que falou aos seus pais que planeja ir para os EUA para ajudar no sustento das irmãs menores. Diz pegará qualquer trabalho que conseguir no norte: “Colher tomates, lavar, cozinhar. Estou disposta a isso”.
Angelita também tem vontade de sair do país. Mas não consegue se imaginar abandonando sua família. Ela quer que eles se fortaleçam e se unam para ser um modelo aos vizinhos. “Venho tendo obstáculos em minha vida”, diz. Mas o seu pai, uma influência forte e carinhosa, lhe contou que, sempre que encontrasse um obstáculo, significava que algo bom está à espera do outro lado.
No discurso que proferiu na Bolívia, o Papa Francisco contou às organizações de base que não há uma solução simples, nenhum programa social em particular que vai derrubar os inúmeros obstáculos – corrupção, desigualdade, degradação ambiental, guerra – que impedem as ambições dos jovens nos países em desenvolvimento: “Não esperem uma receita deste Papa”.
Muito menos do presidente dos Estados Unidos. “O futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites”, disse o papa. “Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem”.
Os guatemaltecos sabem disso. Duas frases que se ouvem dos que refletem sobre uma saída para o ciclo intratável de corrupção e pobreza são “sociedade civil” e “classe média” – nenhuma dessas coisas pode ser construída com a ajuda estrangeira somente.
Tampouco podem também os EUA ignorar o destino de centenas de milhares de pessoas que vivem com fome constante, violência e desespero econômico além de suas fronteiras. Discursando a um outro Encontro dos Movimentos Populares, desta vez no Vaticano, dias antes da eleição de Trump, o papa proferiu uma advertência aos que responderiam ao desespero dos migrantes e refugiados construindo muros: “Existem tantos cemitérios próximos dos muros, muros manchados de sangue inocente”.
O Sr. Trump pode construir o seu muro. Mas estas pessoas continuarão a vir. Até que mães e pais deportados como Miguel se unam a seus filhos nos EUA, eles continuarão a vir. Até que professores e professoras aspirantes como Susana tenham condições de usar e passar adiante o que aprenderam, até quando alguém como Angelita for capaz de sustentar a si própria e sua família, eles vão continuar vindo.
Por fim, como observa o Papa Francisco: “Todos os muros caem – todos eles”.
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Além do muro: histórias do outro lado da crise migratória - Instituto Humanitas Unisinos - IHU