Pedimos a Anna Zafesova - jornalista do La Stampa - que representasse a extensão da atual fuga de cidadãos da Rússia.
A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada por Settimana News, 05-10-2022.
Prezada Anna, você poderia primeiro nos dizer quais são as proporções da atual saída da Rússia?
Até hoje (28 de setembro, ndr) 260.000 pessoas - contadas oficialmente - saíram da Federação Russa, poucos dias após a declaração de mobilização parcial, assim definida por Vladimir Putin: estamos falando, portanto, do número de homens que o próprio Putin afirmou querer mobilizar, ou seja, 300.000.
Há pelo menos igual número de pessoas - literalmente em fila - em direção à saída. Enquanto isso, para essas pessoas está aumentando o medo de serem paradas nas fronteiras por alguma nova medida: sabemos de muitos que, para alcançá-las mais rapidamente, estão vendendo ou abandonando carros na beira da estrada, antes que seja tarde demais.
Ou seja, estamos assistindo a um êxodo que pode ser comparado a outros conhecidos da história contemporânea, com toda a carga de drama do caso. Os russos fogem de seu país em guerra assim como se fugia, por exemplo, da Iugoslávia há 30 anos.
Você poderia fazer um perfil das pessoas que estão tentando deixar a Rússia?
Eles não são apenas jovens e não são apenas homens. A mobilização declarada por Putin é total, porque o recrutamento, na realidade, diz respeito a todos os homens. Isso é confirmado pelos vídeos que vi de diferentes regiões da Rússia: há muitos rostos que não são mais jovens entre os recrutados, não apenas acima de trinta anos, mas eu diria também com mais de quarenta e cinquenta. Oficialmente, o recrutamento atinge homens de até cinquenta anos em nível de soldados simples e até a idade de aposentadoria em nível de oficiais.
Além do que está escrito contraditoriamente nos documentos que, aliás, não foram tornados públicos, ocorreu no país uma dinâmica bem conhecida na Rússia desde os tempos soviéticos, ou seja, se os líderes, de cima, pedem um número, a burocracia, de baixo, se esforça zelosamente para fornecer um número muito maior. A "qualidade" não importa, para os burocratas a "quantidade" conta. Trata-se de um recrutamento geral. Consequentemente, homens de todas as idades estão partindo.
Os homens que Putin quer recrutar são os chamados reservistas?
Uma das poucas coisas claras que Putin disse em seu discurso é que deviam ser pessoas com experiência militar anterior, de guerra ou pelo menos de serviço militar. Em vez disso, de fato, o recrutamento também envolve homens totalmente desprovidos de experiência e competências de tipo militar e que, certamente, não podem ser definidos como reservistas.
O recrutamento está ocorrendo de forma generalizada, entre cidades e regiões, entre regiões e regiões, da mesma forma?
Como eu havia dito (aqui), antes a campanha de recrutamento estava mais orientada para o interior do que para as cidades, entre as minorias étnicas mais pobres do que a classe afluente das grandes cidades. Assistimos agora a alistamentos forçados também em Moscou e São Petersburgo: parece que as pessoas estão sendo procuradas em seus locais de trabalho, em casa ou mesmo na rua.
Mas imagino que haja indicações para direcionar-se, sobretudo, para os centros provinciais, menos informados - e menos informatizados -, portanto relativamente mais fáceis de arrastar. As minorias étnicas constituem um reservatório de recursos humanos a serem enviados para a guerra: buriates, tártaros, basquires, jaucuzis etc. Mas a novidade é que a manobra do Kremlin diz respeito, pelo menos potencialmente, realmente a todos.
Quais são as reações de quantos são recrutados?
No Cáucaso, na Chechênia e no Daguestão houve protestos de rua, pelos quais as autoridades resolveram pôr um freio aos recrutamentos.
Eu sei que houve alguns importantes confrontos com a polícia. Naquelas regiões, as autoridades federais devem ter cuidado: sabem que a população guarda armas em casa; embora sejam pessoas e jovens mais pobres e menos formados, os ressentimentos históricos sempre podem despertar rapidamente.
O caminho da corrupção é viável para evitar o recrutamento?
Certamente. Isso faz parte, desde sempre, das incógnitas sobre o - real - potencial da Rússia, tanto nas forças armadas quanto em outras áreas. Também nessa conjuntura está se recorrendo amplamente a subornos, naturalmente por aqueles que podem pagar. Não sabemos muito sobre isso porque, obviamente, quem segue esse caminho não tem vontade de falar sobre isso.
Enquanto eu sei com certeza de militares que tentaram extorquir dinheiro daqueles que não foram recrutados, fazendo-os acreditar que o eram. Múltiplos casos desse tipo se verificaram nas filas daqueles que se dirigem às fronteiras.
A fuga diz respeito apenas aos homens?
Há também muitas famílias fugindo da Rússia. Posso dizer isso porque para a Geórgia, em particular, foram criadas condições de alarme humanitário que acabaram nas manchetes, com mulheres, crianças e animais de estimação nos carros nas filas, em barreiras de montanha, principalmente desabitadas, com carência de água, comida e serviços sanitários.
Há, portanto, muitos homens que decidem ir embora com toda a família, naturalmente para não se separar e não deixar a família em situações muito difíceis.
Para quais países se dirige o êxodo?
Todos os países fronteiriços são afetados pelo fenômeno. Menos para a Mongólia, no mínimo pela dificuldade do trajeto em áreas absolutamente despovoadas. O trânsito mais problemático neste momento, como mencionei, é para a Geórgia. O chefe da região russa da Ossétia do Norte, na fronteira com a Geórgia, chegou a proibir o trânsito de carros com placas não locais, gerando assim um grau adicional de corrupção.
Quem foge deixa o carro fora da região e depois paga aos taxistas ou moradores locais para ser levado. Atualmente, são necessários pelo menos 4-5 dias para cruzar a Ossétia do Norte e chegar à fronteira.
Também leva muito tempo para chegar à fronteira com o Cazaquistão, mas já é melhor. Aqueles que conseguem cruzar encontram, inclusive, os voluntários cazaques que ajudam a encontrar acomodações temporárias em academias, cinemas e até mesquitas.
Está acontecendo - com isso - um fato simbólico muito importante, na minha opinião, ou seja, agora são aquelas populações da Ásia Central - considerados minoritárias e vassalas pelo império soviético - que prestam ajuda aos russos em fuga. É um golpe muito forte à imagem que os russos têm de si mesmos.
A maior fronteira a oeste é aquela com a Finlândia. Lá também há longas filas, mas a passagem ocorreu, até agora, sem problemas particulares, tanto porque a camada russa mais abastada vai para lá, quanto porque a Finlândia está bem organizada. Em menos de uma semana, 50.000 pessoas com passaporte russo chegaram à Finlândia. No entanto, como sabemos, a Finlândia começou a limitar as entradas.
Lembro que 70% dos russos não têm passaporte. A Finlândia é o primeiro destino para quem tem passaporte e o visto Shengen com validade máxima, ou seja, 90 dias. Os russos entram na Geórgia com passaporte, mas sem visto e podem permanecer no país por mais tempo. Eles entram no Cazaquistão com carteira de identidade e sem nenhum tipo de visto. A escolha do destino é feita de acordo com as possibilidades.
Essas pessoas sabem para onde ir e o que fazer? Elas têm um plano mínimo de migração?
Acredito que aqueles que tinham um projeto bastante bem definido já foram embora depois de 24 de fevereiro, sabendo que podem procurar e encontrar casa e trabalho noutros países e sabendo que podem contar com poupanças e títulos de formação que podem ser usados.
Quem está migrando nesta fase provavelmente não tem exatamente os mesmos recursos e não tem um projeto específico em mente. Como eu disse, é uma fuga do recrutamento e das pesadas penas previstas para quem escapar. Isso os torna verdadeiros refugiados, no sentido de que deixam de seu país sem saber onde será e como será seu futuro.
Que atitude os países europeus estão desenvolvendo em relação a esses refugiados, desta vez russos?
Como mencionado, a Finlândia - o único acesso viável da Rússia, por terra, para a Europa - está limitando os acessos. Na Finlândia, durante o verão, já se colocava o problema da passagem e recepção de russos abastados em viagens turísticas para países europeus (aqui), com o propósito de suspender as motivações turísticas, introduzindo, no máximo, medidas de entrada apenas de caráter humanitário.
Aliás, aqui observo como está ocorrendo uma singular inversão de condições entre os países do norte da Europa e do sul da Europa, em particular a Itália: de certa forma, a Finlândia agora teme se tornar a Lampedusa do norte e - devido aos Acordos de Dublin tão defendidos - de ter que se responsabilizar, como primeiro país europeu interessado pelo êxodo, pelo acolhimento de cidadãos russos e seus potenciais pedidos de asilo, para todo o Ocidente.
O que se nota mais uma vez é a ordem dispersa em que a Europa procede em relação a um cenário certamente novo, mas previsto e previsível.
Na sua opinião, a Europa deveria abrir suas portas para aqueles que estão fugindo da Rússia?
A questão é delicada: mais uma razão para ser considerada cuidadosamente em nível europeu. A Alemanha está dizendo que a fuga do recrutamento russo – por motivo de uma guerra injusta - é uma razão suficiente para conceder asilo político. França e Estados Unidos pronunciaram-se no mesmo sentido. Naturalmente, os pedidos de asilo devem ser tratados - de acordo com a lei - por indivíduos, não por grupos. Seria possível prevenir as instâncias de fachada.
Os estados bálticos e a Polônia não querem saber e já anunciaram que não concederão asilo a cidadãos russos. A Finlândia caminha no mesmo sentido, até porque, como disse, como primeiro país de acesso à Europa, deveria assumir - segundo os Acordos de Dublin - todos os pedidos de asilo, mesmo aqueles dirigidos à Alemanha, à França ou Itália, a menos que os exilados consigam chegar lá de avião.
Portanto, seria necessário um acordo entre os países europeus, mas no momento não existem as premissas.
Pessoalmente, acredito que a Europa não pode negar asilo a quem foge de uma guerra considerada injusta. Se mandadas de volta à Rússia, essas pessoas correm o risco de morrer ou de serem presas. Toda pessoa em perigo de vida ou privada de liberdade em sua pátria deve poder ser acolhida, sob pena do fracasso dos princípios fundamentais da Europa. A concretização desse princípio não é algo simples mas, precisamente por isso, a Europa deveria refletir bem e equipar-se de forma coerente e solidária.
Quem está fugindo agora está realmente manifestando sua discordância ao governo russo?
A dúvida existe. Os dissidentes já deixaram a Rússia, provavelmente, desde a primeira hora da guerra. Naquela época, a Europa não preparou nenhum caminho de acolhimento para eles. Pensou-se, justamente, nos refugiados ucranianos. Mas isso não é suficiente agora.
Aqueles que estão fugindo fazem parte daquela maioria que deixou Putin governar em troca de sua própria tranquilidade e bem-estar. Pode até ser que algumas dessas pessoas em fuga tivesse colado o “Z” no para-brisa do carro, até poucos dias atrás. Dito isso - e justamente por essa razão - o que está a acontecer representa uma virada - de forma alguma negligenciável - para a sociedade russa. Está se quebrado aquele pacto silencioso e pernicioso entre Putin e o país.
Acredito que essa virada deve ser encorajada e incentivada com o que a Europa pode disponibilizar. Se um russo é impedido de entrar na Europa hoje, o que ele pode pensar? Ele irá pensar que a Europa detesta os russos e não os quer, exatamente como a propaganda tenta convencer há anos.
No entanto, permita-me dizer que a virada de que você está falando parece ser ditada mais pela necessidade do que por alguma idealidade ...
As pessoas fogem não apenas porque querem escapar do recrutamento, mas porque estão convencidas de que, indo à guerra na Ucrânia, teriam uma grande chance de serem mortas.
Isso não é banal: elas, portanto, não têm nenhuma confiança no governo e no exército, sabem que estes não estão à altura das ambições declaradas. Ao fugir, elas demonstram que não acreditam na propaganda do regime. Isso mina radicalmente o consenso que, para o bem ou para o mal, se manteve até agora. Não é uma questão trivial.
Além das consequências militares, quais são as consequências do êxodo do ponto de vista da economia geral?
A maioria das pessoas que fogem pertence à burguesia urbana: são pessoas que possuem documentos para a expatriação, carteira de motorista, carro, títulos de estudo, experiência profissional, recursos financeiros e capacidade de organização. São pessoas que trabalham, pagam impostos e muitas vezes empregam outras pessoas.
É, portanto, bastante previsível qual poderá ser o impacto na economia geral do país a curto e sobretudo a médio prazo. Pelo que sei, já estão se criando vazios nas empresas e universidades. Algumas companhias aéreas, por exemplo, já estão com falta de pilotos. O tecido econômico russo está desmoronando para travar a guerra.
Que palavras pode falar para aqueles que estão partindo para o front?
A verdadeira bucha de canhão é aquela das regiões mais pobres e menos instruídas, aquela que vemos carregada nos ônibus com a expressão triste dos animais levados ao matadouro. Os rostos dizem muito: parecem deportados mais que soldados que vão lutar com entusiasmo pela Rússia, como gostaria o regime.
Claro: também há vídeos de sinal oposto, com pessoas de uniforme cantando e dançando entorpecidas pela vodca. Haverá também convictos. Mas nas redes sociais estão circulando principalmente vídeos de recrutas deitados no chão em ginásios, esperando para partir, equipados com kits sobrevivência já vencidos.
Em muitas regiões, essas pobres criaturas são obrigadas a trazer de casa o que precisam, inclusive o uniforme, porque não há a suficiência. Mulheres que se separam de seus homens com gritos e choros são uma realidade.
A dissociação cognitiva que se instalou nas mentes dos russos como resultado da propaganda, nessas circunstâncias, está estourando: agora parece evidente uma realidade que, durante anos, a maioria silenciosa fingiu não ver.
Que mensagens a Ucrânia está enviando aos soldados russos?
A Ucrânia criou contas nas quais os soldados russos podem escrever "Eu gostaria de me render", oferecendo-lhes anonimato. Enquanto isso, Putin ordenou que a Duma aumente para 10 anos a pena de prisão para aqueles que se rendem ao inimigo.
A intenção ucraniana é clara: na Rússia eles não saberiam quem - entre os soldados russos - foi capturado e quem se rendeu. A Ucrânia também está oferecendo asilo a soldados russos que não querem mais retornar à Federação Russa. Parece que a oferta está funcionando: algumas centenas de soldados russos teriam se rendido ao exército ucraniano.
A Ucrânia também é um país em guerra, portanto militarizado. Os métodos de recrutamento não são basicamente os mesmos?
Uma mobilização geral também está ocorrendo na Ucrânia. Isso não significa que todos os homens são enviados para lutar: significa que eles não podem abandonar seu país esperando - eventualmente - ser chamados para combater, por um determinado período de tempo. Eu diria que os métodos, o estilo e o clima são muito diferentes.
Basicamente, há uma diferença objetiva e uma consciência diferente da guerra: o povo ucraniano sabe que está defendendo seu país de uma invasão injustificada. Agredidos e agressores não são e não podem ser colocados e avaliados no mesmo plano.
Diante de tudo isso, o que faz a Igreja Ortodoxa Russa?
Nos últimos dias, não recebi nenhuma notícia de religiosos russos que protestassem contra as novas medidas tomadas pelo governo com a mobilização. Ao contrário, lemos as palavras do Patriarca Kirill que encorajou o recrutamento, a ponto de prefigurar o sacrifício na guerra e o perdão dos pecados dos combatentes.
O clero ortodoxo na Rússia parece estar muito alinhado com essas posições. Qualquer tipo de dissenso político - mas também penso que litúrgico e teológico - foi prontamente erradicado. Depois de 24 de fevereiro, vimos padres contestarem a guerra: agora, não me parece que isso ainda esteja acontecendo. Apenas padres ortodoxos fora da Rússia estão fazendo isso.