12 Setembro 2022
De 13 a 15 de setembro, o Papa Francisco estará no Cazaquistão para participar do VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais. Pedimos à jornalista Anna Zafesova que apresentasse o país em cujo contexto o encontro acontecerá.
Roteiro da viagem a ser realizada pelo Papa Francisco. (Foto: Reprodução)
A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada por Settimana News, 10-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Prezada Anna, em janeiro passado, pouco antes da invasão da Ucrânia, militares russos entraram no Cazaquistão para ajudar - segundo o Kremlin - o governo local a reprimir uma revolta organizada no exterior: o que realmente aconteceu?
Foi uma intervenção militar limitada. Coletei alguns testemunhos: alguns relatam ter visto os soldados russos, mas sem perceber sua interferência direta. Os russos teriam se limitado a guarnecer alguns locais de interesse estratégico.
Certamente não houve uma invasão em grande escala. Isso aconteceu como parte do acordo coletivo de defesa que vincula alguns países da antiga União Soviética: se um dos países membros se sentir ameaçado, pode pedir ajuda aos demais. Isso é o que aconteceu.
Lembro-me de que o evento ocorreu enquanto a Rússia já estava destacando suas tropas na fronteira com a Ucrânia: portanto, a Rússia não estava particularmente interessada, naquele momento, no Cazaquistão, nem tinha grandes recursos militares para desviar. Foi aventada a ideia de que quisesse aproveitar a oportunidade para colocar pé no Cazaquistão, o que, de fato, não aconteceu.
Aparentemente, o próprio presidente Tokayev - sabendo muito bem, como político pós-soviético, que as tropas russas são fáceis de convidar, mas muito difíceis de mandar de volta para casa - foi capaz de circunscrever a natureza da intervenção. O fato é que os militares russos voltaram em poucos dias.
A revolta foi uma autêntica revolta popular?
No caso pesou sem dúvida a determinação de eliminar o grupo no poder tempo demais e, portanto, proceder a uma rotação da elite. Lembro-me de que o Cazaquistão se tornou independente em 1991, quando a União Soviética entrou em colapso. O político que conduziu rumo à independência foi Nursultan Nazarbaeyv, ex-presidente e líder comunista quando o Cazaquistão era uma das repúblicas soviéticas.
Localização geográfica do Cazaquistão, país da Ásia Central e antiga república soviética. Estende-se do Mar Cáspio, a oeste, até as montanhas de Altai, na fronteira leste com a China e a Rússia. (Foto: Reprodução | Wikimedia Commons)
Após trinta anos no poder, em 2019, Nazarbaeyv renunciou formalmente ao mais alto cargo do Estado, assumindo o de presidente do Conselho de Segurança, órgão que preside o exército, a polícia, os serviços secretos, atribuindo-se o título de pai da nação, também para a memória futura.
A entrega de poder ao atual presidente Qasym-Jomart Tokayev foi dirigida, de acordo com um modelo bem conhecido na Rússia. Mas assim como Putin não confia em ninguém - nem mesmo nas pessoas que ele escolhe - Nazarbayev não confiava em Tokayev, e era correspondido da mesma forma.
Uma das hipóteses feitas sobre a revolta é que os homens de Tokayev quisessem eliminar a família política de Nazarbayev - e também a família de sangue. O resultado visível é que Nazarbaeyv desapareceu da cena pública desde janeiro e foi despojado de todos os encargos de que se tinha coberto. Os membros de sua família tiveram que abandonar papéis estratégicos civis e militares: uma parte da elite do país foi substituída.
O Cazaquistão continua sendo um país cheio de tensões. A revolta foi, portanto, promovida por disputas internas e alimentada por importantes questões sociais, como as evidentes desigualdades entre populações e populações - regiões e regiões - deste imenso país: algumas se sentem absolutamente desconsideradas e depredadas em favor de outras.
Outras revoltas - das quais sabemos muito pouco - já haviam sido reprimidos com sangue, principalmente nas regiões extrativistas. A economia é de fato ligada à mineração, com uma concentração muito alta de riqueza em poucas mãos, aquelas que até recentemente estavam próximas de Nazarbayev. A oligarquia do país rendia e rende muita gente insatisfeita.
Para responder em poucas palavras à pergunta, parece-me que posso dizer que manobras de controle do poder se sobrepuseram a autênticas razoes de descontentamento social por parte da população.
Na sua opinião, a acusação de Moscou de ingerência ocidental no Cazaquistão tem fundamento?
Não acredito. Os autocratas pós-soviéticos adoram falar sobre ameaças externas, tanto porque faz parte de sua formação quanto porque lhes permite justificar ações de outra forma injustificáveis, como qualquer repressão com sangue.
Francamente, não vejo as razões para eventuais ingerências ocidentais. O Cazaquistão conduziu, desde o início da independência, uma política equidistante: aderiu a toda uma série de iniciativas lideradas pela Rússia - como o Tratado de Defesa Coletiva - mas ao mesmo tempo, como país de maioria muçulmana, de língua turca, trabalhou muito com a Turquia e colaborou com os Estados Unidos e a Europa oferecendo suas matérias-primas.
Como sabemos – justamente nestes últimos tempos - está negociando o aumento do abastecimento de gás à Europa. Importantes investimentos estão em andamento no país de parte das multinacionais ocidentais, entre as quais a Eni.
O Cazaquistão por razões geográficas e econômicas está também próximo da China. Uma das hipóteses levantadas é que Tokayev tenha organizado - por si só - a revolta, para tirar Nazarbayev do poder, mas também com o objetivo de aproximar ainda mais a China, na qual era embaixador e cuja língua conhece perfeitamente. A operação de janeiro poderia, portanto, ser lida como um deslocamento dos equilíbrios nacionais para a China mais que para Moscou ou o Ocidente.
No entanto, o Cazaquistão não parece ser um país interessado em mudar seu equilíbrio internacional, ao contrário de outros países da região, como Tajiquistão ou Uzbequistão, que nos últimos anos experimentaram viradas em direção aos Estados Unidos para depois retornar à Rússia, também em consideração ao que aconteceu no Afeganistão dos Talibãs.
O Cazaquistão não tem guerras em curso, não acolhe o extremismo religioso, projeta e pretende projetar para o exterior uma imagem tranquilizadora de si mesmo, laica, aberta à modernização, tendendo mais à tecnocracia do que ao nacionalismo e ao radicalismo religioso.
Em junho foi realizado um referendo constitucional no Cazaquistão: para mudar o quê?
Basicamente, as mudanças constitucionais trazidas pelo referendo ratificaram a zeragem dos poderes de Nazarbaeyv, já que o próprio Nazarbaev os havia colocado na Constituição. O referendo confirmaria, nesse sentido, uma leitura inteiramente interna do ocorrido.
Você define o Cazaquistão como um país "laico", mas que peso têm as religiões?
A questão religiosa, na superfície, não aparece. Como eu disse, o país está longe dos extremismos. Devido à sua história é um país mais “laico” do que outros: no Uzbequistão, por exemplo, há grandes centros históricos e culturais do Islã, como Samarcanda, enquanto o Cazaquistão tem uma tradição muçulmana mais nômade e mais simples às suas costas.
Além disso, consideramos também a presença ainda significativa da minoria russa e russófona, geralmente leiga. Agora a população russa está em torno de 18% do total, enquanto na época soviética - quando o objetivo era a industrialização da República - chegou a 40% ou mais.
Dito isto, certamente existe uma tensão étnica e, inevitavelmente, também religiosa. Embora o russo continue a ser falado e não exista discriminação formal contra os russos, o governo informalmente favorece os cazaques na atribuição de cargos. Muitos russos, de fato, saíram depois da independência, porque, sendo pertencentes à elite colonial, se tornaram minoria, às vezes até questionada.
Como as distinções étnicas correspondem a tensões econômicas entre regiões com maior presença russa, mais industrializadas e mais ricas, e outras, mais rurais e mais pobres, existe a possibilidade de sobreposição de fatores étnicos, linguísticos e, em parte, religiosos. Mas, por enquanto, não me parece notar nada tão grave.
A presença russa coincide com uma presença cristã ortodoxa russa?
Basicamente sim, mas com um esclarecimento. Como disse, o Cazaquistão é um país de vocação multiétnica, também porque - como todos os países ex-soviéticos - participou, para o bem e principalmente para o mal, do melting pot característico desejado pelo regime.
Foi, portanto, meta de deportações em massa no período stalinista: populações inteiras foram deportadas para o Cazaquistão, inclusive da Ucrânia, de onde saíram os camponeses kulaks, do holodomor, a carestia organizada pelo Kremlin. Os ucranianos no Cazaquistão são agora estimados em torno de 1%.
Depois, há minorias alemãs - cristãs - estimadas em cerca de 1,3% da população: são compostas por alemães do Volga, deportados no início da Segunda Guerra Mundial - sempre por Stalin - para áreas distantes do front. Digamos que o Cazaquistão "se beneficia" hoje, se assim podemos dizer, da política de expurgos coletivos que fez com que diferentes populações vivessem juntas, tendencialmente sem interferência da religião.
No Cazaquistão há também uma pequena minoria católica, principalmente de descendência polonesa.
A maioria é muçulmana: de que tipo?
70% dos habitantes são cazaques. Os cazaques, em média, se declaram muçulmanos. Dentro do grande grupo de muçulmanos existem algumas minorias muçulmanas: 3% são uzbeques, enquanto 1,5% são uigures.
Os uigures constituem uma minoria bastante influente. O ex-chefe do serviço secreto da era Nazarbayev era uigur e foi deposto durante a revolta-golpe de Tokayev. Retomando a chave de leitura da suposta proximidade do Cazaquistão com a China, poder-se-ia levantar a hipótese do desejo de Tokayev de reduzir as influências das minorias uigures.
Não posso excluir que o medo de personagens uigures no Cazaquistão esteja ligado ao medo chinês da ajuda cazaque aos uigures em Xinjiang. É uma hipótese que seria confirmada pela crescente repressão a que os uigures são submetidos na China.
Como você vê, então, o quadro inter-religioso em que se realizará o encontro do qual o Papa Francisco participará no Cazaquistão?
Acho que o papa encontrará um país em que as tensões religiosas correspondam às tensões étnicas de que falei: um país que, no entanto, soube se mover, nas questões religiosas, de maneira perspicaz e prudente.
Com a redescoberta das raízes linguísticas e religiosas dos cazaques, após a queda da União Soviética, o país pôde acompanhar, por exemplo, o ensino e a preservação da língua russa, de forma que o Cazaquistão hoje é um país oficialmente bilíngue.
Falar da autenticidade das afiliações religiosas é claramente outra questão. Na maioria cazaque, em si muçulmana, há aqueles que se declaram ateus ou aqueles que passaram ao cristianismo. Não cabe a mim, é claro, fazer avaliações.
Observo que, de acordo com a Constituição, o Cazaquistão é um estado laico no qual há espaço para todas as religiões. Até agora o equilíbrio e o respeito entre as religiões se mantiveram. Mas, claro, já vimos muitas vezes - em países constitucionalmente muito laicos - abrirem-se rapidamente conflitos étnico-religiosos, quando estes tenham sido propositalmente fomentados pela política: a luta política - nos dias de hoje - pode facilmente transformar-se em luta religiosa ou pseudo-religiosa. Esperamos que isso não aconteça e que o encontro do qual o papa participará de 13 a 15 de julho fortaleça o diálogo.
Qual é a posição do Cazaquistão sobre a guerra na Ucrânia?
Politicamente, a guerra na Ucrânia é muito sentida por uma razão muito simples: o Cazaquistão se sente vulnerável - como a Ucrânia – em relação aos objetivos imperialistas da Rússia. Quando Putin fala sobre recuperação dos espaços imperiais russos, manifesta claramente que o Cazaquistão pode ser o próximo país na lista de suas ocupações.
Foi há poucos dias que se manifestou o ex-primeiro-ministro russo Dmitry Medvedev, agora conhecido por suas declarações: ele soltou um post no qual escreveu que chegou a hora de a Rússia invadir também o norte do Cazaquistão. A mensagem foi logo deletada. Medvedev e seus colaboradores alegaram que sua conta havia sido invadida.
Mas, considerando que Medvedev se destacou nas últimas semanas por outras declarações extremamente agressivas contra ucranianos, europeus, estadunidenses e o mundo - quase - inteiro, sua postagem resulta bastante autêntica, embora no Kremlin provavelmente tenham sentido que não o momento para tais declarações.
Essa ideia, contudo, paira no ar, pelo menos desde 1991 – quando a União Soviética ainda existia - quando Alexander Soljenitsin publicou seu tristemente famoso ensaio sobre a reorganização da Rússia: ele propunha abandonar as repúblicas da Ásia Central – por ele referidas desdenhosamente subalternas muçulmanas – e manter firme a União Eslava, composta pela Rússia, Ucrânia e Bielorrússia, acrescentando, ao império tripartite, o norte do Cazaquistão, por ser uma terra russa povoada principalmente por russos e falantes de russo, historicamente conquistada pelo Império Russo no final do século XVIII - início do século XIX.
Com tais precedentes, o Cazaquistão se sente parte envolvida do caso ucraniano. Não é coincidência que o presidente Tokaeyv tenha causado agitação em Moscou durante um recente encontro com Vladimir Putin.
Os dois presidentes estavam sentados no palco do fórum econômico de Petersburgo e de lá Tokayev declarou que nunca reconheceria os "quase-estados" - como os definiu - de Donetsk e Luhansk, os enclaves em território ucraniano na mira de Moscou desde 2014, para os quais a propaganda afirma que a Rússia está lutando com os compatriotas.
Lembro-me de que o Cazaquistão não assumiu as sanções ocidentais contra a Rússia, mas também não apoiou a Rússia nesta guerra.
Preciso esclarecer que o Cazaquistão faz parte da União Aduaneira da União Econômica da Eurásia, juntamente com a Rússia, Bielorrússia, Armênia e Quirguistão. A Rússia, portanto, esperava poder contornar as sanções a que está sujeita através do Cazaquistão que, não estando sujeito a sanções, poderia importar mercadorias para serem transferidas para a Rússia sem obrigações alfandegárias: pois bem, isso não aconteceu até agora.
Tokaeyv repetidamente, em fóruns internacionais, reiterou que o Cazaquistão nunca teria feito jogo duplo entre o Ocidente e a Rússia. Sua condenação à invasão russa da Ucrânia não é aberta, mas também não é muito escondida.
Ao contrário da Bielorrússia - que agora já parece estar completamente colonizada por Moscou - o Cazaquistão está afirmando sua independência em todas as sedes, tanto política quanto economicamente. Mesmo no último encontro - reservado - entre Tokayev e Putin em 19 de agosto passado, parece que o presidente cazaque tenha reiterado que não ajudará Moscou a contornar as sanções em seu território.
Nestes dias, percebi um sinal eloquente do escrúpulo com que o governo do Cazaquistão olha para a guerra na Ucrânia: os guardas de fronteira do Cazaquistão com a Rússia pararam todos os carros marcados com a "Z" - o conhecido símbolo da operação militar especial russa na Ucrânia -, multando os motoristas por propaganda não permitida em seu país.
Uma prática sistemática desse tipo está perturbando bastante a opinião pública russa. De fato, há muitas pessoas e famílias russas que vão ao Cazaquistão para turismo ou para fazer compras de mercadorias que estão esgotadas devido às sanções.
Você acha que uma invasão da Rússia no Cazaquistão também é possível?
O Cazaquistão é um país de dimensões gigantescas, enquanto as ambições imperiais russas não parecem coincidir com as efetivas potencialidades: isso pode ser visto na Ucrânia. Mas agora tudo é possível, pelo menos em termos de provocações.
Faz apenas algumas semanas que o boato - provavelmente colocado em circulação em Moscou para desviar a atenção dos desastres da guerra na Ucrânia - de que Putin teria dado ordens a seus generais para apresentar planos para uma operação militar semelhante no Cazaquistão; assim como, na época, ele teria tido a intenção de iniciar a guerra na Síria para desviar a atenção do fato de que a Rússia basicamente não tinha conseguido conquistar o Donbass em 2014.
É realmente difícil neste momento distinguir - em Moscou – a propaganda pura das autênticas intenções que poderiam dar lugar a decisões. Não descarto que Putin possa tentar desviar a atenção da opinião pública russa para outro alvo. O Cazaquistão, neste caso, parece ser o mais provável, devido à peculiaridade da população russa - em parte insatisfeita - que ali se encontra.
Tokayev - enquanto isso - anunciou que quer dobrar seus gastos militares: parece evidente nesse sentido que queira fortalecer suas defesas.
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Cazaquistão: um olhar sobre o país. Entrevista com Anna Zafesova - Instituto Humanitas Unisinos - IHU