Quando começou a trabalhar em seu próximo livro, Volver a Stalingrado: El frente del Este en la memoria europea (1945-2021), o professor das universidades Ludwig-Maximilian de Munique (Alemanha) e Santiago de Compostela (Espanha), Xosé Manoel Núñez Seixas, não imaginava uma guerra como as de antes no extremo oriental da Europa. Nem seus pares e líderes mundiais a imaginavam em inícios deste ano, apesar da escalada discursiva entre o presidente russo Vladimir Putin e o presidente ucraniano Volodymir Zelenski.
Agora, diante das horripilantes cenas que são reproduzidas ininterruptamente nas telas do mundo todo, o historiador e vencedor do Prêmio Nacional de Ensaio da Espanha, em 2019, lembra “algo que a História demonstra e que aqueles que promovem a guerra sempre esquecem: sabe-se como os conflitos bélicos começam, mas nunca como acabam”.
Nos últimos dias, Núñez Seixas foi consultado sobre um dos temas sobre os quais possui décadas de especialização: os nacionalismos, em particular os europeus. Em um artigo publicado no jornal espanhol El País, classificou a Ucrânia como um país dual e analisou o conflito em seus múltiplos aspectos, à luz do que a História configurou na Europa do século XXI.
Estaríamos testemunhando o germe de uma III Guerra Mundial? “Em princípio eu diria que não, que a situação é diferente. Não vejo os tanques russos cruzando os Pirineus, mas no passado ninguém também esperava ver os tanques alemães no Cáucaso”, responde à revista Ñ do extremo oeste da Europa.
A entrevista é de Débora Campos, publicada por Clarín-Revista Ñ, 10-03-2022. A tradução é do Cepat.
No artigo “Putin e sua nova Grande Guerra Patriótica”, você destacava que embora Putin tenha apresentado a invasão da Ucrânia como uma operação “cirúrgica e pontual”, com elementos de guerra híbrida, o que vemos não passa de uma guerra clássica. Como isso é entendido?
Não conhecemos quais eram os planos russos para a invasão, que sem dúvida já existiam há tempo, mas desde o início as modalidades de guerra tecnológica e híbrida foram combinadas com um tipo de guerra terrestre clássica, que lembra as estratégias previstas no Pacto de Varsóvia para invadir a Europa ocidental através da Alemanha: bombardeios de precisão em alvos estratégicos e avanço de colunas de blindados, seguidas de infantaria. No entanto, os carros de combate nas cidades são pouco eficazes. E é aí que a resistência ucraniana se concentra e busca ganhar tempo, propondo uma guerra de desgaste ao inimigo.
A confiança europeia? Estávamos há mais de vinte anos sem guerras na Europa, e essa escala era desconhecida desde 1945. Não é comparável às guerras de secessão iugoslavas, tanto por sua maior intensidade e dimensões, como pelo fato de que a Rússia possui arma nuclear. Pensávamos que as guerras do século XXI, como teorizou por exemplo Mary Kaldor, seriam diferentes: com menos incremento de tropas no terreno, mais tecnológicas, financeiras, econômicas...
O que vemos na Ucrânia nos leva de volta às cenas que conhecemos da guerra germano-soviética, um pouco menos, embora o número de baixas seja muito inferior. Putin nos devolveu subitamente ao século XX, embora continuasse havendo guerras “clássicas” na África e no Oriente Médio (no Iraque, por exemplo).
Há quem identifique Putin com um comunismo démodé e a Ucrânia com a modernidade europeia. No entanto, você relaciona Putin à memória da Grande Guerra Patriótica de 1941-45. Qual é a ligação e por que considera que o presidente russo faz esse alinhamento de sua política exterior?
Existem versões muito simplistas que ainda veem Putin e o Kremlin como alguma espécie de sobrevivente ou resíduo da União Soviética. Um novo czar vermelho. Certamente, Putin é nostálgico da URSS, como muitos cidadãos russos, mas não de seu sistema sociopolítico ou da economia planificada, muito menos dos ideais que possam restar do comunismo.
Para ele, e para muitos cidadãos russos identificados com sua visão de nação, o fundamental é garantir a continuidade do Estado russo, desde a época imperial, e de sua área de influência geopolítica. Putin despreza o “Ocidente” e tudo o que significa, da democracia representativa à ampliação e aprofundamento dos direitos humanos e sociais, e considera que a Rússia faz parte de um domínio histórico-cultural específico, Eurásia.
Para os governantes soviéticos, desde Kruschev, a vitória de 1945 sobre Hitler e a experiência do que chamavam a “Grande Guerra Patriótica” tinha sido o autêntico caldo cultural da identidade soviética, que enxergavam como uma extensão da identidade pan-russa”, cujo núcleo fundamental eram os povos eslavos (russo, bielorrusso, ucraniano). Seria uma vitória obtida pelo povo soviético/russo, que demonstraria sua força e virtudes inatas contra o “fascismo”.
Nessa versão, Stalin desaparecia ou passava para segundo plano (embora Stalin tenha se tornado novamente popular na Rússia a partir do início do século XXI, visto como o forjador de um país poderoso e temido, a mão de ferro necessária para vencer a guerra contra Hitler), e o socialismo se atenuava. O importante era a pátria e a integridade do Estado. Essa visão ignorava o pacto germano-soviético, a invasão da Polônia Oriental, em 1939, a anexação à força dos Estados Bálticos, em agosto de 1940, a agressão à Finlândia, em 1939-40, as deportações em massa ao Gulag...
Por outro lado, na Ucrânia independente desde 1991, praticou-se uma política da memória que oscilou entre dois polos. Um, a “nacionalização” ucraniana da Grande Guerra Patriótica, exaltando que todos os combatentes (nacionalistas ucranianos contra os soviéticos, poloneses e, às vezes, os nazistas, partisans soviéticos, soldados alistados no Exército Vermelho) teriam lutado pela liberdade da Ucrânia.
Outro, a etnificação e homogeneização do passado, eliminando qualquer traço do período soviético, promovendo a memória dos milhares de nacionalistas ucranianos que colaboraram com os nazistas, pelo menos por um tempo, em 1941-43, ignorando de passagem o antissemitismo e pró-fascismo de muitos deles, e apresentando a Ucrânia como a vítima do Holodomor, a fome de 1933/34 que provocou a morte de milhões de camponeses ucranianos, visto como um genocídio em massa perpetrado por Stalin contra os fundamentos demográficos e culturais da identidade ucraniana.
No entanto, os ucranianos não podem ser reduzidos a nazistas ou pró-nazistas, pois a Ucrânia é uma sociedade complexa, quase dual (no oeste, de língua ucraniana e nacionalista, no centro e leste, de língua russa e menos nacionalista), mas também complexa e rica em nuances. A guerra, no entanto, eliminará as nuances e polarizará as visões do passado e do presente.
Há décadas você pesquisa as lógicas dos nacionalismos europeus. Uma vez iniciada a guerra, como você considera que atuam esses nacionalismos que convivem tanto na Rússia como na Ucrânia?
As guerras polarizam e reforçam os extremos. A versão do nacionalismo russo neoimperial e tendencialmente homogeneizador que o regime de Putin representa é reforçado graças à propaganda e seu controle dos meios de comunicação, em uma democracia iliberal submetida a um presidencialismo autoritário.
Na Ucrânia, espera-se uma radicalização semelhante, não obstante, desde o início da guerra, também se constata que os barulhentos setores da direita radical têm menos protagonismo, frente a um nacionalismo mais inclusivo que vê na Rússia o principal inimigo da modernização e “ocidentalização” da Ucrânia, mas que, ao mesmo tempo, é bilíngue e não estigmatiza o “russo” tanto quanto ao regime de Putin, vendo-o como uma reencarnação de Hitler e da invasão alemã de 1941.
Você caracterizou a Ucrânia como um país muito dual. Poderia explicar em que consiste essa dualidade e como essas regiões e identidades reagem, agora que os tanques russos avançam pelas ruas ucranianas?
Conforme eu destacava antes, existe uma Ucrânia ocidental (Galícia e Volínia, fundamentalmente) que pertenceram ao Império Austro-Húngaro até 1918, à República da Polônia, entre 1918 e 1939, e entre essa data e 1991, à República Socialista Federada Ucraniana da URSS. Fortemente nacionalista, graças em parte à maior implantação do nacionalismo ucraniano, nascido no século XIX, favorecido pelas maiores liberdades existentes na monarquia dos Habsburgos. E uma Ucrânia central e oriental, majoritariamente de língua russa, integradas na época no império czarista, depois na URSS.
A essas regiões se juntaram outras, como Bucovina (também austro-húngara e depois romena) e parte da antiga Rutênio Subcarpática (austro-húngara e depois tchecoslovaca, até 1939), bem como a Crimeia, tártara e depois etnicamente russa. Paradoxalmente, apenas sob o domínio soviético foi que a Ucrânia experimentou algo parecido a uma unificação de todos os seus territórios e ocorreu, durante um tempo (anos 1920 e 1930), uma primeira oficialização do idioma ucraniano, a difusão de símbolos comuns, etc.
A Ucrânia ocidental, em grande parte, acolheu os alemães em 1941 como libertadores. Na Ucrânia central e oriental, a recepção foi outra. Todos sofreram sob a ocupação alemã, mas nas regiões ocidentais o colaboracionismo com os nazistas e a força dos nacionalistas ucranianos foram muito maiores. A Ucrânia soviética posterior a 1945 destacou o papel da Ucrânia no esforço bélico soviético, celebrou as vítimas da ocupação (sem individualizar, no entanto, os judeus) e reprimiu o nacionalismo que se refugiou na diáspora ucraniana da Alemanha, Canadá, Estados Unidos e América do Sul (também Argentina).
Desde meados dos anos 1980, e até hoje, na Ucrânia ocidental se cultivou o legado dos nacionalistas “malditos” dos anos 1940, e na Ucrânia central e oriental permaneceu o respeito à memória antifascista e ao papel ucraniano nela. Apesar das tentativas do Governo de Kiev em promover a língua ucraniana, inclusive rejeitando a russa na Administração, a verdade é que a cultura e a língua russas são dominantes em boa parte do país. Lembro-me do promotor de uma rádio ucraniana de Lanús, de origem cossaco, que me dizia em 1999 que estava escandalizado, pois entre os imigrantes ucranianos que chegavam à Argentina, quase todos falavam apenas russo.
No entanto, é preciso levar em consideração que, em 1991, a grande maioria dos russófonos também votaram a favor da independência da Ucrânia, que a convivência entre as duas línguas é fluida e pacífica, que se sentir culturalmente russo não significa para muitos ucranianos menosprezo à sua identidade política e nacional ucraniana, apesar de tudo.
E o fato é que os russófonos não receberam os soldados de Putin como libertadores, muito pelo contrário. Como invasores. E mais, na cidade de Kharkiv, destruída nesses dias pelos agressores russos, entre sua população (quase toda russófona), mantinha-se com grande força a memória da resistência local frente aos invasores alemães em 1941-44. A guerra, no entanto, está provavelmente consolidando o sentimento nacional ucraniano com mais força do que trinta anos de políticas públicas, culturais e de memória.
É curioso que recorramos aos historiadores para perguntar como será o futuro, mas considera que essa invasão possui elementos para levar a uma III Guerra Mundial?
Em princípio eu diria que não, que a situação é diferente. Mas apenas em princípio. Como mostrou, por exemplo, Christopher Clark, em Os sonâmbulos, em agosto de 1914, as elites políticas e diplomáticas europeias também não acreditavam que estouraria uma guerra, e jogaram uma arriscada partida de pôquer diplomática movida pelos interesses imediatistas, que levou a um confronto que mudou o mundo, a visão da guerra, a sociedade e a economia, além da cultura.
Hitler também não pensava que a invasão da Polônia em 1939 desencadearia uma guerra mundial, e acreditava que a França e Grã-Bretanha recuariam. Do mesmo modo, em momentos como a crise dos mísseis de Cuba, em 1961, ou em algumas fases da Guerra do Vietnã, também se especulou que poderia ocorrer uma nova conflagração.
Aqui, depende muito de quais são os autênticos objetivos de Putin e seu regime, que em parte não conhecemos. Se “só” quer humilhar o Ocidente ou se quer ir além. Não vejo os tanques russos cruzando os Pirineus, mas no passado ninguém também esperava ver os tanques alemães no Cáucaso.
Com a invasão à Ucrânia, começa a ganhar forma novamente um mundo bipolar?
Bipolar não será. Em todo caso, tripolar, pois a China é a autêntica grande potência, que no momento está se colocando “de lado” no conflito, atuando como salva-vidas de Putin, embora não enxergará com bons olhos uma escalada nuclear. Um mundo tripolar em que a Europa estará ainda mais enfraquecida (o Brexit, por um lado, e as dúvidas norte-americanas, por outro) e as potências emergentes que, há alguns anos, parecia que teriam mais a dizer no tabuleiro estratégico mundial, como Índia ou Brasil, não acabam de decolar e se consolidar como autênticos “hegemons” em seus espaços geográficos, razão pela qual acho difícil que seja tetra ou pentapolar.
Em todo caso, a hegemonia norte-americana permeada por uma multipolaridade regional, sim, é coisa do passado. Por outro lado, a política internacional será tri ou tetrapolar, mas cedo ou tarde o dinheiro continuará circulando livremente, em uma economia mundial que, de fato, está dominada pelo livre mercado, diferente de outras épocas. Nesse aspecto, talvez presenciemos uma globalização paradoxal, limitada a somente alguns aspectos. A África e receio que a América Latina continuarão sendo, de diversas formas, as ausentes.
Putin é comparado a Hitler. Embora os tempos e as condições não sejam comparáveis, que aspectos entre as lideranças políticas dos dois podem ser coincidentes e quais não?
Putin é um presidente autoritário, com tendências autocráticas, que restringe a divisão de poderes, a independência do poder judiciário, prende opositores ou impossibilita suas vidas, às vezes, os elimina. É um clássico exemplo de democracia iliberal, o modelo almejado por outros movimentos de direita radical na Europa e na América (Trump foi e vai por aí), mas também por governos como o de Viktor Orbán, na Hungria. Deseja reconstruir a esfera de influência imperial da Rússia.
Não é um Estado totalitário baseado em um conceito biológico-genético de raça e na expansão imperial sobre todo o continente, como o nazismo. Naturalmente, um Putin reforçado com uma possível vitória militar na Ucrânia, que humilhe a Europa ocidental e a OTAN e que conquiste um apoio popular, pode levar seu regime a evoluir para uma ditadura sem máscara. É o que em parte está acontecendo na Bielorrússia, apesar dos protestos de uma oposição semitolerada, com as asas cortadas e constantemente reprimida, ainda que de forma mais seletiva do que no Terceiro Reich.
Do mesmo modo, pensa-se que a OTAN, os Estados Unidos e a Europa formam um bloco. Poderia descrever qual a posição de cada um desses jogadores no conflito?
É difícil saber agora. Os Estados Unidos tinham parado de enxergar a Europa como área prioritária de sua política exterior, e desde a presidência de Obama, talvez antes, tinham priorizado a região da Ásia oriental e o Pacífico. O grande competidor do futuro seria a China. No entanto, o soco na mesa de Putin nos lembra que a Europa é um tabuleiro de disputa geoestratégica.
A OTAN será fortalecida, sem dúvida. Até dez dias atrás, perguntava-se para que servia a Aliança e se não seria mais conveniente dissolvê-la, uma vez encerrada a Guerra Fria. Esta guerra confere um novo protagonismo aos “falcões” contra as “pombas”, em todos os Estados membros, aos partidários do aumento do gasto militar.
A União Europeia receberá um duro golpe em sua legitimidade exterior. Ficou demonstrado mais uma vez que não existe uma política exterior comunitária clara, e a sessão de alguns dias atrás, no Parlamento Europeu, quando foi aprovado apoiar o pedido de ingresso da Ucrânia na União, é uma bravata. Em seguida, apareceram alguns primeiros-ministros, como o da Holanda, lembrando que isso teria que ser visto e negociado, sobretudo os custos.
Curiosamente, a Rússia pode surgir como o outro exterior, o que serviria de base para uma frágil identidade europeia, que a União Europeia não foi capaz de construir com elementos identitários fortes. Em um debate de intelectuais e políticos sobre a identidade europeia, realizado anos atrás, em Estrasburgo, um colega português sugeriu que se algo caracterizava os europeus, em relação à identidade, era sempre nos perguntar quem somos. Um antigo ministro estoniano respondeu: parem de histórias, a Europa é tudo o que a Rússia não é. Causa medo que essa visão, muito báltica, prevaleça.
Para encerrar, você dizia que o programa de Putin é a reconstrução da Rússia Imperial. Em um futuro próximo, quais são as implicações desta visão e como a Europa pode reagir?
O cenário que me parece mais plausível é o de uma semiocupação da Ucrânia, forçando o Governo de Zelensky a ceder, substituindo-o por um presidente pró-russo e tutelado de Moscou, talvez com tropas russas sobre o terreno; e uma divisão do território, com a Rússia incorporando, no mínimo, as regiões orientais de Donbass e Crimeia. A questão é se pararia por aí ou tentaria fazer algo parecido com os países bálticos, membros da União Europeia e da OTAN.
Em todo caso, embora a União Europeia tentou mostrar os dentes, a OTAN descartou qualquer intervenção em solo ucraniano. E as sanções econômicas castigarão a economia russa, mas também terão consequências sobre as europeias. É significativo, não obstante, que a Rússia continue fornecendo gás (cortar o fluxo seria um grave problema energético para Europa Central, muito dependente do gás russo) e petróleo, produtos não afetados até início de março pelas sanções.
Talvez, em parte, seja por isso que Putin atacou no inverno. A médio e longo prazo, parece que enfrentaremos uma nova pós-guerra fria, em que serão delimitadas zonas de influência geoestratégicas ditadas pela força e em que será difícil fazer prevalecer o Direito Internacional e a garantia à integridade dos Estados. Quem enfrentará a China, caso decida invadir Taiwan? É um retrocesso ao mundo de cinquenta anos atrás.