Guerra na Ucrânia e além, até que ponto a diplomacia do papa realmente funciona? Artigo de Giovanni Maria Vian

Foto: Oleksandr Ratushniak | UNDP Ukraine, Flickr

04 Outubro 2022

 

- As novidades do Papa Francisco são indubitáveis e significativas, a ponto de ofuscar os elementos de continuidade, que também são muito presentes. Entre essas inovações está a comunicação, efetivamente praticada pelo próprio pontífice.

 

- Nos primeiros meses de seu pontificado, surpreende a grande oração na Praça São Pedro pela Síria, que continua a ser devastada por uma longa e sangrenta guerra fratricida. A mediação entre os Estados Unidos e Cuba também é importante.

 

- Fica a questão de saber se o primeiro papa não europeu em treze séculos ajudará a superar as barreiras entre o hemisfério norte e o hemisfério sul do planeta.

 

O artigo é do professor Giovanni Maria Vian, historiador e ex-diretor do Osservatore Romano, publicado por Domani, 03-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

No décimo ano de um pontificado que historicamente vai se colocando entre aqueles de longa duração, já é possível começar a refletir com certa amplitude sobre sua dimensão internacional. Como é óbvio na história do instituto papal, as novidades se combinam com a persistência. Aliás, é precisamente essa dialética que constitui grande parte do interesse e - porque não - também do fascínio que desperta a Igreja de Roma, confirmados sem dúvida nos últimos anos pelo sucesso internacional e popular das duas séries televisivas de Paolo Sorrentino, para se limitar a apenas um exemplo bem conhecido.

 

E as novidades do Papa Francisco são indubitáveis e significativas, a ponto de ofuscar os elementos de continuidade, que também são muito presentes. Deve-se acrescentar, então, que entre essas inovações estão a comunicação, praticada com eficácia pelo próprio pontífice, e a intenção de renovar as estruturas romanas e toda a Igreja, mais vezes apresentada como radicalmente reformadora, mas sempre declarada como proveniente do mandato do colégio cardinalício reunidos na sé vacante em 2013. No entanto, a implementação dessas novidades mostrou limites evidentes, que de fato reduzem seu alcance. Com efeitos sobre o futuro que são difíceis de conjecturar.

 

Ucrânia sob ataque

 

Para ilustrar o quanto afirmado acima, vale a pena começar pela trágica situação internacional atual. Uma situação que, com uma expressão afortunada, Bergoglio há tempo vem chamando de guerra mundial "em pedaços", mas que muito recentemente, falando em 10 de setembro no plenário da Pontifícia Academia das Ciências, descreveu de outra maneira: um conflito que, inclusive, “hoje talvez possamos dizer ‘total’”, enquanto “os riscos para as pessoas e para o planeta são sempre maiores”.

 

Em seguida, lembrando que seu predecessor João Paulo II - como seu sucessor Bento XVI, testemunha direta da pior tragédia bélica do século passado – havia agradecido a Deus porque "o mundo havia sido preservado da guerra atômica", o pontífice acrescentou que "infelizmente devemos continuar a rezar por esse perigo, que deveria ter sido eliminado há tempo”. Com uma alusão muito cautelosa, mas transparente, às reiteradas ameaças russas dos últimos meses, diante das quais o Papa Francisco ainda não havia assumido uma posição explícita, apesar de sua evidente condenação da dissuasão nuclear, aliás recorrente no magistério papal das últimas décadas.

 

A atitude pessoal de Bergoglio em relação à agressão contra a Ucrânia foi atestada, de fato, em duas constantes: a denúncia muito clara do conflito e seus horrores, cada vez mais sofridos, explícitos e dramáticos, a que se somaram a solidariedade e a proximidade com o povo agredido, expressas também na presença de enviados papais na Ucrânia, por um lado; por outro lado, o silêncio sobre os responsáveis pelo início das hostilidades em 24 de fevereiro, que foi acompanhado de vários sinais de atenção e disponibilidade para com os agressores.

 

A posição sobre a guerra

 

Suscitou sobretudo estupor a afirmação do papa sobre os "latidos da OTAN à porta da Rússia" durante um encontro com o diretor do Corriere della Sera no início de maio. Publicadas no maior jornal italiano, algumas semanas depois as palavras surpreendentes foram apenas atenuadas pelo próprio pontífice, que as atribuiu a "um chefe de Estado, um homem sábio", durante uma longa conversa com os diretores de uma dezena de revistas dos jesuítas, cujo texto foi então publicado na La Civiltà Cattolica em 18 de junho. Com essa premissa explícita marcada pelo pontífice: “Aqui não há bons e maus metafísicos, de forma abstrata. Algo global está emergindo, com elementos que estão muito entrelaçados entre si”.

 

E logo depois especificou: “O que estamos vendo é a brutalidade e ferocidade com que esta guerra é conduzida pelas tropas, geralmente mercenárias, usadas pelos russos. E os russos, na realidade, preferem enviar chechenos, sírios, mercenários. Mas o perigo é que só vejamos isso, que é monstruoso, e não vejamos todo o drama que está se desenrolando por trás dessa guerra, que foi, talvez de alguma forma, provocada ou não impedida. E registro o interesse em testar e vender armas. É muito triste, mas no fundo é isso que está em jogo. Alguém pode me dizer a este ponto: mas você é a favor de Putin! Não, não sou. Seria simplista e errado dizer algo assim. Sou simplesmente contrário a reduzir a complexidade da distinção entre os bons e os maus, sem pensar sobre raízes e interesses, que são muito complexos”. Em essência, uma confirmação da não usual frase sobre a OTAN, ainda que articulada, mas de fato ainda mais reforçada por uma série de distinções.

 

Significativo nesse sentido sobre as dificuldades e as críticas suscitadas pelas afirmações papais é o comunicado da Santa Sé divulgado em 30 de agosto. As palavras do pontífice e de seus colaboradores “devem ser lidas como uma voz levantada em defesa da vida humana e dos valores a ela conectados, e não como tomada de posição políticas. Quanto à guerra de amplas dimensões na Ucrânia, iniciada pela Federação Russa, as intervenções do Santo Padre Francisco são claras e unívocas ao condená-la como moralmente injusta, inaceitável, bárbara, sem sentido, repugnante e sacrílega”. Adjetivos, estes últimos, escolhidos em crescendo pelo papa no curso de seus repetidos apelos: oitenta em duzentos dias de guerra, como ressaltou em 11 de setembro o Sismógrafo, o site multilíngue especializado em informação religiosa dirigido pelo chileno Luis Badilla que as registra com pontualidade à medida de são proferidas.

 

Indiretamente, porém, é o comunicado que acabamos de mencionar que confirma que é precisamente a comunicação direta e altamente eficiente do papa que torna igualmente difícil a explicação de fora da posição, por sua natureza diplomática, da Santa Sé.

 

Em outras palavras, os historiadores do futuro certamente levarão em conta as expressões altamente calibradas elaboradas na Secretaria de Estado e aquelas expressas em outros momentos pelo secretário de Estado, Cardeal Pietro Parolin, e pelo arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário para as relações com estados, inclusive sobre o direito de defesa. O que claramente prevalece e permanece, na opinião pública, mas também nos círculos especializados, é, no entanto, o que o papa diz, de forma mais ou menos matizada.

 

Novidade, portanto, e continuidade. Como acabaram de documentar para o último século e meio - da data divisor de águas de 1870 a 2020 - treze especialistas em The Vatican and Permanent Neutrality (O Vaticano e a Neutralidade Permanente, em tradução livre, Lexington Books) organizado por Marshall J. Breger ed Herbert R. Reginbogin, o livro examina primeiramente o crescimento muito rápido da projeção internacional da sé romana entre a tomada da Porta Pia e os Pactos Lateranenses (1870-1929), paradoxalmente precisamente quando sua base territorial é reduzida aos mínimos termos: palácios do Vaticano, basílica e alguns jardins vigiados por sentinelas italianas, e sem que os papas saíssem desse perímetro mínimo por sessenta anos. Jacques Maritain, embaixador francês junto à Santa Sé (1945-1948) observou isso no relatório de fim de missão e confirmou-o com documentos há vinte anos Jean-Marc Ticchi no original Aux frontières de la paix. Bons offices, médiations, arbitrages du Saint-Siège (1878-1922).

 

The Vatican and Permanent Neutrality

 

Depois vieram os anos sombrios da "longa Segunda Guerra Mundial" (1931-1945), depois o confronto da Guerra Fria (1950-1990) e, por fim, os últimos trinta anos. Este último período é caracterizado, entre outras coisas, pela opção pelo multilateralismo e pela não proliferação nuclear, num contexto em que a autoridade moral da Santa Sé e da própria Igreja Católica é abalada e minada pela explosão mundial do escândalo dos abusos e da corrupção financeira, como aponta o segundo organizador do livro na conclusão.

 

Não é fácil, entre os muitos volumes sobre o Papa Francisco, evitar aqueles cortesãos ou, ao contrário, aqueles insensatamente depreciativos e, em vez disso, encontrar aprofundamentos de viés histórico, pelo menos intencionalmente, ou documentais. Para decifrar a visão do mundo segundo Bergoglio, portanto, é melhor consultar o livro entrevistas El jesuita, publicado em 2010 e traduzido para o português após a eleição em 2013 com o título Papa Francisco (Ed. Paulinas).

 

Respondendo aos amigos jornalistas Francesca Ambrogetti e Sergio Rubín, o arcebispo de Buenos Aires dizia que “a história nos parece um desastre, um desastre moral, um caos. Quando se pensa em impérios erguidos ao preço do sangue de tantas pessoas, de povos inteiros subjugados; quando se pensa em genocídios como o povo armênio, ucraniano e do povo judaico que vocês mencionam”, em suma, quando se olha para a “história recente e até para a história um pouco menos recente, dá vontade de arrancar os cabelos”. Ideias claras, portanto, que se encontram com variações durante o pontificado, especialmente nas várias entrevistas.

 

Papa Francisco – Conversas com Jorge Bergoglio

 

Responde o Papa Francisco

 

As entrevistas, que começaram com Leão XIII e, embora muito raras, não desconhecidas dos papas, são privilegiadas pelo pontífice desde 2013 (até 2015 estão recolhidas em Responde o Papa Francisco, publicado pela Marsílio e traduzidas em quatro idiomas). Aberta pela coletiva de imprensa no voo de volta da primeira viagem internacional ao Brasil e pela memorável conversa com o diretor de La Civiltà Cattolica, publicada em vários idiomas por dezesseis revistas jesuítas, mais tarde as entrevistas com Bergoglio se multiplicam desmedidamente em jornais, Tv, livros, acabando por se repetir e se inflacionar.

 

Em 2017, "de um nível muito diferente, pelas questões tratadas e pela profundidade do argumento" é o livro entrevistas Politique et société do estudioso da comunicação Dominique Wolton (menos indicativo é o título italiano Dio è un poeta, em português Um futuro de fé, pela Planeta). O juízo exato é de Lucetta Scaraffia, autora no mesmo ano de um perfil denso e penetrante do pontificado em Francesco, Il papa americano (Vita e Pensiero, traduzido por sua vez para o francês e o espanhol), onde a historiadora descreve claramente a “nova forma de intervir na política internacional" de Bergoglio e ressalta o seu" envolvimento pessoal para a paz, mesmo à custa de ‘perder a cara’ se as suas intervenções não derem os resultados desejados".

 

Francesco, il papa americano

 

As metas do Pontífice

 

O cenário evocado por Scaraffia é realmente vasto, e as metas das viagens internacionais são significativas, não raramente seguindo os passos de seus antecessores, outras vezes com escolhas pessoais: Israel e Palestina, a Colômbia, palco da mais antiga guerra interna de um país latino-americano, o México ensanguentado pela violência a ponto de a conversa franca do Papa suscitar polêmicas ressentidas, depois a África escolhida para abrir o jubileu extraordinário da Misericórdia e as Filipinas. Até a Cracóvia para uma Jornada Mundial da Juventude, mas com uma visita a Auschwitz onde Bergoglio “liquida a unicidade do Holocausto” deixando claro que existe “um vínculo imediato entre aquela tragédia e os terríveis acontecimentos que estamos testemunhando hoje”.

 

Nos primeiros meses do pontificado, surpreende a grande oração na Praça São Pedro pela Síria, sobre a qual não caem os mísseis estadunidenses, mas que continuará a ser devastada por uma longa e sangrenta guerra fratricida. Também é importante a mediação entre os Estados Unidos e Cuba, possibilitada sobretudo pela ação dos respectivos episcopados; na antiga “pérola da coroa” espanhola é o terceiro pontífice a viajar, mas não por acaso unindo os dois países americanos no mesmo itinerário. Alguns meses depois, Francisco retorna à ilha caribenha, mas para uma escala curta. De fato, em uma sala do aeroporto de Havana, o papa de Roma se encontra com o patriarca de Moscou e assina uma declaração conjunta com Kirill.

 

A ocasião é uma estreia absoluta, mas os frutos não são os esperados, como se verá após a agressão russa contra a Ucrânia, abençoada pelo poderoso hierarca ortodoxo, por isso rudemente avisado pelo pontífice no Corriere della Sera de 3 de maio, onde se lê que o patriarca "não pode se transformar no coroinha de Putin". Em um contexto ecumênico cada vez mais problemático porque o mundo ortodoxo, já dividido pelo fracasso do concílio pan-ortodoxo de Creta provocado em 2016 por Moscou, cada vez mais hostil à igreja de Constantinopla, estilhaça-se em mil pedaços: as críticas contra Kirill se tornam cada vez mais duras, até 31 de agosto, quando em Karlsruhe o presidente federal alemão Frank-Walter Steinmeier abre a décima primeira assembleia do Conselho Mundial de Igrejas com um discurso muito claro onde denuncia o patriarcado de Moscou por abençoar a guerra de agressão contra a Ucrânia. "Hoje, os líderes da Igreja Ortodoxa Russa estão levando seus fiéis e toda a sua igreja por um caminho perigoso e blasfemo que vai contra tudo o que eles próprios acreditam".

 

As relações com a China são extremamente difíceis, com as quais a Santa Sé chegou a um controverso "acordo provisório" sobre a nomeação de bispos, assinado em 2018, renovado em 2020 por dois anos e que está prestes a ser novamente confirmado apesar da oposição e das críticas também na Igreja, especialmente daqueles católicos chineses que se sentem abandonados por Roma. Em outro cenário, certamente de menor relevância, mas simbolicamente importante pela história recente, bem como pela presença do papa argentino na sé romana, é a situação em vários países da América Latina, quase todos visitados por Francisco, exceto seu próprio país, do qual, aliás, acompanha diariamente cada evento com atenção.

 

Na Nicarágua, a ditadura de Daniel Ortega de Roma obteve primeiro o afastamento do bispo auxiliar de Manágua, para depois chegar à expulsão do núncio e até das religiosas fundadas por Madre Teresa, enquanto o bispo de Matagalpa está de fato em prisão domiciliar. Em essência, uma perseguição aos católicos e à Igreja que resultou em um apelo aprovado por grande maioria em 12 de agosto pela Organização dos Estados Americanos, mas que não suscitou intervenções papais particulares nem atraiu a atenção da mídia.

 

Nas dezenas de encontros com Wolton, solicitado pelo interlocutor francês, o pontífice abordou muitos temas de interesse internacional entre 2016 e 2017. Além, é claro, do imponente fenômeno migratório, sobre o qual Bergoglio - descendente de imigrantes italianos na Argentina que acidentalmente escaparam de um naufrágio graças ao fato de ter embarcado em outro transatlântico - retornou inúmeras vezes, se destaca a questão da Europa e de suas responsabilidades, mas onde as palavras do papa têm pouco efeito.

 

Igualmente pouco convincente porque, de fato, removida, resulta a clássica questão do conceito de guerra justa porque "a única coisa justa é a paz". Mais interessante, por outro lado, é sua afirmação de que os muçulmanos se beneficiariam “em fazer um estudo crítico do Alcorão, como fizemos com nossas Escrituras. O método histórico e crítico de interpretação fará com que evoluam”. Com uma linha de crédito que até agora obteve alguns resultados apenas com a instituição sunita de al Azhar, no Cairo.

 

Logo após sua eleição, o Papa Wojtyla apresentou-se ao mundo como o "novo bispo de Roma" que os cardeais haviam "chamado de um país distante... distante, mas sempre tão próximo para a comunhão na fé e na tradição cristãs". Foi fácil prever que a eleição do primeiro eslavo contribuiria para a queda do muro entre leste e oeste. Trinta e cinco anos depois, em 2013, para "dar um bispo a Roma", os cardeais o buscaram "quase no fim do mundo", disse paralelamente o pontífice argentino, que exalta o olhar das periferias. Mas permanece a questão se o primeiro papa não europeu depois de treze séculos ajudará a superar as barreiras entre o hemisfério norte e sul do planeta.

 

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