05 Setembro 2022
"A defesa da fé é uma preocupação constante do bispo Luciani", escreve Paolo Gazzotti, em artigo publicado por Settimana News, 04-09-2022. A traução é de Luisa Rabolini.
Educado na dogmática tridentina, o bispo Albino Luciani se viu "deslumbrado com as novidades que ouvia durante as apresentações no plenário". O Concílio foi para ele um "noviciado episcopal". Vivenciou positivamente o Concílio como um período de transformação.
Ele reconheceu a conversão a que era chamado nas sessões: "Sou um aprendiz, estou aprendendo novamente a teologia, aquela que estudamos não serve mais".
Ele nunca se manifestou no plenário, mas aderiu às exigências do Concílio, alinhado com uma "maioria silenciosa". [1]
Após o Concílio, Luciani "aproveitou todas as oportunidades para explicar os documentos conciliares e destacou-se pela clareza na exposição da doutrina e pela capacidade de fazer compreender e apreciar as disposições do Concílio". [2] Circulou por sua diocese promovendo as grandes orientações conciliares.
Para Luciani, o Concílio Vaticano II foi um processo de renovação eclesial. Difundiu os seus ensinamentos, quis aplicá-los, encorajou uma mudança de mentalidade sugerindo sempre a gradualidade e a moderação: "Ouvi pessoas pintar um quadro fosco da Igreja pós-conciliar: "Que confusão!", dizia, “Quanta insegurança e indisciplina!". E já logo na conclusão: "Tudo culpa do Concílio!" ... Sinto, por outro lado, outros, impacientes para implementar o Concílio tudo e imediatamente, queixarem-se com grande zelo que isso ainda não foi feito, que aquilo outro ainda não foi feito... Cuidado com os extremismos!”. [3]
O Concílio foi acolhido num clima de consenso, mas estava destinado a trazer à tona, pouco depois, uma espécie de deslocamento, de desorientação, com inevitáveis dificuldades na sua implementação – que nunca faltaram na história dos concílios - das quais o Papa Montini estava tão avisado quanto o bispo de Vittorio Veneto.
A defesa da fé é uma preocupação constante do bispo Luciani.
Depois do Concílio, o mundo eclesial é marcado por fortes tensões. Entre os principais problemas, a relação Igreja-mundo abraçada pela Gaudium et spes. Imerso na realidade da pequena diocese de Vittorio Venerto, encontra um contexto que não é mais rural, mas operário, portador de valores muitas vezes em consonância com o Evangelho, visto com espírito de solidariedade, mas às vezes com desconfiança.
Há também outros dados a serem lembrados neste segmento cronológico: o nascimento - na onda do movimento de 1968 - de "grupos espontâneos agressivos para com hierarquias", a irrupção no debate público das questões sociais, da justiça, da paz; as novas formas de anúncio e a abertura à missão, algumas instituições para a preparação dos leigos (incluindo escolas de teologia). Tampouco devem ser esquecidos a renovação da catequese, os primeiros planos pastorais, a atualização. Todos elementos não estranhos aos acontecimentos que têm Luciani no centro, com aquele lema - Humilitas - que muitos já não confundem mais com a docilidade, depois de ter experimentado a sua firmeza.
A tradução prática dos ensinamentos conciliares em sua diocese - bem como a recepção de inovações litúrgicas que deseja que sejam bem observadas - leva Luciani, saindo do Vaticano II, a questionar-se diante de seu clero na Conferência Episcopal trivêneta, e logo também na Conferência Episcopal Italiana (em 16 de dezembro de 1965 nascia de fato a nova CEI como uma conferência de todos os bispos italianos), sobre as margens do espaço para uma abertura à modernidade que não prejudicasse a tradição.
Suas reflexões centram-se nas novas modalidades de proclamar as verdades da fé, sobre a relação entre cultura e teologia, já percebendo algumas derivas opostas, o retorno de antigos erros e de novos perigos.
"Uma de suas preocupações constantes era distinguir o que é opinião teológica das verdades da fé e, enquanto o pluralismo teológico lhe parecia cada vez mais como totalmente legítimo, rejeitava toda forma de pluralismo de fé" escreveu Francesco Saverio Pancheri. [4]
“A ideia de que as verdades da fé são apenas a expressão de um momento da consciência e da vida da Igreja deve ser rejeitada com todas as forças - escreveria Luciani anos depois. Elas valem sempre, ainda que seja possível compreendê-las sempre melhor e expressá-las com novas formas”. [5]
Em suma, na esteira desses problemas, é como se o bispo de Vittorio Veneto, em vez de deixar a bandeira do Concílio para outros, optasse por ser porta-estandarte: convencido de que há aqueles que se deixam deslumbrar pelo Vaticano II em vez de serem iluminados.
Com a bandeira do Concílio, ele também retoma, como sempre, sua caneta. É o caso, no final de 1967, do texto Pequeno Sílabo, elaborado, de fato, para reafirmar - linha constante do Magistério até nossos dias - que a liberdade só tem sentido dentro da verdade.
Trata-se de um texto pela primeira vez datilografado sob ditado de Luciani pelo secretário Dom Taffarel, enquanto os dois estavam em San Fidenzio di Verona para participar de uma reunião da Conferência Episcopal triveneta de 23 a 24 de agosto de 1967. Naquela ocasião, de fato, nasceu a Carta aos Sacerdotes sobre o Ano da Fé, que em 8 de setembro de 1967 terá o título Menos de um sílabo e, finalmente, Pequeno Silabo. [6] Uma carta imediatamente publicada tanto no boletim eclesiástico de Vittorio Veneto como em um panfleto com algumas variações. [7]
Assim, recém iniciado o pós-concílio, depois daquele concílio que não condenava ninguém, aqui está uma nova lista de erros contemporâneos em matéria de fé.
Páginas escritas por um autor que certamente não tem medo do novo, muito pelo contrário, deseja assimilá-lo, e que, no entanto, diante das primeiras interpretações conciliares que lhe parecem questionar a fé e o Magistério, não faz concessões nem barganhas.
Mas, se é verdade que o texto, para além de qualquer juízo, é emblemático de como o nosso seguisse todo o movimento teológico, para depois alertar os seus sacerdotes contra o que poderia miná-los na integridade da fé, também é verdade que, nas suas intenções, era dirigido apenas ao clero e não aos leigos.
Aos sacerdotes que haviam lhe pedido para poder se valer do que havia relatado no primeiro mimeografado Sobre alguns erros contra a fé, em vista da proposta de Paulo VI para o XIX centenário do martírio dos apóstolos Pedro e Paulo - aquele ano da fé para o papa Montini era "quase uma consequência e exigência pós-conciliar" -, Luciani respondeu: "O ano de fé é outra coisa positiva, não um sílabo de erros".
E alertava os sacerdotes: “Como revisão de algumas tendências errôneas, elas aparecerão quase um sílabo na forma, enquanto visam apenas interessar e informar com algum elemento de avaliação. Não um sílabo, portanto, que coloque em vosso corpo a paixão do heresiólogo, que busca o erro e depois lança o anátema do cruzado [...]. Um sílabo que, colocando-vos diante do erro […] vos faça se apaixonar pela verdade”. [8]
Entre os erros denunciados por Luciani: “a atitude daqueles que sistematicamente ignoram e subestimam certos aspectos da nova ciência, da teologia e da pastoral, não admitindo que a revelação imutável, diante de novas situações, possa ser aplicada e exposta de uma nova forma”, mas, por outro lado, parecia-lhe perigosa “a atitude de quem quer resolver novas questões com soluções completamente novas, que desconsideram ou deliberadamente ignoram elementos da tradição”. Por isso, exortados os sacerdotes a não se deixarem confundir pela imprensa de divulgação ou pela teologia superficial, optando antes por estudos científicos, apresentava uma sua “revisão de informação e orientação”.
No que diz respeito à Sagrada Escritura (para Luciani “depois do Concílio, a alma de toda a teologia”), o prelado assinala o fascínio sobre as novas gerações da chamada desmitificação que nega os dogmas e admite apenas uma religião feita de pura evangélica caridade, almejando a vigilância do Magistério sem impedir o trabalho dos exegetas.
Examinando a disseminação da desconfiança na razão humana, registra a tendência ao abandono dos termos técnicos na teologia, o reaparecimento do relativismo e do existencialismo na filosofia, a superestimação das influências da história e do conhecimento que chegam até a mudar o sentido das verdades reveladas.
Sobre a historicidade dos Evangelhos, destaca o retorno das teses de Rudolf Bultmann (definidas como “desastrosas”) com a ressurreição de Cristo ligada aos mitos das religiões helenístico-orientais.
Em seu “sílabo”, além disso, Luciani assinala os perigos de quem exagera a importância dos carismas em detrimento da hierarquia em nome de uma Igreja espiritual ou de um messianismo humano à luz de interpretações falaciosas dos textos conciliares, nem hesita em relação àqueles que subestima o Magistério ao qual se deve deferência sincera, mesmo quando não infalível.
Há espaço para esclarecimentos sobre as novas apresentações do pecado original ou os pontos extremos que negam a existência de leis morais objetivas vinculantes (ou que se refugiam na chamada “moral da situação”).
Também não faltam avisos sobre as relações com os ateus “teoréticos” e “práticos”.
“Não se deixem impressionar pela lista das tendências mais ou menos errôneas. Sempre houve erros na Igreja […]. Não passe por suas cabeças que essas novas tendências sejam fruto do pós-concílio... De boa parte dessas tendências já falam a Humani generis e alguns discursos de Pio XII. Nem vocês acreditem que, a certas conclusões perigosas, conduza por si só a pesquisa teológica. Nem queiram jogar pedras contra a própria pesquisa ou a discussão”.[9]
O Papa Francisco escreveu no prefácio do livro O Magistério. Textos e documentos do Pontificado de João Paulo I: “Albino Luciani foi bispo de Roma durante 33 dias. Com ele, naquelas rápidas semanas de seu pontificado, o Senhor encontrou uma maneira de nos mostrar que o único tesouro é a fé, a simples fé dos Apóstolos, reproposta pelo Concílio Vaticano II”.
[1] C. Bassotto, Io sono il ragazzo del mio Signore, Arti Grafiche Venete, Venezia/Quarto d’Altino, p. 25.
[2] Bassotto, p. 362-364.
[3] OpOm 4,168-169.
[4] Il Magistero di Albino Luciani. Scritti e discorsi. S. Pancheri, Padova 1979, p. 21. [5] OpOm, I, p. 321.
[6] O Sílabo de Pio IX. Em 1864 Pio IX publicou uma encíclica - Quanta cura - que continha também O Sílabo, uma lista de 80 proposições derivadas do pensamento moderno consideradas pela Igreja Católica falsas e a serem refutadas.
[7] Il Piccolo Sillabo, Aedi Editrice, Vittorio Veneto 1967. Após doze anos, essas páginas foram publicadas no apêndice de um volume editado por Antonio Ugenti: Albino Luciani, Il dono della chiarezza, Logos, Roma, 1979
[8] OpOm 4, 48.
[9] OpOm 4.168-169.
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Albino Luciani e o Concílio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU