24 Agosto 2018
É agosto de 1978, Montini está morrendo, a melhor inteligence sobre coisas do Vaticano é aquela francesa. Dos documentos secretos do Quai d'Orsay, o pano de fundo do ano que sacudiu a Igreja: os dois conclaves e os três pontífices.
O artigo é de Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, publicado por La Repubblica, 23-08-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se há alguém que deve algo à rachadura da Porta Pia, é o conclave. A tomada de Roma ajudou a criar um mito em torno desse sistema eleitoral, adotado em meados do século XI para limitar o número de fiéis que em Roma tinham direito a participar da escolha do bispo canonicamente reservada "ao clero e ao povo". O mito do conclave é de fato o filho de um segredo que foi elevado ao extremo justamente depois de 1870, por medo de que as tramoias políticas adversárias pudessem conspurcar o procedimento: o segredo tornou-se o principal atrativo e cativou até à vertigem ateus e beatos. Assim, o detalhismo de um processo cujo objetivo era o de não dar chance a recursos, tornou-se o selo de uma sacralidade específica, diferente da que diz respeito a cada bispo e cada igreja: e fez esquecer que todos os papas perto da eleição agradecem aos "irmãos cardeais" por seu voto; porque são os cardeais que fazem uma escolha diante de Deus e assumem a responsabilidade, não Deus...
É natural, portanto, que o mito do conclave, e seu segredo no século XX tenham atraído o interesse de todos os serviços de informação: serviços secretos, serviços jornalísticos e, não menos importante, o serviço diplomático.
Um bando de embaixadores credenciados junto à Santa Sé, que aumentaram consideravelmente em número desde o pontificado de Pio XI até agora, deve reportar frequentemente questões marginais para os governos, mas que se tornam essenciais quando devem informar sobre o conclave aparatos que temem ou esperam algo pela alternância dos pontífices. Muitas vezes, seus despachos são de uma ingenuidade comovente: e o tempo possibilita decodificar as suas fontes (muitas vezes jornalistas que arrancam confidências de astutos eclesiastas) e entender que a compreensão de um conclave - ou de dois na sequência, como foi em 1978 - requer um método.
Não são suficientes meios técnicos, que teriam servido perfeitamente aos espiões fascistas que em 1939 queriam seguir os cardeais franceses que viajavam de carro pedalando com fascistíssima virilidade em suas inúteis bicicletas. Nem sempre basta a inteligência pessoal do embaixador, como a do diplomata Francesco Giorgio Mameli, que em 1956 percebeu que o Cardeal Roncalli, diplomata e bispo, poderia substituir o estatuário Pacelli. Nem sempre basta a sorte de Adenauer que tem como assessor eclesiástico um prelado, Monsenhor Höfer, que no dia do anúncio do Concílio Vaticano II, no início de 1959, está de pé atrás do trono do papa de transição e vê os papéis manuscritos em que refulge a palavra "concílio". Nem mesmo bastam as instruções maníacas, como aquelas do general Franco, que em junho de 1963 ordena que seja informado que ele iria se trancar na capela para rezar para evitar o risco de ver um democrata como Montini no trono de Pedro e não será atendido. É preciso uma máquina eficaz e experiente, capaz de conectar os rumores do Vaticano com a visão global, atenta a não se deixar engolir pelas confidências: e aquela que tem o melhor e mais comprovado método é a diplomacia francesa, o Quai d'Orsay.
É a que mais do que qualquer outra cuida da embaixada na Santa Sé e mais tira proveito dela.
A "filha mais velha da Igreja" que tinha feito do secularismo a religião do Estado, segue com uma atenção metódica tudo o que acontece no Vaticano: nomeações, pronunciamentos, condenações, acidentes. Dá o melhor de si nos conclaves, especialmente nos conclaves que marcaram época, como os de 1978 - o ano dos três papas - que vê o término da experiência centenária do papado italiano.
As cartas daquela Embaixada da França - que tem sede em Roma, na Villa Bonaparte, mas é distinta daquela junto ao Quirinale localizada no Palazzo Farnese - estão agora disponíveis no arquivo modelo de La Courneuve, nos arredores de Paris, onde migrou justamente dos escritórios do Ministério das Relações Exteriores.
Cartas muito preciosas para entender o rápido percurso que transforma o papado italiano em uma memória distante e as dinâmicas de um colégio cardinalício já então fragmentado.
Se, de fato, hoje o Colégio Cardinalício é fragmentado pela vontade férrea do Papa Francisco de fazer dos chapéus cardinalícios uma espécie de Prêmio Nobel da humildade, quebrando o esquema da hierarquia dos "assentos" que remontava ao modelo patrístico da pentarquia, então, em 1978, quem olhasse o colégio via outra fragmentação: aquela determinada pela lógica da "internacionalização" dos órgãos centrais da igreja, com o objetivo nada escondido de forçar o equilíbrio entre as funções de bispo de Roma, Patriarca do Ocidente, e pastor da igreja universal e fazer do papa o escolhido de um órgão de caráter mundial.
Mas a embaixada da França na Santa Sé tem um método, memorizado no Quai d'Orsay e aplicado com escrúpulos. Porque Paris sabe que nos colégios fragmentados sempre emergem os tecelões: "papáveis" temporários, que servem para agregar pequenos grupos. E olhando a estes, a diplomacia francesa não tem como objetivo "adivinhar" um dia antes quem será eleito, mas entender a fundo o porquê das escolhas, sabendo que aqueles porquês dariam forma ao papado.
Aquele dispositivo político-eclesiástico não foi ativado em 6 de agosto de 1978, quando Paulo VI apaga-se em poucas horas "discretamente como viveu", observa um despacho. Já dispara um ano antes, quando despontam aqueles que Andrea Riccardi chama de "os dias de fragilidade", nos quais o Sumo Pontífice tem que negociar com as primeiras insuficiências e toda criação cardinalícia se prospecta como "a última antes do conclave." Parece ser assim em junho de 1977, quando Paulo VI faz o consistório para nomear quatro cardinal: o seu ex-substituto Giovanni Benelli, agora arcebispo de Florença; Bernardin Gantin, ex-arcebispo de Cotonou e presente na cúria; Joseph Ratzinger, saído da carreira acadêmica para se tornar o arcebispo de Mônaco; Luigi Ciappi, antigo expoente da cúria anti-roncalliana. E sobre isso faz um relatório o embaixador George Galichon - militar de carreira vindo dos campos de concentração nazistas, chefe do gabinete de Bidault e, depois, do próprio De Gaulle, presidente da Air France, muito sensível ao tradicionalismo lefebvriano e finalmente enviado para representar la République no Vaticano desde 1976. Galichon envia um despacho em 27 de junho de 1977 depois de uma entrevista com o cardeal Villot: o secretário de Estado (sem dúvida, o mais insignificante Secretário de Estado do século XX, mas francês e, portanto, mais acessível ao diplomata) conta-lhe que "a sucessão não está aberta", porque Paulo VI "desconcerta" com aquele se parecer um dia "um velhinho fraco e cansado" e outro dia "vivo, atento, alegre". Mas, apesar dessas premissas, repassa os nomes dos candidatos que o bom diplomata envia imediatamente a Paris. Villot cita o conservador Baggio, que é descrito como um papa "possível"; o montiniano Pignedoli, «charmeur mas superficial»; o argentino Pironio, que poderia entrar no jogo só se Paulo VI "quiser", porque ele tem apenas 57 anos de idade; e Benelli, o antigo substituto que o Secretário de Estado teme. São nomes, incluindo os de "Bertoli e Poletti não mencionados" por Villot, que circulam na Villa Bonaparte, onde Galichon vive, e em torno do padre Antoine Wenger, patrólogo, editor do diário católico La Croix de 1957-1969 e desde 1971 conselheiro eclesiástico da Embaixada: a ele se deve uma longa nota sobre o primeiro conclave do qual serão excluídos os octogenários e em que o colégio ainda tem muitas liberdades, incluindo a do segundo turno, que soa familiar para a Quinta República. No final, uma lista de cardeais com poucas notas: entre estas, uma bastante singular “o card. Luciani de Veneza é doutrinal e firme". Para um homem preocupado com a velocidade das reformas conciliares são dois elogios que ignoram muito do padre, que havia se graduado sobre Rosmini: mas o que conta é o sobrenome.
Estamos quase lá.
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"Um nome depois de Paulo VI? Talvez Luciani" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU