E o Papa Luciani confessou: “Vou ser esmagado por este cargo”

Foto: Picryl

10 Março 2022

 

Na sua árvore genealógica, figura o cardeal Gasparo Contarini, da linhagem que deu oito doges a Veneza, chamado de “o Lutero católico”. Não pareceria a melhor referência ser promovido à frente do L’Osservatore Romano. No entanto, em 2007, Bento XVI confiou a ele, a Giovanni Maria Vian, o jornal da Santa Sé.

 

A reportagem é de Stefano Lorenzetto, publicada em Corriere della Sera, 08-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

O diretor emérito (desde 2018) não tem dificuldade em admitir que, se tivesse nascido na Alemanha, hoje seria luterano. “Em vez disso, se eu viesse de Oxford, eu me professaria anglicano, e muito contente por sê-lo. Mas, acima de tudo, eu me veria muito bem nas vestes de um ortodoxo exilado em Paris após a Revolução de Outubro.”

 

Porém, coube-lhe um avô que era amigo de São Pio X, Agostino, cujo casamento foi celebrado por Giuseppe Sarto poucas semanas antes de partir para o conclave de 1903, do qual sairia papa. Quanto ao pai, Nello, foi secretário da Biblioteca Vaticana por 28 anos, cargo anteriormente ocupado por Alcide De Gasperi.

 

Vian homenageia os seus genes lagunares publicando o livro “Il papa senza corona” (Ed. Carocci). O livro, que se vale das contribuições de quatro historiadores e dois escritores, fala de Albino Luciani, natural do Vêneto, a quem coube o mesmo destino de Pio X, quinto pontífice no último século, elevado à honra dos altares (ele será beatificado no dia 4 de setembro).

 

Nada de hagiográfico: partindo do Ângelus em que João Paulo I anunciou que Deus “é pai, mais ainda, é mãe”, Gianpaolo Romanato conta que o pai do futuro pontífice, Giovanni, teve uma filha natural em 1895 e que, em 1900, casou-se com uma prima de primeiro grau, com quem já tivera um filho, que morreu no primeiro ano de idade, e que depois teve outros três filhos, que também morreram logo após o nascimento, e duas filhas, ambas surdas e mudas. O livro será lançado no dia 10 de março, dia em que o diretor emérito do L’Osservatore Romano completará 70 anos.

 

Eis a entrevista.

 

Um acaso?

Neste caso, sim. Aliás, para mim a única data que importa é a do batismo, que o Papa Francisco recomenda ter sempre em mente: 25 de março.

 

Você recebeu o sacramento do futuro Paulo VI, se bem me lembro.

Na Basílica de São Pedro. Giovanni Battista Montini, então sostituto, isto é, o número dois do Vaticano depois de Pio XII, era amigo do meu pai. Só depois da morte de papai é que descobri, a partir da correspondência entre eles, que Paulo VI, visitado até ao fim, foi também o seu diretor espiritual.

 

Como nasceu esse vínculo?

Em 1931, o Pe. Agostino Gemelli enviou meu pai a Roma para estudar biblioteconomia. Montini era assistente dos universitários católicos. Eles se conheceram ali.

 

Sua família morava no Vaticano?

Não, em frente à Porta Sant’Anna. Aos sete anos, mamãe me levava para brincar nos Jardins Vaticanos. Eu fazia barquinhos na Fontana dell’Aquilone. Molhei as solas dos sapatos, caí, cortei o lábio e lasquei este incisivo, vê?

 

Não lhe deram uma casa como diretor?

Uma casinha, a do jardineiro. Muito úmida, mas a mais bonita do outro lado dos muros leoninos. Bento XVI mora ali perto.

 

Por que você escolheu esse título, “O papa sem coroa”, para João Paulo I?

Porque ele a rejeitou. O último a ser coroado com a tiara papal foi Paulo VI. Depois de 17 meses, ele a colocou no leilão. Quem a levou foi o cardeal Francis Spellman, arcebispo de Nova York. A renda foi doada aos famintos de Biafra. Hoje, ela se encontra no Santuário Nacional da Imaculada Conceição, em Washington. Paolo Sorrentino mostra isso em “The New Pope”.

 

É um detalhe tão fundamental?

Profético, eu diria. O cardeal Beniamino Stella, natural do Vêneto, muito devoto do Papa Luciani, postulador da causa de beatificação, me contou que, uma manhã, de madrugada, apresentou-se no ex-Santo Ofício um padre de barba comprida e batina amarrotada. Era o patriarca de Veneza. Tinha viajado na terceira classe durante toda a noite para ir ao Vaticano para perorar as razões de um de seus padres que pedia a redução ao estado laical. “Este cargo vai me esmagar”, suspirou. E era apenas o pároco de uma pequena diocese.

 

“Morte no Vaticano”, “Barão Corvo”, “As intrigas segundo Malachi Martin”. Parecem capítulos escritos por Dan Brown.

Papas imaginários, apresentados em um congresso realizado no Palácio Apostólico a 100 anos do nascimento de Luciani. Pedi a Juan Manuel de Prada que os rastreasse na história do cinema e da literatura.

 

Mas são tão numerosos?

Sem dúvida. Em 1966, o escritor Pietro Imberciadori publicou “Papa Francesco I. Storia di un Papa che non è mai esistito” [Papa Francisco I. História de um papa que nunca existiu], em que imaginava um Bergoglio, mas ítalo-congolês. Em 1974, eis o João XXIV esboçado por Guido Morselli em “Roma senza papa” [Roma sem papa]. Em 1975, o autor anônimo de Berlinguer e o professor depois identificado como Gianfranco Piazzesi inventaram um papa alemão, que atraía as multidões que se divertiam com a inflexão teutônica do seu italiano. Emilio Ranzato teoriza que a morte repentina de João Paulo I mudou para sempre o imaginário sobre o Vaticano e a Igreja.

 

Você acha que a hipótese do crime se sustenta?

Em nada. Não houve nem o café envenenado, nem a superdosagem de remédios. John Cornwell, jornalista e escritor inglês muito escrupuloso, demonstrou isso para além de qualquer dúvida razoável.

 

Mas a lenda obscura resiste.

Porque se assenta sobre uma base real: Luciani se preparava para remover o cardeal John Patrick Cody, arcebispo de Chicago, considerado um bandido, e para reformar o IOR. Não confiava no presidente do instituto, o bispo Paul Marcinkus, que o havia tratado muito mal quando, como patriarca de Veneza, havia sido protestar contra a incorporação da Banca Cattolica del Veneto no Banco Ambrosiano de Roberto Calvi. Só que Marcinkus gozava da proteção do Pe. Pasquale Macchi, secretário de Paulo VI. O Papa Montini foi enganado, sobretudo por Michele Sindona, além de Calvi. Um quadro desolador.

 

Em “La soutane rouge”, de Roger Peyrefitte, nunca traduzido, Sindona é Bidona.

Esse autor detestava o pontífice, considerado progressista. O ex-diplomata homossexual já havia acusado Paulo VI de ser o amante do ator Paolo Carlini. E, no romance, ele chega a narrar uma orgia de Marcinkus com um padre e uma freira, nada menos do que em São Pedro, diante da Pietà de Michelangelo.

 

O Vaticano não moveu um dedo.

Não houve nenhuma desmentida, um desastre comunicativo total. O camerlengo Jean Villot impediu a autópsia do corpo de Luciani, o que teria dissipado as dúvidas. Ele alegou que um pontífice jamais havia sido submetido a isso. Falso: isso ocorreu em 1830 com Pio VIII.

 

O Papa Wojtyła colocou uma pedra sobre isso.

Por sugestão do primaz católico da Inglaterra, Basil Hume, que garantiu isso para Cornwell. E assim foi demolida a absurda tese do complô defendida por David Yallop. Mas o resultado do caso permanece prejudicial. Quando foi publicada a ficção televisiva sobre o Papa Luciani, o cardeal Tarcisio Bertone repreendeu o fundador da Lux Vide, Ettore Bernabei, do Opus Dei, porque em uma cena se via uma xícara do lado de fora do quarto de João Paulo I.

 

O papa infartado não bebeu o café.

Nem o leite. E não era preciso dizer que quem encontrou Luciani sem vida foi uma mulher, a Ir. Vincenza Taffarel, desconfiada da taça nunca tocada.

 

O leite? Eu não entendo.

O papa estava tão sozinho no Palácio Apostólico que, na primeira noite, encontrou a geladeira vazia. O chefe da gendarmeria, Camillo Cibin, natural do Vêneto, me contou que teve de ir lhe levar um litro de leite.

 

Quem tirou a sua “coroa” de diretor?

Formalmente o editor, que me nomeou emérito. De fato, Paolo Ruffini, prefeito do Dicastério para a Comunicação da Santa Sé, o único leigo na cúpula da Cúria Romana.

 

Mas bisneto de um cardeal.

E filho de um ex-ministro, o democrata-cristão Attilio Ruffini. Ele veio ao meu encontro às 19h e me anunciou que, a partir do dia seguinte, me exonerava: “Você trabalhou bem, mas depois de 11 anos vou trocar de time”. Meu antecessor, Mario Agnes, que ficou lá por 23 anos, queria que eu chegasse aos 25. E o conde Giuseppe Dalla Torre foi diretor por 40.

 

“Lembrem-se de que a culpa é sempre de vocês, especialmente quando é nossa”, disse-lhe o papa, nomeando-o em 1920.

Bento XV era arguto. Enviava-lhe os boletins jornalísticos todos os meses, muitas vezes ferozes.

 

O Papa Francisco estava descontente com você?

Eu não acredito. De vez em quando, eu o ouvia, falávamos na sua língua. A Jorge Milia, um simpático jornalista de Córdoba que foi seu aluno, ele fez este comentário sobre mim: “Es trabajador, tiene um buen español y no molesta”, e não incomoda.

 

Você se deu melhor com Bento XVI?

Ele havia me escolhido. A primeira vez que fui convidado para almoçar por ele, ele me perguntou timidamente: “Por que você não publica algumas fotos a mais?”. Eu sou bastante rigoroso, tinha removido todas elas. Depois, descobri que lhe divertiam muito as charges que Emilio Giannelli lhe dedicava no Corriere della Sera.

 

A demissão lhe desagradou?

Em nossa família, já vimos coisas piores. O progenitor, Andrea Vian, era um lenhador de Friuli, recrutado por Napoleão como granadeiro. Na Batalha de Beresina, ele se salvou estripando o cavalo e escondendo-se na barriga do equino.

 

Atualmente, o que você está fazendo de bom?

Voltei a ensinar Filologia Patrística na Universidade Sapienza, de Roma. Exceto pelo parêntese vaticano, subo as mesmas escadas há 52 anos. Em novembro, vou parar.

 

Quem são seus estudantes?

Noventa e sete por cento são mulheres. Em média, não mais de 25, como os leitores de Manzoni.

 

Giovannino Guareschi tinha 23...

Como aluno do classicista Manlio Simonetti, de quem estou organizando a bibliografia, que já inclui 900 títulos, fiquei espantado ao descobrir que a minha monografia está entre as obrigatórias para a graduação em Moda.

 

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