Um prezado leitor de Il sismografo informa que "o venerável moralista Pe. Bernhard Haering em um de seus livros Perché non fare diversamente (Por que não fazer de outro modo, em tradução livre, Queriniana: Brescia, 1993, pp. 79-86) escreveu uma carta pastoral para o início do ministério de um imaginário Papa João XXIV à Igreja no início do segundo milênio da era cristã”. Nosso leitor diz que leu “há poucos dias no (nosso) Blog que o Papa Francisco, em resposta a um convite do bispo para visitar Ragusa em 2025, respondeu: “Será João XXIV que fará essa visita”. “Não acha que para a ocasião seria interessante publicar a carta do Padre Haering?” pergunta o nosso leitor, e depois conclui: “Por isso a envio, um abraço afetuoso”. Assinado: Lorenzo Tommaselli.
O texto foi reproduzido por Il sismografo, 29-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Amados irmãos e irmãs!
Em sua peregrinação, a cristandade hoje entra no terceiro milênio. Ela se encontra diante de problemas grandes e candentes. Mas colocamos a nossa esperança no Senhor da história e nos abrimos com humildade ao seu Espírito Santo.
O que pode ser mais importante para nós, neste dia, do que a instância fundamental expressa pelo nosso Fundador humano e divino, antes da sua partida: "Para que todos sejam um só"?
Com João XXIII e com o Concílio que ele convocou, no qual toda a terra era representada pela primeira vez, despontou uma luminosa alvorada. A Igreja Católica entrou na era do ecumenismo. Paulo VI, seu venerável sucessor, continuou a sua obra com tenacidade. Ele também teve a coragem de expressar, perante o concílio ecumênico das igrejas, seu temor de que o papado, em sua forma histórica, pudesse se tornar um grande obstáculo no caminho para a reunificação da cristandade. Seu amável sucessor, João Paulo I, afirmou com clareza profética que a colegialidade entre os bispos e o papa constitui a prova e o selo da catolicidade. E ele também havia corajosamente refletido sobre o que isso deveria significar, por exemplo, para o ofício do exercício petrino.
Nesse ínterim, muitas coisas aconteceram e muitas oportunidades foram perdidas. Agora chegou a hora de dar passos decisivos imediatamente. O passo mais importante consiste, primeiramente, em uma revisão humilde e corajosa da história do papado. Em segundo lugar, devemos dar sinais claros de que sabemos aprender com a história e que queremos deixar-nos iluminar pela palavra de Deus. Reflitamos sobre o ofício petrino, tal como foi delineado por Jesus e se expresso na mais antiga tradição.
O segundo milênio é a era das tristes divisões da igreja. Uma das causas foi a participação dos bispos, em particular dos bispos de Roma, nas lutas mundanas pelo poder, bem como nas ideias demasiado mundanas sobre o exercício da autoridade eclesial e do poder. Isso causou uma cegueira incompreensível. Com consternação, pensamos na tortura, nas fogueiras de hereges e bruxas. Os métodos da Inquisição impediram o diálogo saudável e franco na busca de maior luz nas questões doutrinais, morais e de disciplina eclesiástica.
Apesar de tudo, Deus continuou a dar à igreja romana também bons bispos. Mas sua santidade e sabedoria não conseguiram se impor de modo suficiente no seio de estruturas fossilizadas. As igrejas se defenderam e defenderam sua doutrina e práxis com uma espécie de mentalidade de fortaleza sitiada. Cada parte, e em particular os papas, reivindicou uma espécie de monopólio sobre a posse da verdade. E assim se deixou em grande parte de buscar juntos. Mas louvemos a Deus, que continuou a deixar o seu Espírito respirar em todas as partes da cristandade, que permitiu realizar tantos passos no caminho de uma reconsideração ecumênica e que fortaleceu o espírito do diálogo e de escuta mútua.
Hoje, porém, voltamos o olhar para o futuro, embora com plena consciência do passado que ainda deve ser superado. Limito-me a mencionar os pontos mais importantes do programa imediato:
1. Visto que o trono, a coroa e os títulos pomposos são sintomas patológicos, proíbo veementemente chamar os bispos de Roma com títulos antievangélicos como "Sua Santidade", "Santo Padre"; assim, de fato, Jesus chama Deus, o único santo antes de sua partida. Temos vergonha de que o papa tenha permitido a seus cortesãos de chamá-lo de Sanctissimus e Beatissimus. Não haverá mais "prelados domésticos de Sua Santidade", nem "purpurados". Nem no Vaticano se falará mais em Eminências, Excelências e coisas assim. Porque o ponto de encontro com Deus, que em Jesus se revelou como humildade, é a consciência do nosso nada.
2. Assumiremos, o mais rápido possível, os resultados surpreendentes dos diálogos bilaterais e multilaterais e os levaremos ao objetivo almejado. Símbolo disso será o fato de o "Secretariado para a Unidade dos Cristãos" se tornar a partir de agora uma das principais autoridades e será transformado na Congregação para a união dos cristãos. Quanto à recepção dos resultados, não será mais competente a Congregação para a Doutrina da Fé. Sob a orientação da Congregação acima mencionada para a união dos cristãos, serão estabelecidas estruturas correspondentes, que garantirão que todo o povo de Deus, em particular os bispos, as conferências episcopais e as faculdades teológicas, intervenham ativamente nesse importante processo.
3. O papa está vinculado a estruturas específicas que expressam e promovem a colegialidade. Isso significa, entre outras coisas, que o sínodo dos bispos, que se reúne em intervalos regulares, desempenhará mais do que uma função consultiva. O papa acolherá suas conclusões e como norma as aprovará. Os pontos polêmicos serão esclarecidos com diálogo paciente e franco.
4. Quanto à escolha e confirmação dos Bispos de todo o mundo, voltemos decididamente à práxis do primeiro milênio. A esse respeito, certamente podemos aprender muito com a práxis ininterrupta das igrejas ortodoxas e com as igrejas nascidas da Reforma Protestante, nossas irmãs. O bispo de Roma, em correspondência com sua função ecumênica, será eleito pelos seus representantes das conferências episcopais, de acordo com modalidades a serem estabelecidas pelo próximo sínodo dos bispos. Assim que possível, um sínodo de bispos terá que proceder à reforma do chamado corpo diplomático. Até mesmo o simples nome já é inaceitável, porque lembra demais estruturas do poder estatal.
5. Uma interpretação precisa dos documentos dos Concílios Vaticano I e Vaticano II à luz da palavra de Deus e da tradição demonstrou suficientemente que o exercício da autoridade magisterial suprema do bispo de Roma está completamente inserido no todo da Igreja. Ele não é, por assim dizer, um professor que fala de cima e de fora, mas está inserido de maneira particular no processo de aprendizagem com as suas dimensões e os seus órgãos ecumênicos. A sua tarefa é confirmar, pelo exemplo e pela forma de exercer a sua autoridade, a fé do Servo de Deus e Filho do homem humilde e não violento acreditado pelo Pai e assim contribuir para expressar a fé de toda a Igreja. Ele faz parte tanto da igreja discente e que escuta quanto da igreja docente; com todos os outros deve estender o ouvido principalmente para a palavra de Deus, observar e tentar decifrar os sinais dos tempos.
Deve reconhecer o que realmente se acredita na igreja em virtude da liberdade do senso da fé e da consciência. Deve estar atento à recepção ou à eventual não recepção das encíclicas e das cartas pastorais. O bispo de Roma não pode cumprir essa tarefa com fecundidade e confiança, em colaboração com os seus coirmãos no episcopado, se realmente não houver lugar em toda a Igreja para um diálogo sincero. Certo do consenso dos meus coirmãos no episcopado, revogo, portanto, as disposições do direito canônico (CIC c. 1371, 1), segundo as quais qualquer manifestação de dissenso em relação às doutrinas não infalíveis do papa é um delito. Além de nossos votos batismais e da profissão comum de nossa fé, não haverá de agora em diante nenhum juramento de fidelidade ao papa. “Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna” (Mt 5, 37).
6. As questões candentes agora emergentes, como a do papel das mulheres na igreja e de sua eventual ordenação presbiteral, não serão mais tabu de agora em diante. Devem ser esclarecidos no diálogo intraeclesial e com a disponibilidade ecumênica de aprender, até que estejam maduros para serem resolvidos. Resoluções que o Papa não tomará sozinho, mas em plena colegialidade.
7. A igreja deve ser a luz do mundo e o sal da terra. Deve e quer tornar-se uma espécie de sacramento da salvação, do cuidado, da paz e da justiça universal. É por isso que percorremos nosso caminho com profunda e sincera solidariedade com toda a família da humanidade, com todos os povos e todas as culturas, e também com as grandes religiões mundiais do Oriente.
Em união com todos, pretendemos aprender, zelar, rezar e trabalhar pela solução dos problemas mais candentes, também a nós confiados pelo Evangelho como a paz e o trabalhar pela paz no espírito da não violência evangélica e do amor reconciliador, a justiça e a conservação da criação confiada aos homens.
Recomendo a mim mesmo e meu serviço na igreja às vossas orações, assim como vos recomendo à graça e ao amor de Deus nosso Pai e de nosso Senhor Jesus Cristo.
João XXIV