22 Junho 2020
"Bergoglio, em tempos de crise, acredita que é fundamental não se fechar nas pequenas coisas, na dimensão estreita do medo e da preocupação, mas se abrir a um desejo de Deus que alarga o coração. A ansiedade para ele é uma combinação de raiva e preguiça. Com o tempo, ele aprendeu a não ser afetado", escreve Antonio Spadaro, jesuíta italiano e diretor da revista La Civiltà Cattolica, em artigo publicado por Avvenire, 20-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Cambiamo!
Jorge Mario Bergoglio (Papa Francisco)
Chega às livrarias nos próximos dias pela editora Solferino o livro do Papa Francisco Cambiamo! (Vamos mudar!, em tradução livre). A obra retoma um texto que o pontífice escreveu quando ainda lecionava na universidade jesuíta da Argentina em 1987. É um convite para a busca e para viver uma inquietação que nos liberta da hipocrisia e da escravidão do pecado. Antecipamos alguns trechos do prefácio escrito para essa edição por Antonio Spadaro.
“Este é o momento certo para encontrar a coragem de uma nova imaginação do possível, com o realismo que somente o Evangelho pode nos oferecer. O Espírito, que não se deixa encerrar ou explorar com esquemas, modalidades e estruturas fixas ou transitórias, propõe nos unir ao seu movimento capaz de ‘tornar novas todas as coisas’ (Ap 21, 5)”. Há uma ansiedade por mudança no mundo que o Papa Francisco recolheu neste apelo nas páginas do semanário espanhol "Vida Nueva". E o relançou várias vezes em tempos de pandemia da Covid-19. A vida de milhões de pessoas mudou de repente: "Estaremos dispostos a mudar estilos de vida?" ele acrescentava.
Está claro que há uma enorme necessidade de entender o que está acontecendo conosco, de fornecer uma leitura humana espiritual do que vivemos. E é claro que também devemos entender o que fizemos de errado: o Papa falou de um planeta gravemente doente, de injustiças planetárias por uma economia que visa apenas o lucro, de conflitos internacionais que agora devem ser interrompidos imediatamente e, igualmente, embargos e egoísmos nacionais. A pandemia expôs nossa vulnerabilidade e deixou “descobertas as falsas e supérfluas certezas com as quais construímos nossas agendas, nossos projetos, nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado o que alimenta, sustenta e fortalece nossa vida e a nossa comunidade", disse Francisco fazendo ecoar essas palavras na praça São Pedro vazia por causa do confinamento e, portanto, nunca tão lotada de pessoas que em todo o mundo ouviram a sua mensagem de bênção em 27 de março de 2020.
"Vamos mudar!" parece ser seu apelo. E muitas vezes o pedido de mudança ressoa nessas páginas. Vamos dar um passo atrás, quando Francisco era jesuíta, responsável por seus coirmãos na Argentina, para encontrar as raízes desse desejo de mudança. Às vezes, a nossa vida corre o risco de ser "uma espécie de pandorga sem céu. Nós nos revelamos seres pequenos, imbuídos em pequenas coisas que nos tornam menores”. Ou também pode ser "uma pandorga cheia de céu, mas que carece de linha: inevitavelmente se perde na escuridão do esforço desperdiçado"; portanto, uma pandorga "cheia de céu", mas sem linha, porque é vaidade de grandes ideias e projetos inconclusivos. Assim escrevia o então padre Jorge Mario Bergoglio.
Reflexiones espirituales sobre la vida apostólica
Jorge Mario Bergoglio (Papa Francisco)
O livro em que o Papa desenvolveu essas considerações foi publicado em 1987 e tem o título Reflexiones espirituales sobre la vida apostólica, aqui apresentado em sua versão integral. Contém artigos que ele havia escrito durante sua atividade como reitor do Colégio Máximo e das Faculdades de Filosofia e Teologia entre 1980 e 1986, ano em que foi retirado de seu cargo e enviado à Alemanha para continuar seus estudos teológicos e, posteriormente, enviado como confessor para Córdoba.
De fato, esse foi um tempo de provação, purificação e uma certa escuridão interior. Lembramos também que cinco anos após a publicação dessa coletânea, Bergoglio foi nomeado bispo auxiliar de Buenos Aires. Para entender um homem, é preciso ir às raízes de sua formação, mas também investigar os pontos de virada, os momentos de crise e de virada. É por isso que esse livro é importante para a compreensão do Papa Francisco: é a expressão de um tempo de passagem, no qual ele amadureceu a capacidade de discernimento e de escolha. Seguindo o ritmo das páginas, se entra na visão do papa e se entende melhor sua maneira de julgar situações e de agir.
Bergoglio, em tempos de crise, acredita que é fundamental não se fechar nas pequenas coisas, na dimensão estreita do medo e da preocupação, mas se abrir a um desejo de Deus que alarga o coração. A ansiedade para ele é uma combinação de raiva e preguiça. Com o tempo, ele aprendeu a não ser afetado.
Nesse contexto, ele volta a meditar sobre as raízes. Também poderíamos dizer sobre o sentido próprio da vida. “Qualquer vida é decidida pela capacidade de se doar. É ali que transcende a si mesma, que se torna fecunda". Bergoglio, superando todo vitalismo vazio, acredita que mesmo a própria vida, se funcional apenas para si mesma, não tem um significado positivo. Adquire-o quando se torna fecunda; caso contrário, é uma cadeia chata e exaustiva de gestos egoístas que nos sufoca em apatia.
O que nos abre, "nos destampa" por dentro? O desejo. O desejo é a força interior que se escancara para o sentido da vida. Bergoglio fala disso na primeira (Veracidade e Conversão) e na segunda parte (Sobre o magis) de seu volume. Várias vezes ele deixou claro que o desejo é para ele um tema central. Ele reiterou isso em várias ocasiões como pontífice desde o início. Em particular, em duas homilias: uma no Capítulo Geral dos Agostinianos, em 28 de agosto de 2013; e outra à Chiesa del Gesù, em 3 de janeiro de 2014 para a celebração da SS. Nome de Jesus, para comemorar a canonização de Pedro Fabro. Na primeira, ele perguntou repetidamente: "Você tem um coração que deseja algo grande ou um coração adormecido pelas coisas? Seu coração manteve a inquietação da busca ou deixou que ele sufocasse pelas coisas que acabam por atrofiá-lo?”. E ele concluiu: "Sem desejos, o homem é incompreensível".
Na segunda homilia, a seus companheiros jesuítas, ele disse: “Como pecadores, podemos nos perguntar se nossos corações mantiveram a inquietação da busca ou se eles se atrofiaram; se nosso coração está sempre em tensão: um coração que não se acomoda, não se fecha em si mesmo, mas que bate o ritmo de um caminho a ser realizado diante de Deus. Nós devemos buscar a Deus para encontrá-lo, e encontrá-lo para o buscar de novo e sempre. Somente essa inquietação dá paz ao coração de um jesuíta". Pedro Fabro, a quem o Papa Francisco canonizou, é um homem de grandes desejos que os assumiu e os reconheceu.
Para Bergoglio, "os desejos ampliam o coração" e neles "pode-se discernir a voz de Deus": "Sem desejos, não se vai a lugar algum, e é por isso que é preciso oferecer os desejos ao Senhor". A visão de Bergoglio é a de Santo Inácio de Loyola, assim como emerge nos Exercícios Espirituais e na própria biografia do fundador. Inácio era um homem que em sua Autobiografia, ditada a um irmão em terceira pessoa, confessou ter sido "atraído por um imenso desejo": primeiro de vaidade e honras, depois de uma mulher, depois de "empreitadas difíceis e grandes" no plano espiritual. Inácio até se define como embebido, isto é, "imbuído" de desejos.
Nos Exercícios, o termo desejo é frequentemente combinado com o verbo querer, ou seja, "pedir intensamente". Por que é importante o desejo para Bergoglio, um jesuíta formado na escola de Exercícios e o desejo inaciano? É importante porque, na realidade, o próprio Deus é um Deus Desiderians, é um Deus que deseja se comunicar, e o faz despertando desejos em nossos corações. O mundo de Bergoglio é movimentado, agitado, dinâmico. A paz de Deus que supera todo desejo, de que São Paulo fala aos filipenses, não é uma espécie de condição de estase interior, mas é um dom que se funda e culmina em uma forte inquietação geradora e aberta.
Assim, Bergoglio sintetiza em um parágrafo de grande intensidade: “Nossos desejos podem ser ilusões, mas também revelações. Revelações sobre o que Deus quer que perguntemos a ele por que ele já nos concedeu. Então o conteúdo dos nossos desejos se transforma em símbolos. Os nossos desejos forjam símbolos, porque os símbolos, assim como os desejos, ocultam a realidade e, ao mesmo tempo, as prometem”.
Segundo Inácio, Deus opera com os desejos e nos desejos e, além de conservar os desejos, também os aumenta. No entanto, isso não significa que Deus realize exatamente o que desejamos, mas "aquilo para que Deus pôs esse desejo".
Aqui, para Bergoglio, reside a diferença entre uma utopia sem discernimento e uma utopia como força vital e abertura para o futuro a partir da realidade, do que cada um é. O Papa frequentemente fala de "utopia" (cf. Evangelii gaudium, n. 222) em um sentido positivo, porque não é ideológico e sempre partindo da história e da memória. Sua utopia é a abertura ao novo que se contrapõe diretamente ao banal e superficial taticismo. O desejo não pode ser resolvido em táticas. A criatividade deve estar imbuída de desejos para encontrar os meios mais eficazes para o engajamento. A própria oração só pode começar com o nosso desejo.
E Bergoglio também é herdeiro da tradição inaciana ao postular o "desejo de desejar" (Constituições da Companhia de Jesus, n. 102). De fato, por causa de nossa fraqueza e fragilidade, nem sempre possuímos o verdadeiro desejo de Deus, o desejo de deixar a semente da palavra de Deus crescer no campo de nossa vida. Muitas vezes deixamos crescer ervas daninhas e espinhos. E, no entanto, o desejo de desejar também é importante. Como se entende, o desejo é a mola que abre nossa existência e se modula na "média" de cada vida. Bergoglio nunca fala de um desejo heroico e sublime, diante do cotidiano passar dos dias. É baseado no simples reconhecimento do nosso ser criaturas, que é o "princípio e fundamento" da vida espiritual. E assim começa o percurso da busca pela nossa verdade na presença de Deus, mas também o percurso pelo qual buscamos a verdade de Deus sobre nós. Bergoglio é muito atento em reiterar o fato de que o caminho espiritual nunca é a viagem em um "além" e nada tem a ver com uma pseudo-mística que "promove fábulas inventadas por nossos corações ansiosos e não purificados. A verdadeira jornada interior implica "assumir" a nossa idade, a nossa pobreza, a história que nos pertence". Portanto, o Reflexiones é um convite à busca, ao caminho, a viver uma inquietação que nos liberta das "redes e correntes"- como escreve Santo Inácio - da hipocrisia e do pecado.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Bergoglio entre desejo e inquietação. Artigo de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU