13 Março 2019
"Infâmia, sangue, indiferença": com as palavras do poeta Mario Luzi, proferidas diante de uma Florença ferida pela bomba da máfia que devastou via dei Georgofili em 1993, os exercícios espirituais do Papa Francisco e da Cúria Romana focalizaram o presente, "por um diagnóstico lúcido" que não ceda a "um realismo resignado". A partir de "três sinais do mal e daquele mistério da iniquidade que opera em nossa história que são a infâmia, o sangue e a indiferença", o abade Bernardo Francesco Maria Gianni iniciou a terceira meditação, proposta na manhã de terça-feira, 12 de março. No âmbito do retiro na casa do Divino Mestre em Ariccia.
A reportagem é publicada por L'Osservatore Romano, 12 e 13-03-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Denunciando imediatamente a tragédia da indiferença que, ressaltou, "é tão estranha àquela ‘magnitude caridosa’” com a qual se qualifica "a ação política de Giorgio La Pira e a poesia de Luzi, que são, ao contrário, uma só coisa com uma leitura de esperança da história”. Uma visão concreta, sugeriu Dom Gianni, "antitética a um realismo resignado e duro, mas não disponível a diagnósticos ilusórios ou falsos que gostariam de nos fazer acreditar numa realidade bem diferente daquela que objetivamente, à luz do Evangelho, somos convidados - com espírito de vigilância e também, se o Senhor o doar para nós, com espírito de profecia – a observar e, se possível, transfigurar com a ajuda da Graça”.
O abade escolheu, portanto, tomar uma posição firme contra "a indiferença que, tantas vezes, de modo sutil paralisa nosso coração, torna nosso olhar não mais gerado pelo amor, mas tornado opaco e turvado por uma das doenças do nosso tempo: a proteção de si próprio”. Como se, afirmou Dom Gianni, “nossa pessoa usasse um escudo para proteger-se dos outros e da responsabilidade que os problemas do nosso tempo solicitam, à luz da paixão evangélica que o Senhor quer acender com a força de seu santo Espírito em nosso coração”.
Citando Dietrich Bonhoeffer, o padre recordou do púlpito o dever de cuidar das novas gerações e o compromisso de "deixar a elas um futuro melhor do presente em que vivemos, confiando-o a eles com espírito radicalmente antitético à indiferença, mas movido pela participação ardente para que as novas gerações possam continuar a viver em um mundo ainda hospitaleiro para seus sonhos".
Em seguida, reportou-se ao pensamento de Romano Guardini, "com sua interpretação pascal da pessoa e da história", para convidar "a aceitar o devir, realizando-o juntamente com o Senhor". Tendo "um olhar para a realidade com a convicção de que a partir de Cristo o mundo não é como parece, é mais do que isso".
"Olhar para a realidade – continuo em sua homília o abade - sem sonhar com cidades ideais ou utopias de qualquer tipo". Além disso, "a utopia não é uma perspectiva autenticamente evangélica: a Jerusalém celestial não é utopia, mas é o conteúdo de uma promessa real que o Senhor entrega à Igreja como prova, como horizonte de esperança para o qual nos empenharmos ao olhar para a realidade sem nos render a ela".
"É necessário nos medirmos contra a realidade", insistiu o abade florentino, referindo-se à política de La Pira e precisamente àquelas palavras fortes de Luzi sobre o massacre da Via dei Georgofili. Aquela “bomba de inspiração mafiosa”, lembrou Dom Gianni, matou pessoas e destruiu “uma área muito preciosa do centro artístico da cidade”. A máfia queria atacar, afirmou ele, "o mistério da beleza: junto com os homens e as mulheres também seu patrimônio artístico que, como ensinou La Pira, é uma coisa só com a história da santidade de Florença".
Com esse estilo, esclareceu, devemos "olhar para as feridas das cidades de todo o mundo, mesmo as mais complexas e marcadas pela injustiça". Mas "fazer isso com aquele olhar sobre a realidade" que o Papa Francisco ensinou "como prevalente em relação à ideia", convidando "a se medir com a realidade concreta para não acabar em uma ideologia estéril e infrutífera".
Para um correto "diagnóstico da situação atual", Dom Gianni propôs as palavras de La Pira, de 2 de outubro de 1955, para apresentar a essência de uma de suas conferências florentinas com os prefeitos do mundo: um "precioso costume, talvez até para a atualidade, para a política ‘das’ e ‘nas’ cidades do nosso tempo”'. La Pira quis várias vezes que se encontrassem, em Florença, "aqueles que têm responsabilidades políticas para se medir sobre o problema da convivência de uma cidadania resignada aos problemas do nosso tempo para um renascimento da missão cristã" na história. A crise do nosso tempo, era o pensamento de La Pira fundado na realidade, "nos fornece uma prova do valor terapêutico e decisivo que a cidade possui, porque essa crise pode ser definida como o desenraizamento da pessoa do contexto orgânico da cidade. Por isso, segundo La Pira, a crise só se resolve com um enraizamento novo, mais profundo e orgânico da pessoa nas cidades, em cuja história e tradição ela se encontra organicamente inserida".
Palavras válidas para hoje. Retomadas pelo Pontífice com o seu convite para “recordar a história da Igreja - explicou o abade beneditino - como história de salvação, memória dos nossos santos: tradição orgânica e viva com a qual devemos restabelecer a vida, marcada pela indiferença e pela apatia, ausência de memória e de esperança do nosso povo e, acima de tudo, dos nossos jovens”.
Invocando uma “dimensão coral contra todo o individualismo”, também porque “a Igreja tem uma natureza radicalmente fraterna”, o padre sugeriu uma reflexão sobre o valor da palavra “medida” através de algumas experiências, começando com o pensamento de Simone Weil, “que nos levam, com humilde determinação, sobre a colina do Tabor”.
Mas a partir daí - lembrou Dom Gianni - "é preciso descer para retornar na história para uma missão possível só com uma santidade que brota de improviso como uma invenção com a qual o Espírito Santo nos dá os carismas para uma santidade, aqui e agora, para abrir os olhos para a realidade, para expor a verdade e a beleza" que nunca é "um fim em si mesma".
"Nosso mundo preocupa-se em demasia com as aparências e a beleza é a única medida de aceitação entre os jovens", observou o sacerdote, sugerindo que "a nossa pastoral deve evocar essa dimensão radicando-a profundamente no sopro amoroso que o homem sozinho não pode se dar”. Para uma verdadeira restauração de si mesmo, é preciso esse tipo de beleza, nascida do amor de Deus, e certamente não, disse Dom Gianni brincando, algum creme antienvelhecimento, hoje tão na moda.
Finalmente, citando as palavras de Bento XVI, o abade conclui com um convite a viver um "sincero testemunho de beleza e de esperança que a Igreja hoje pode oferecer como um serviço ao mundo inteiro" em uma "fronteira do espírito missionário imprescindível". Giorgio La Pira e Mario Luzi estão ali para testemunhar que é possível.
Certamente a cidade sonhada por La Pira parece marcada por um presente de "infâmia, sangue e indiferença", sufocada, como é, sobre suas brasas ardentes "de amor, de paz e de justiça" por cinzas à espera de serem removidas. Assim, nesse aspecto, na possibilidade e capacidade de mudar, de recomeçar, de reconstruir, Dom Gianni se demorou na meditação da tarde de segunda-feira. Por um lado, disse o abade de San Miniato, há a "chama ardente" dos carismas que Deus deu a cada um, e pelo outro, a "mornidão", a "grande presunção" daqueles que pensam: "Não. Eu não preciso de nada". Uma encruzilhada em frente da qual a grande lucidez teológica de Luzi vem ajudar: "Estamos aqui para reavivar as brasas com o nosso sopro, que durem e se espalhem, contrafogo à devastadora labareda do mundo".
Mas para que a força do Espírito transfigure as fraquezas do homem, "há uma premissa fundamental: devemos nos afastar da presunção de não precisar de nada". Como Nicodemos na conversa noturna com Jesus, os homens devem se convencer de sua capacidade de renascer.
Ao longo desse caminho, o abade acrescentou a Luzi e La Pira outro precioso companheiro, Romano Guardini, que recordava: "A vida surge não apenas na primeira hora, quase de uma vez por todas, de modo a avançar em uma direção linear, mas ressurge continuamente das profundezas”. É aquela inquietação interior que o próprio La Pira inseria na história da salvação e que impele o homem para "uma vida renovada de fé". Eis então a provocação: "É por isso que estamos aqui, porque não somos tão presunçosos a ponto de nos considerar dispensados da questão fundamental: Senhor, aumenta nossa fé. Estamos aqui para isso”. De fato, é com a fé que "aquela chama, cuja luz restitui à sua plena verdade a nossa realidade, pode mais uma vez reavivar-se". Uma realidade que então "não está selada de uma vez por todas". Uma "segunda criação" pode "ser realizada em todo homem", explicou o abade que, lembrando Guardini, convidou a entrar em uma dinâmica de esperança, perdão, misericórdia e abstenção de todo juízo definitivo sobre as pessoas.
A concretude do sonho de La Pira encontra aqui sua explicação. A realidade, o mundo pode mudar graças a um humanismo "enraizado em uma experiência de amor que nos desafia, que move nossa responsabilidade, que de fato a qualifica através do exercício do dom supremo com o qual Deus nos assemelha a si mesmo, ou seja, a liberdade". Perspectiva a ser confiada sobretudo aos jovens a quem devolver "a consciência do que seja a vida humana no exercício da responsabilidade, da liberdade, dessa dinâmica que, gostaria de dizer, é uma só com a alegria de crescer na responsabilidade, de redescobrir-se filhos de um pai confiável".
Segundo o abade de San Miniato, trata-se de "privilegiar ações que gerem novos dinamismos na sociedade", como defendia La Pira ao falar de uma "cidade, transmitida, cuidada e confiada de geração em geração". Uma ansiedade, uma tensão para o futuro confrontada, com preocupação, com a realidade de hoje: "Às vezes me pergunto - disse Dom Gianni - quem são aqueles no mundo atual que estão realmente preocupados em dar vida a processos que constroem um povo! E é essa palavra que se refere ao nosso ser Igreja, o povo de Deus, mas naturalmente a quem tem a responsabilidade da cidade dos homens e das mulheres de nosso tempo, para que se reconheça como civitas", ao invés de "obter resultados imediatos que produzam uma renda política fácil, rápida e efêmera, mas que não constroem a plenitude humana". Na poderosa força evocativa de Luzi que canta a Florença de La Pira, encontramos aquele "fogo" que deve voltar a "incendiar-se". Mas tudo, explicou o abade, "acontece e só pode acontecer num horizonte de fé pascal".
"Deus", concluiu Dom Gianni, "quer que possamos sonhar como Ele e com Ele enquanto caminhamos bem atentos à realidade. Sonho, fogo, chama. Sonhar um mundo diferente e, se um sonho se apagar, voltar a sonhá-lo de novo, buscando com esperança na memória das origens, naquelas brasas que, talvez, depois de uma vida não tão boa, estejam escondidas sob as cinzas do primeiro encontro com Jesus”.
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Os exercícios espirituais do Papa e da Cúria Romana. Diagnóstico do presente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU