21 Mai 2020
A teologia pode fazer algo para ajudar durante a pandemia do coronavírus? Certamente, a fé cristã, junto com outras religiões, pode fazer muito para ajudar a enfrentar essa crise em vários níveis, iluminando o sentido cristão daquilo que está acontecendo, isto é, na referência a um Deus salvador.
A opinião é de Lluís Oviedo Torró, frei franciscano menor de Valência, na Espanha, professor de antropologia teológica no Antonianum e na Gregoriana em Roma.
O artigo foi publicado na revista Razón y Fe, n. 1.445, de abril de 2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Escrevo este artigo depois de duas semanas de confinamento forçado e no meio de uma das piores crises sanitárias, sociais e econômicas vividos pelo nosso mundo nas últimas décadas ou pelo menos nas sociedades ocidentais ricas, nas quais não sofremos experiências tão negativas, talvez desde o duro período das guerras de meados do século XX.
Essa situação certamente convida à reflexão e à análise, embora alguns digam que isso deve ser feito mais tarde e que, agora, há outras coisas mais urgentes. No entanto, refletir “à queima-roupa” pode ser um exercício útil e necessário em tempos difíceis.
Nestes momentos, surge a pergunta não retórica sobre o que a teologia pode oferecer, se é que pode oferecer algo, se é que esse exercício reflexivo a partir da fé não seria mais um luxo, algo supérfluo diante de tarefas mais prementes.
Pelo menos, a fé cristã e suas práticas podem ser úteis e necessárias para muitos, para aqueles que invocam o nome de Deus e de Maria e buscam salvação, ajuda e esperança.
Uma primeira resposta pode ser intuída a partir dessa percepção sobre a conveniência da fé neste contexto: se a fé cristã e, em geral, as crenças religiosas, têm sentido e uma função importantes nestes tempos difíceis, então a teologia continua sendo necessária e importante para orientar e animar os esforços de todos para enfrentar a crise que estamos vivendo.
Esta é uma das situações que testam a fé e a teologia, isto é, que propõem condições perante as quais as Igrejas e a reflexão cristã devem responder de forma eficaz, caso contrário, perderiam muita credibilidade.
Se a fé não está à altura das circunstâncias para transmitir esperança, consolo e ânimo nestes momentos especiais, então ela fica deslegitimada. Algo parecido ocorre com a teologia: se ela não for capaz de fornecer uma análise e um discurso que possam interpretar e dar sentido a esses “sinais dos tempos”, então ela se torna uma reflexão estéril e inútil.
A crise de prestígio da teologia vem de muito tempo atrás: ela era afetada tanto pela crítica quanto pelo desdém por parte de discursos científicos e acadêmicos mais reconhecidos e de brilho intelectual, quanto pela desconfiança em amplos círculos católicos, que não entendiam esse esforço intelectual.
Em parte, era culpa dos próprios teólogos e da sua incapacidade de enfrentar os problemas mais sérios que a fé vivia, para oferecer diagnósticos acertados e respostas ou propostas para superar as situações mais críticas.
A teologia em geral viveu ensimesmada e se converteu em um exercício autorreferencial, com pouco contato com a realidade vivida e com os problemas das pessoas, e ainda mais dos fiéis. De fato, onde estava a teologia enquanto os templos se esvaziavam e se perdia completamente a confiança na Igreja? Onde ela estava durante a grave crise dos abusos sexuais que sacudiu muitos ambientes católicos?
Não podemos falhar agora; eu não gostaria que se perguntasse também: onde estava a teologia e os teólogos durante a pandemia, quando toda a população estava confinada, os cristãos não podiam celebrar os sacramentos, e muitos estavam sumidos na aflição?
A teologia tem em sua frente o desafio de se tornar um discurso muito mais atento aos sinais dos tempos e às condições do seu próprio contexto para fornecer análises que ajudem a compreender situações difíceis como as que estamos atravessando e para orientar as consciências diante da grande incerteza que vivemos.
Agora, mais do que nunca, é preciso “dar razão da nossa esperança”.
Estas páginas querem expressar o compromisso da teologia com a sociedade e a Igreja para fornecer uma reflexão inspirada na Revelação cristã e na longa experiência de estudo que acumulamos há muitos séculos. De fato, esta não é a primeira vez que a teologia tem que fazer as contas com uma grande epidemia, peste ou outras calamidades que periodicamente afligem a humanidade e nos interrogam sobre o nosso destino e sobre a ação divina em um mundo que não controlamos.
A esse propósito, proponho quatro chaves ou modelos que têm ajudado e podem continuar ajudando a dar sentido a esta crise que vivemos e para desdobrar um leque de opções para que os fiéis possam escolher aquela que, ou aquelas que, acharem mais conveniente ou que facilitem a sua busca de sentido.
De fato, entendo a tarefa da teologia neste momento como uma reflexão que auxilia os nossos contemporâneos a projetar sentido naquilo que acontece a partir da referência a um Deus que nos salva.
Essas chaves são, tentando propor uma certa ordem: em primeiro lugar, a apocalíptica, que antecipa um fim através de catástrofes; a segunda, o convite à conversão a partir de sinais eficazes; a terceira, a pascal ou do sacrifício que dá vida além da morte; e a quarta, a da encarnação ou do acompanhamento dos sofrimentos e das esperanças humanos.
A seguir, apresentarei uma análise não exaustiva dessas chaves, em sua aplicação a esta situação concreta.
Sem dúvida alguma, essa é a chave mais imediata e provavelmente a mais usada há muitos séculos perante outros episódios de peste ou grandes calamidades. De fato, ela está mais do que justificada nos textos do Novo Testamento e é fácil de aplicar em momentos de grande dificuldade.
Em grandes traços, a mentalidade apocalíptica compreende a história como um processo decadente; embora, aparentemente, registrem-se progressos, na realidade as coisas pioram, a sociedade e a cultura se afastam mais de Deus, aumentam o pecado e a corrupção, e a fé vai se extinguindo; só resistem alguns poucos, em meio à incompreensão geral e até à perseguição.
Tudo aponta, nesse ambiente aparentemente tranquilo e de satisfação, a uma profunda distorção nas mentes e nos corações dos habitantes deste mundo, que se desviaram daquela que seria uma vida virtuosa, em fidelidade à vontade divina. Perante esse panorama, não há outro remédio senão confiar em uma mudança radical que toque o coração de todos.
O cenário apocalíptico aponta para a catástrofe, para a grande crise que antecipa o fim dos tempos e para uma grande regeneração última. É claro que aparecem os temas do castigo ou da correção divina, temas que ecoam episódios do Antigo Testamento e uma mentalidade justiceira, pois Deus cobra pelas culpas e pelos delitos já nesta vida, na condição histórica, ou aguarda os tempos finais para fazer justiça perante os seus eleitos.
De fato, essa chave tem sido repetidamente aplicada durante a história e em meio aos maiores males que a humanidade sofreu, especialmente as comunidades cristãs.
É até fácil demais entender, em chave de castigo e purificação, o ambiente que vivemos até muito pouco tempo atrás nas sociedades ocidentais: muita frivolidade, muita corrupção em muitos níveis ou em muitos âmbitos – incluindo o eclesial –, muita distância de Deus e da sua Igreja. Então, não é estranho que Deus tenha se cansado dessa humanidade, que a sua raiva exploda e nos corrija com uma epidemia que nos obriga a repensar todas as certezas que tínhamos adquirido, a reconhecer todos os erros destes anos, a nos voltar para Ele.
A psicologia cognitiva aplicada ao estudo da religião indica que certas reações ou percepções mais imediatas no campo religioso seguem pautas mais diretas ou “fáceis”: trata-se de entender a Deus como um “agente” por trás de tudo o que ocorre e que não tem uma explicação mais convincente, e a nossa relação com Ele, em termos de troca, de prêmio e castigo, como consequência do nosso comportamento.
Digamos que a intuição religiosa se sente mais à vontade aplicando essas categorias, e que é mais fácil pensar o que ocorre como um castigo divino perante os pecados do povo do que buscando outras explicações, talvez mais complicadas ou sutis, mais elaboradas teologicamente.
De todos os modos, não é o caso de subestimar a perspectiva apocalíptica, que tem sido fonte de esperança e motivação para a coragem de muitas gerações de cristãos e que trata de reivindicar as vítimas e os inocentes em uma história cheia de sofrimento e de injustiça.
Essa visão contribui para relativizar o presente, a história com tudo o que se possa estimar como grande ou valioso: tudo fica reduzido – exceto o amor e a fidelidade – quando se antecipa o fim dos tempos, quando o único que importa é o Deus que se assoma no fim do caminho e nos anima a nos aproximarmos dele.
Por conseguinte, não seria aconselhável descartar essa grande visão com tudo o que ela implica para animar os fiéis e também em conexão com a chave seguinte, que entende tudo isso como um sinal que demanda a conversão.
O cenário apocalíptico convida a uma antecipação de um futuro final de consumação, que, embora não se produza de forma imediata, contribui, mesmo assim, para iluminar as vidas dos cristãos em momentos de forte provação e para fornecer o recurso mais necessário: a esperança para quem confia em Deus.
Essa também é uma chave fortemente enraizada na Revelação bíblica, na qual muitos momentos de grande dificuldade são percebidos não tanto como castigos, mas como sinais que convidam à conversão, a uma mudança radical de perspectiva e a um comportamento diferente. Essa linha de leitura se encontra muitas vezes nos Profetas do Antigo Testamento, mas também é uma chave nos Evangelhos, que, perante diversas dificuldades, convidam à conversão e ao seguimento de Cristo.
É bastante evidente que a tradição cristã entendeu repetidamente as grandes provas históricas que a Igreja ou a sociedade sofreram como convites para rever comportamentos que eram assumidos de forma tranquila e estável demais, para voltar o olhar para Deus e para mudar percepções e atitudes até então evidentes.
A pandemia nos oferece uma oportunidade única para ativar uma reflexão urgente diante da duvidosa tendência que o mundo ocidental estava assumindo. Do ponto de vista da psicologia cognitiva, o tema é claro: quando as coisas vão mal, surge espontaneamente a pergunta: em que falhamos? O que fizemos de errado para merecer isso?
Certamente, uma mentalidade assim pode ser entendida como ingênua ou, novamente, como uma simples derivação de uma mente que precisa identificar culpados ou agentes do mal, mesmo diante de processos naturais cuja culpabilidade não pode ser atribuída de forma imediata. Daí a abundância e a popularidade das teorias da conspiração.
O olhar teológico deve ser muito mais sutil e não cair em um esquema cognitivo muito bruto ou ingênuo. Ele não busca culpados, e não é essa a natureza do “sinal de conversão”, mas sim que oportunidade uma certa determinada ou mal histórico pode propor para mudar e melhorar, o que para nós implica voltar a Deus, acolher a sua palavra. Em outras palavras, qual é a vantagem ou o benefício, a lição que podemos extrair de algo tão negativo.
Certamente, não faltam motivos, quando se olha de forma crítica para a nossa cultura, para identificar processos ou atitudes que pareciam assumidos de forma pacífica e que clamam por uma conversão. Há muito onde escolher, mas um olhar teológico deveria assinalar os motivos mais preocupantes.
Do meu ponto de vista, a cultura recente havia entrado em uma fase de confiança exagerada nas capacidades humanas, apoiada em meios técnicos, como a inteligência artificial, para superar todos os nossos limites, resolver todos os problemas que surgiam e até alcançar a imortalidade.
Nos últimos anos, eu li muitos textos que manifestavam grandes expectativas fundadas na capacidade técnico-científica de melhorar o mundo, de alcançar a plenitude. Os sonhos do Iluminismo, por fim, se tornavam realidade, e a humanidade encarava uma superação dos seus males, até dos seus níveis de mal moral, o que tornaria muito mais acessível a felicidade plena.
Essas visões grandiosas tinham como consequência clara uma marginalização cada vez mais acentuada da fé religiosa e do cristianismo, em particular como religião de salvação: não necessitaríamos de salvação por parte de instâncias sobrenaturais se pudéssemos alcançá-la por nossos próprios meios. Um sentimento de quase onipotência estava se apoderando de alguns setores intelectuais, e um autor de grande sucesso se atreveu até a falar do “Homo Deus” (Yuval N. Harari, 2017).
Toda essa ilusão de grandeza, essa divinização absurda, desapareceu em poucos dias e deu lugar a uma sensação de grande fragilidade, à percepção de que a grande civilização ocidental tem os pés de barro e é muito vulnerável a qualquer contingência, a um imprevisto, pois absolutamente não temos o controle da situação, por mais que a nossa ciência e as nossas tecnologias, certamente necessárias, avancem.
Vem à memória outro episódio histórico do início do século passado, que se traduziu em uma grande reação teológica e em uma forte mudança social e religiosa. Refiro-me à recepção da Grande Guerra (1914-1918) por parte de um grupo de jovens teólogos liderados por Karl Barth. Não é difícil rastrear naquela reação teológica temas que podem ser familiares para nós.
O jovem Barth compôs o seu famoso comentário sobre a Carta aos Romanos justamente no fim daquela guerra catastrófica (1919), que levou consigo milhões de vidas jovens, como um ato de protesto contra a confiança que inspiravam os avanços sociais, econômicos e científicos da chamada “cultura liberal” e contra a complacência que era mostrada por uma parte da teologia acadêmica do seu tempo em relação a tais tendências, com uma cultura confiante no progresso humano.
Aquele caso provavelmente nos indica como a teologia captou naquela situação tão dramática uma oportunidade para repropor não só um modelo tecnológico, mas também toda uma forma cultural demasiadamente segura de si mesma e que também se afastava de Deus. Impunha-se uma correção epocal, uma reivindicação da fé cristã em termos radicais e disruptivos.
O certo é que grandes dificuldades e provas históricas reavivaram a fé de tantas pessoas, e que, também neste tempo, muitos dos nossos contemporâneos estão voltando o olhar para Deus, rezando com mais intensidade, tentando animar a todos a partir da sua própria fé e esperança.
Nessa ótica, não podemos entender a crise atual como um castigo divino, mas sim como uma oportunidade para voltar a Ele, para mudar as nossas vidas, dando mais espaço ao que realmente importa e deixando de lado falsos ídolos que podem ter nos seduzido nestes tempos com suas promessas de vida feliz e até de imortalidade.
É fácil demais encontrar ressonâncias bíblicas em tal tentação, mas é mais adequado – teologicamente falando – buscar motivos de superação no que está ocorrendo, que permitam corrigir tendências equivocadas e oferecer motivos de esperança baseados em Cristo e em sua graça.
Outro tema que se associa ao da conversão é deduzido da situação forçada de confinamento que todos vivemos. Essa experiência deu lugar a atitudes de austeridade, a uma visão de essencialidade que convida a valorizar as coisas que mais importam e a descuidar do que é secundário. Talvez seja uma oportunidade importante para discernir entre os valores que possam dar mais sentido às nossas vidas e aquilo que é acessório: a valorizar a vida, a família e a amizade, acima de outras realidades que, nestes dias, se tornam acidentais e remotas.
O terceiro motivo mais relevante na tentativa de iluminar os acontecimentos que vivemos nestes dias é o pascal. Essa chave, diferentemente das duas anteriores, não é tão intuitiva ou, em outras palavras, é – cognitivamente falando – mais “custosa” ou menos “fácil” de perceber. A dinâmica que inaugura a Páscoa de Cristo é, como alguns psicólogos cognitivos gostam de dizer, bastante “contraintuitiva”: a morte é condição da vida; o abaixamento e a humilhação são condições da exaltação e da glória; o sofrimento é o caminho que leva à felicidade plena; a tristeza, por sua vez, é o da alegria.
Essas são categorias plenamente cristãs, e é difícil encontrar paralelismos ou semelhanças em outras instâncias culturais ou religiosas. Estamos diante de um ponto genuíno ou específico da fé cristã, que agora está sendo posto à prova.
A aplicação do princípio pascal é muito familiar para os cristãos: a passagem da morte na cruz para a ressurreição de Cristo nos convida a pensar que até mesmo os momentos mais negativos da existência pessoal ou coletiva podem dar lugar a uma vida nova, até mesmo além da morte.
Esse princípio pode ser entendido de várias formas. A chave escatológica é a primeira: em sentido cristão, a morte física dá lugar a uma vida nova que antecipa a ressurreição de Cristo, mas que está reservada a todos os que o seguem. Obviamente, essa chave é um tanto limitada, embora também seja importante lembrá-la diante das milhares de vítimas provocadas pela pandemia.
Os cristãos têm o direito de reivindicar que esse não é o fim definitivo e que essas mortes abrem as portas para uma vida diferente, em outra dimensão.
Não seria demais recuperar nestes tempos o tom fortemente escatológico da mensagem cristã original, que anuncia vida onde outros só veem morte ou onde não haveria nada a oferecer a todos aqueles que nos deixam de uma forma abrupta e em meio a uma grande solidão. Eles não são apenas números de uma triste estatística que soma a todos nós no abatimento; a partir da perspectiva pascal, eles são homens e mulheres chamados à vida nova em Cristo, à vitória sobre a morte.
Outra chave de leitura da Páscoa de Cristo é mais ampla ou não se reduz à dimensão escatológica: todo o negativo e doloroso que os cristãos podem viver refere-se a um horizonte de transformação com a promessa de uma vida melhor.
Seguramente, a experiência humana que mais se aproxima da dinâmica pascal é a do amor entregado e a do sacrifício pelo bem dos demais. A ideia de que certas expressões de amor requerem a negação de si mesmo ou a entrega para além dos próprios interesses, para ter acesso a estados mais exaltantes e plenos, não é nova nem estranha para quem descobre o amor para além das suas formas superficiais ou somente eróticas.
No entanto, a dinâmica pascal contém em si mesma uma promessa que vai além das experiências de amor abnegado ou do sacrifício em favor de outras pessoas, ou pelo menos lhes dá um sentido pleno. De fato, a Páscoa oferece um horizonte ou uma garantia que permite atravessar qualquer forma de negatividade e sofrimento com a esperança de que se transformarão em alegria e plenitude; ou oferece àqueles que nestes tempos difíceis se sacrificam pelos demais uma garantia de que seu amor não será em vão.
A ideia profunda da Páscoa de Cristo é de que todo o bem que pudemos fazer ficará para sempre, nunca desaparece, não morre, mas se projeta até a eternidade. Em Cristo morto e ressuscitado, temos a certeza de que o nosso amor, provado nas cruzes de cada dia, todo o bem realizado será para sempre e não morrerá jamais.
A quarta chave teológica que eu proponho para dar sentido de fé a estes tempos de provação é a que nos convida a compartilhar e a assumir tanto as dores quanto os gestos de entrega às vezes heroicos que observamos, como manifestação da graça de Deus, como a presença de seu Espírito que vive entre nós.
Trata-se de uma chave mais reflexiva, que nasce de um olhar capaz de perceber o dom de Deus e a sua presença misteriosa nos acontecimentos que a humanidade vive, tanto os positivos quanto os negativos.
Essa percepção se situa no outro extremo em relação à mentalidade apocalíptica: onde o apocalíptico vê degeneração e decadência, o encarnado observa a obra de Deus, seu amor presente em muitas formas; onde o primeiro vê sobretudo experiências de pecado, o segundo percebe expressões da graça; onde o primeiro vê a negatividade que convida a um fim catastrófico de purificação, o segundo vê muito amor e entrega, muita esperança.
O exercício teológico nesse caso se fixa em tudo o que revela o melhor da humanidade em meio às suas feridas, porque assume uma visão a partir de dentro dessa condição humana, que também revela sua grandeza.
Essa ótica aproveita e aplica em sentido forte a declaração inicial da constituição dogmática do Vaticano II, Gaudium et spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. (...) Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua história” (GS 1).
Por isso, a Igreja pode fazer uma leitura da situação em que a humanidade vive nestes tempos, com suas luzes e suas sombras, a partir de dentro dela, e não de fora, como quem julga de cima. A fé cristã discerne, naquilo que está acontecendo, os sinais de vida que se refletem em todos os esforços feitos pelos vários estamentos de uma sociedade que se sente ameaçada e insegura, até mesmo assustada. A fé aprende nessa situação a estar perto e a compartilhar, a animar a todos e a anunciar esperança.
Vários teólogos insistiram nesses últimos anos que a missão da fé de reconhecer a ação providente de Deus não se identifica com o extraordinário, o sobrenatural ou os limites dos processos naturais, mas sim com a mesma dinâmica da criação e com os esforços da ciência, com o melhor da humanidade que caminha para a superação do mal.
Esta é uma oportunidade única para discernir a presença de Deus tanto naqueles que mais sofrem quanto naqueles que mais amam e servem aos demais.
Estes tempos estão pondo à prova muitas realidades, muitas propostas, e não temos certeza de como viveremos, como nos sentiremos depois disso. O certo é que um resultado importante desse estado de coisas é que ele nos obrigou a repensar a fé cristã como uma “religião da salvação” e não só como uma religião de tipo “espiritual”, quase como algo próximo à experiência estética. Nesse sentido, a fé cristã recupera o seu caráter genuíno, contanto que saiba realmente ajudar as pessoas do nosso tempo a enfrentar e a superar essas dificuldades.
A esse propósito, vale lembrar que a fé religiosa se descobre melhor como um sistema de “enfrentamento”, aquilo que em inglês se expressa como “religious coping”, ou seja, uma série de recursos – crenças, ritos, orações – que ajudam aqueles que os aplicam a superar situações difíceis ou de crise.
A pesquisas que realizamos nos últimos anos indicam que tal estratégia baseada na fé como ajuda significativa funciona melhor quando combinada com outras estratégias, como a ajuda terapêutica, a amizade ou o conhecimento e o estudo.
Esse dado aponta novamente para o fato de que a fé cristã está chamada a caminhar junto com outras expressões positivas, não separadas ou em concorrência; isso é algo que também pode ser deduzido da situação atual, em que todos devemos oferecer o melhor para enfrentar os nossos grandes desafios.
Uma última observação. Muitos de nós sentimos falta, nas aparições públicas dos nossos governantes, sobretudo quando fazem os anúncios mais dramáticos e mais solenes, de uma conclusão necessária: “Que Deus nos ajude”.
Seria um sinal de pós-secularização real e concreta, um modo de dar esperança a todos, acima de todas as divisões.
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A teologia em tempos de pandemia. Artigo de Lluís Oviedo Torró - Instituto Humanitas Unisinos - IHU