20 Mai 2020
"A vida nos dá uma oportunidade sem precedentes de repensar nosso futuro a partir dos fundamentos de nosso ser. É hora de reconhecer as raízes genuínas de nossa existência como membros humanos deste mundo maravilhoso e identificar o que realmente dá sentido às nossas vidas, separando-o do efêmero e do fugaz. O discernimento será o novo modo de viver e de ser, ou então toda essa pandemia indesejável terá sido em vão", escreve Mauricio López, secretário-executivo da REPAM. A tradução é de Luis Miguel Modino.
Tenho a impressão de que a figura do cego Bartimeu é muito pouco conhecida, muito menos aprofundada nas reflexões sobre nossa fé. É uma presença que dificilmente aparece nos relatos do Evangelho, sua passagem por eles é aparentemente passageira, e talvez para alguns seja um assunto insignificante. No entanto, por algum motivo que eu não entendo completamente, ou talvez não queira assumir plenamente, tem sido uma presença determinante em minha vida nos últimos anos. Eu quase poderia dizer que não consigo entender minha experiência de fé e de seguir Jesus sem passar por esse personagem e seu encontro com Cristo.
Hoje, nos tempos de uma pandemia em que toda a nossa vida, e o conteúdo e o significado de sua vida cotidiana, foram confrontados e flagelados, sinto que podemos olhar para este Bartimeu esquecido para descobrir com ele e nele as lições mais profundas para nos ajudar a atravessar essa crise sem precedentes e seguir em frente, porque: o cego Bartimeu sou eu, é você, somos todos.
“... Bartimeu, um mendigo cego, estava sentado à beira da estrada” (Mc. 10, 46)
Se algo é evidente e inquestionável para o coração que se deixa tocar, é que essa pandemia nos conscientizou de nossa fragilidade e de nossos enormes erros sobre o modo como decidimos viver como sociedades. Percebemos o fracasso nos relacionamentos, isto é, nesta pandemia, vemos quão tremendamente cegos éramos... e continuamos sendo.
A predominante “cultura do descarte”, na qual a lógica da dominação (do uso e descarte) foi aplicada a tudo, inclusive às relações humanas, levou-nos ao colapso existencial, a ponto de não haver retorno no equilíbrio do ecossistema, ao colapso da fraternidade e ao vazio espiritual. Hoje é hora de assumir o quão perdidos estivemos de muitas maneiras, como mendigos sem rumo e sem um local de referência para viver. Antes dessa pandemia, nos encontramos de muitas maneiras, praticamente sem fundamento. Diante disso, o primeiro passo é reconhecer e assumir essa crise, e talvez a partir disso possamos começar a buscar uma nova luz.
“Quando ele descobriu que estava passando Jesus de Nazaré, começou a gritar: Filho de Davi, Jesus, tenha piedade de mim! Muitos o repreenderam para ficar calado. Mas ele gritava ainda mais alto” (Mc. 10, 47-48)
O grito de Bartimeu representa o grito de toda a geração. É o clamor da humanidade toda, que geme com dores de parto diante da incerteza dessa pandemia. É um chamado exaltado para pedir compaixão, isto é, que outros possam sentir o que estamos sentindo e, assim, encurtar distâncias para nos sabermos genuinamente acompanhados nessa dor. É a busca de uma nova maneira de se relacionar; aquele em que prevalece o senso de misericórdia, de ter um coração capaz de abraçar o que os outros estão vivendo. E para os crentes, é com Jesus que podemos experimentar a alteridade em sua plenitude. Em outras palavras, Ele é o caminho para superar as muitas forças que reprimem, que silenciam, que manipulam para evitar e matar o encontro. Dele vem a força para gritar mais alto diante dessa pandemia, para pavimentar o caminho para uma cultura verdadeiramente nova de encontro.
“Jesus parou e disse: chamem ele. Então eles chamaram o cego, dizendo: Coragem, levante-se, ele está chamando você. Jogando a capa no chão, ele rapidamente se levantou e se aproximou de Jesus” (Mc. 10, 49-50)
Por mais difícil que pareça a situação atual dessa pandemia, somos convidados como humanidade a reconhecer nossas forças internas, a redescobrir as reservas de vida, espiritualidade e significado que não podem ser extintas ou esgotadas, por mais complexa que seja a situação. Quando a vida chama e, nesta crise, vemos inúmeras expressões de uma vida que nos convida a ir contra a corrente do absurdo, somos capazes de nos levantar apesar do nosso quebrantamento e embarcar em um novo caminho. É o Deus da esperança, no caminho de Jesus para aqueles de nós que têm fé, que nos exorta a criar possibilidades de vida no meio desta crise.
Agora é a hora de abandonar tudo o que tem sido nossa aparente segurança, seja ela material ou espiritual, para descobrir o que é verdadeiro em nós, o que é verdadeiro nos outros e o que é verdadeiro na revelação de Deus. Com essa pandemia, muitas coisas mudaram em apenas alguns meses e muitas coisas nunca mais devem ser as mesmas. Que segurança supérflua, que eu considerava essencial, devo abandonar neste momento, seguindo o exemplo de Bartimeu ao jogar aquele cobertor que possivelmente era sua única propriedade, para me preparar para o que é verdadeiramente novo?
“Jesus, dirigindo-se a ele, disse: O que você quer que eu faça por você? O cego respondeu: Mestre, que eu recupere a vista” (Mc. 10, 51)
A vida nos dá uma oportunidade sem precedentes de repensar nosso futuro a partir dos fundamentos de nosso ser. É hora de reconhecer as raízes genuínas de nossa existência como membros humanos deste mundo maravilhoso e identificar o que realmente dá sentido às nossas vidas, separando-o do efêmero e do fugaz. O discernimento será o novo modo de viver e de ser, ou então toda essa pandemia indesejável terá sido em vão. É hora de caminhar dia após dia com a pergunta: o que Deus quer de mim e em que Ele quer que eu entregue a minha vida a partir de agora?
Recuperar a visão hoje é recuperar a capacidade de mistério, alteridade e tecer o Reino. Quando Jesus pergunta a todos agora, como a Bartimeu: o que você quer que eu faça por você? O que está em jogo é o próprio futuro. O que respondemos a esta pergunta? Somos capazes de assumir o que significa ser capaz de ver um horizonte além dessa crise?
“Jesus disse-lhe: Vá embora, sua fé o salvou. E imediatamente recuperou a visão e o seguiu pelo caminho” (Mc. 10, 52)
Para os crentes, somente em absoluto abandono ao Senhor será possível tornar-se parte do novo mundo que devemos tecer e construir a partir de hoje, mesmo com nossas muitas fraquezas. Um mundo que renasce e deve ser recriado nas ruínas e nas dores dessa pandemia e no pecado estrutural preexistente que ela revelou, para homenagear a vida de todos os irmãos e irmãs que caíram inesperadamente no caminho - e tantas vezes prematuramente (e muitas mais que infelizmente ainda verão sua luz se extinguir nos tempos vindouros). Essas mortes diárias devido à nossa incapacidade de ser irmãos e irmãs, as da pandemia atual e as causadas por muitas formas de injustiça, devem ser assumidas como uma fonte de possibilidade de mudar radicalmente o interior e o exterior. Uma verdadeira "metanoia".
Jesus nos redime no meio desta crise e nos dá mais uma vez a possibilidade de seguir caminhos sem precedentes para o Reino. Ele nos convida a segui-lo na caminho, mesmo que pareça que é noite e já sentimos o cansaço esmagador de carregar essa pesada cruz, porque sabemos que ele ficará conosco e que o reconheceremos partilhando o pão da vida, um pão que de levar a superar essa pandemia.
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“O que queres de mim? Senhor, que recuperemos nossa visão no meio dessa pandemia”. Artigo de Mauricio López - Instituto Humanitas Unisinos - IHU