14 Janeiro 2019
A situação no Vaticano é delicada, destaca a maioria das fontes consultadas. “Há muitas frentes abertas”, aponta um membro da cúria que despachou com o Papa nos últimos meses. Ninguém lembra uma oposição tão forte a um Pontífice por parte da ala conservadora. Em alguns ambientes da cúria, muitas vezes distante a este Papa, pensam já além e fazem suas apostas.
A reportagem é de Daniel Verdú, publicada por El País, 13-01-2019. A tradução é de Graziela Wolfart.
O grande reformador, como o definiu seu biógrafo, Austen Ivereigh, continua sem avançar em quatro das grandes transformações que anunciou na sua chegada: as finanças, a reforma da cúria, a comunicação e a luta contra a pederastia. Houve inúmeras mudanças nos dicastérios, mas depois de seis anos, é difícil encontrar um relato uniforme, além da valiosa aproximação com os pobres e com os migrantes, que o converteu em um importante ator político frente às investidas do populismo de Donald Trump ou Matteo Salvini.
A rigidez das estruturas não combina com o Papa, homem espontâneo, e sua equipe acaba mudando. Francisco assistiu a importantes demissões (seus dois porta-vozes foram embora há 15 dias) e escolhas equivocadas (o ministro de Finanças, George Pell, condenado por abusos).
Um Papa não precisa se preocupar com pesquisas. Mas a queda da sua popularidade no último ano, na Itália, apesar de seguir sendo alta, foi uma novidade. Dos 88% de 2013 passou para 71% em 2018, segundo a empresa Demos. Um desmoronamento especialmente grave entre os jovens e ainda mais acentuado nos Estados Unidos, onde os casos de pederastia tiveram grande impacto na opinião pública e somente 51% o valorizam favoravelmente (19% menos do que em janeiro de 2017), segundo o Pew Research Center. A sensação é de que Francisco, um homem que nunca pertenceu ao espetáculo, continua sendo mais popular entre os não-católicos.
O Papa quis ampliar o espectro da Igreja. E em alguns aspectos, como a histórica abertura à China de 2018 – que deverá se consolidar agora – ou a internacionalização do colégio cardinalício (nomeou 60 purpurados dos 124 que elegeriam hoje o novo Papa), expandiu o raio de ação. Em outros, como a imigração (agora sempre acrescenta que só podem chegar aqueles que são acolhidos) ou a homossexualidade, a qual pôs limite nos seminários, modulou por baixo seu discurso de ruptura. “O problema não é a ala conservadora que se irritou. Instalou-se uma certa desilusão”, destaca um alto cargo vaticano favorável ao Papa. Vieram as “curvas”, terminou a euforia.
1. Os pecados econômicos. A lavagem de dinheiro e as fraudes foram habituais durante anos em alguns organismos da Santa Sé. O Papa se propôs a reformar as finanças de Deus atacando diretamente os problemas históricos do Banco Vaticano (IOR) – este ano houve a primeira condenação vaticana – e os principais órgãos de gestão de patrimônio, como a APSA. Para isso, criou um superministério de finanças, dirigido pelo polêmico cardeal George Pell e contratou um auditor especialista (Libero Milone) que devia pôr ordem nos diferentes departamentos. Hoje nenhum deles permanece: o primeiro vive na Austrália e foi condenado por abusos e o segundo foi despedido sob acusações de espionagem. Seus departamentos seguem sem coordenação.
O caso de Pell respinga em várias direções. O cardeal, com um longo histórico de acusações de vítimas de abusos na Austrália, acaba de ser condenado em seu país e está à espera de um segundo processo pelo mesmo problema. O Papa decidiu colocá-lo à frente do departamento econômico e elevá-lo ao número três da Santa Sé, apesar das sombras que pesavam sobre ele (anos antes, Bento XVI não o quis à frente da Congregação para os Bispos). Também o deixou como conselheiro no grupo de cardeais que lhe assessoram para a reforma da cúria (C9) até o dia anterior da divulgação de sua condenação, em dezembro. Em 2019 poderia chegar um substituto que devolvesse um mandato transparente à área capital.
2. Os abusos sexuais. O caso Pell, o primeiro membro da cúpula vaticana condenado por abusos, questionou a política de tolerância zero do Papa (continua sem ser suspenso como prefeito). Mas logo vieram os casos do Chile, Alemanha, Estados Unidos e França, onde o cardeal Phillipe Barbarin está sendo acusado em um processo ao qual o Vaticano, apesar de seus pedidos de colaboração com a justiça às dioceses, negou a presença do prefeito para a Doutrina da Fé, Luis Ladaria (foi solicitada pelo tribunal).
A pior sacudida chegou com a acusação de um arcebispo e ex-núncio em Washington (Carlo Maria Viganò) ao Papa – um fato incomum – de haver encoberto os abusos do cardeal estadunidense Theodore McCarrick (perto hoje de ser reduzido ao estado laical). O terremoto expôs a guerra de poder no Vaticano, mas também uma maneira negligente de tratar os abusos que se remonta a João Paulo II.
O último escândalo afeta Francisco de novo, diretamente. O bispo argentino Gustavo Óscar Zanchetta, nomeado em 2013 pelo Papa, foi transferido a um posto em Roma como assessor da poderosa APSA, em 2017. Supostamente, deveu-se a problemas pessoais, no entanto, na Argentina foi publicado agora que havia várias denúncias de abusos sexuais e de autoritarismo contra ele. A Santa Sé nega que o conhecesse e que esse fosse o motivo pelo qual o Papa o trouxe. Mas o está investigando.
O grande marco de 2019 será o encontro em fevereiro (de 21 a 24) de todos os presidentes de conferências episcopais do mundo para buscar soluções globais ao problema. Mas as enormes expectativas geradas obrigam a tomar medidas concretas para que não pareça uma mera limpeza da imagem, como apontam a este jornal figuras curiais vinculadas a esta luta.
A irlandesa Marie Collins, vítima de abusos e ex-membro da Comissão Pontifícia que o Papa criou na sua chegada (foi embora acusando a cúria de obstaculizar as reformas) é cética. “Haverá muito discurso, discussão e declarações de intenções. Gostaria que houvesse um compromisso para uma política de vigilância universal, a mesma proteção para todos os países, porque há alguns onde não se vê isso como um problema. Também uma declaração clara sobre a desistência de contas, sobre quem faz as investigações e quem castiga. Se os bispos não seguem os procedimentos, quero saber o que acontecerá com eles”.
3. Crise na comunicação. A reforma da Comunicação, uma das grandes apostas de Francisco, foi caótica e acidentada. Se já é difícil gerir a relação com os meios de um Papa hipercomunicador, a criação de um grande ministério que engloba os meios vaticanos e a sala de imprensa gerou um conflito insuperável: os encarregados de responder aos meios não tinham acesso direto às fontes de informação. No dia 31 de dezembro, depois de pouco mais de dois anos no cargo (o período mais breve que se recorda), os dois porta-vozes do Papa, Greg Burke e Paloma García Ovejero, demitiram-se de seu cargo, abrindo um novo capítulo desta crise. Hoje, um posto tão relevante, está coberto de forma interina.
Mas a reforma afeta mais áreas. Poucos dias antes desta crise, chegou também a notícia da repentina suspensão de Giovanni Maria Vian, diretor do Osservatore Romano, jornal da Santa Sé, que dirigiu com rigor e o modernizou durante 11 anos, abrindo-o às mulheres. Outro movimento marcante neste processo de mudança que, entre outras coisas, reitalianizou uma área chave para a Santa Sé, pôs à frente de todo o aparato o jornalista leigo Paolo Ruffini, a quem o Papa deu todo o poder (seu predecessor foi demitido acusado de fabricar notícias falsas) em detrimento da Secretaria de Estado, tradicionalmente vinculada à Sala de Imprensa, por ser o departamento com maior informação da Santa Sé.
4. A reforma da cúria. Este ano deveria ser conhecida a nova Constituição Apostólica. Ou seja, o mapa da suposta transformação administrativa da cúria, cujo desenho ficou a cargo do famoso C9, o conselho de cardeais do mundo todo, que passou a ser C6, porque dois de seus membros foram gravemente atingidos por casos de abusos (um terceiro se aposentou sem ter sido substituído). Até agora, as mudanças não apresentaram grandes transformações e toda a Santa Sé está à espera do documento final que esclareça as coisas.
O professor da Universidade Gregoriana padre Roberto Regoli, especialista no assunto, aponta uma teoria. “Seguramente vimos nestes cinco anos muitos testes. Antes de dar o modelo de referência foram feitas provas setoriais. Foram criados dicastérios e alguns suprimiram outros. Os novos foram se redimensionando no tempo e outros se confirmaram”. O tempo para os testes, no entanto, será cada vez mais reduzido.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A crise vaticana em quatro atos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU