"A produção cinematográfica em grande escala, de forma massiva, possibilitou que a indústria de filmes chegasse em todos os lares daqueles que possuíssem recursos parar adquirir seus meios midiáticos. A cultura através da arte foi utilizada tanto por aqueles bem-intencionados, quanto por aqueles que queriam espalhar o pânico moral na sociedade." O artigo é de Alexandre da Silva Francisco, advogado, estudante do bacharelado e mestrando em filosofia pela Unisinos, membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Uma das coisas que mais admiro na sétima arte é a capacidade humana de dizer aquilo que não é dito. Filmes que usam e abusam de várias camadas de interpretação apresentadas aos espectadores, para contar suas histórias, fazer uma crítica social, ou simplesmente, fazer arte.
Um enredo bem construído é capaz de mudar uma ideia de lugar na mente daquele que assiste. É capaz de emocionar, de alertar, de informar ou de causar medo.
Filmes nos provocam experiências sensoriais, tanto para aqueles que estão inertes em seus lugares admirando as imagens que fluem das telas, quanto para aqueles que fazem as produções cinematográficas propriamente ditas.
Diretores, roteiristas, atores; cada um deles possuem uma história de vida diferente, experiências e aprendizados distintas. Cada um deles tem uma versão de si refletida no mesmo filme para ser transmitida aos espectadores, através das lentes de suas câmeras, de sua escrita criativa ou dos complexos movimentos de seus corpos. Sendo mais específico, filmes, antes de tudo, são produções humanas, sociais, históricas, cognitivas de uma determinada cultura, em determinado espaço-tempo.
Por outro lado, o medo humano possui características biológicas e psíquicas, pode ser experimentado, por exemplo, de maneira individual ou de maneira coletiva, levando um indivíduo ou uma sociedade a sempre buscar "neutralizar" aquele sentimento negativo.
O "Pânico moral" é uma expressão que descreve a reação exagerada ou desproporcional de uma sociedade a um grupo ou fenômeno percebido como uma ameaça aos valores e normas sociais estabelecidos. Desenvolvido pelo sociólogo Stanley Cohen em seu livro "Folk Devils and Moral Panics" (1972), o conceito analisa como certos grupos, chamados de "diabos populares" (folk devils), são demonizados pela mídia e pelas autoridades, gerando uma resposta pública inflamada.
Esse pânico geralmente segue um padrão: primeiro, identifica-se uma ameaça, que pode ser um grupo ou prática específica; em seguida, a mídia amplifica os riscos associados, frequentemente com narrativas sensacionalistas; como resultado, a sociedade reage de forma intensa e, muitas vezes, irracional, exigindo medidas severas contra essa ameaça, gestando os discurso de ódio, sendo a principal fonte da ascensão da extrema direita na política mundial.
Essa reação pode levar as autoridades a implementarem políticas ou ações repressivas, reforçando o pânico, em um ciclo de medo sem fim. Esse fenômeno não é raro e pode surgir sempre que as condições permitirem, reaparecendo quando novas "ameaças" são identificadas.
Exemplos históricos incluem a perseguição de bruxas, campanhas contra o uso de drogas e o medo da delinquência juvenil, entre outros. O conceito de pânico moral é útil para entender como as sociedades reagem ao novo ou ao diferente e como as narrativas de ameaça podem ser manipuladas para servir a interesses específicos.
A produção cinematográfica em grande escala, de forma massiva, possibilitou que a indústria de filmes chegasse em todos os lares daqueles que possuíssem recursos parar adquirir seus meios midiáticos. A cultura através da arte foi utilizada tanto por aqueles bem-intencionados, quanto por aqueles que queriam espalhar o pânico moral na sociedade. A partir daqui vamos analisar como os filmes de terror foram se modificando através das décadas, refletindo os receios, medos, e preconceitos, no recorte específico da sociedade americana.
No contexto do pós-guerra, os Estados Unidos emergiram como a principal potência mundial, desfrutando de uma economia próspera e de uma sociedade em expansão. A década de 1950, marcada pelo aumento da natalidade e pela prosperidade econômica, viu o crescimento dos subúrbios e a consolidação do "sonho americano". No entanto, por trás dessa fachada de euforia, uma sombra de paranoia se espalhava pela nação: o medo do comunismo.
Vampiros de Almas (1956), dirigido por Don Siegel, se insere perfeitamente nesse cenário. O filme, que retrata uma cidade americana sendo gradualmente tomada por réplicas alienígenas sem emoções, é uma alegoria clara da paranoia anticomunista que dominava os Estados Unidos na época. Na trama, os alienígenas substituem os humanos, retirando deles sua individualidade e emoções, o que reflete o temor de que o comunismo pudesse transformar os cidadãos em autômatos, obedientes a uma ideologia opressora, como se o Estado Americano fosse o grande salvador, criando a dicotomia "nós e eles".
Cena do filme Vampiros de Almas (1956), um clássico do cinema de ficção científica e horror que reflete as ansiedades da Guerra Fria, onde habitantes de uma pequena cidade são substituídos por réplicas alienígenas sem emoções, simbolizando o medo da perda de identidade e individualidade | Foto: Divulgação
A escolha de uma cidade interiorana como cenário, a fictícia Santa Mira, reforça a ideia de que o perigo poderia estar em qualquer lugar, até mesmo nos locais mais pacatos e prósperos. O médico Miles Bennell, protagonista do filme, simboliza o cidadão comum que, ao perceber a ameaça, tenta desesperadamente alertar os outros. A famosa cena em que Bennell corre pela estrada, gritando "Eles já estão aqui! Vocês serão os próximos!", ecoa o medo de uma infiltração comunista iminente, uma preocupação real para muitos americanos durante a era McCarthy.
A paranoia do período é capturada não apenas nas ações dos personagens, mas também na atmosfera do filme. A ideia de que qualquer pessoa poderia ser uma réplica alienígena—ou seja, um comunista disfarçado—reflete a desconfiança generalizada que caracterizou a caça às bruxas promovida pelo senador McCarthy e pela Comissão de Atividades Antiamericanas.
Senador Joseph McCarthy, em audiência no Senado durante os anos 1950, conduzindo uma das inúmeras investigações anticomunistas que marcaram a era da 'caça às bruxas' nos Estados Unidos | Foto: Wikimedia Commons
Embora o autor do romance original, Jack Finney, tenha evitado comentários políticos diretos, o filme de Siegel abraça completamente a alegoria da Ameaça Vermelha. A cena dos casulos na praça, em que uma multidão homogênea e sem emoções obedece às ordens de um chefe de polícia, é uma representação visual do medo de uma sociedade conformista e controlada pelo comunismo.
Vampiros de Almas foi um dos filmes que melhor capturou a atmosfera alarmista da década de 1950, utilizando a ficção científica e o terror para refletir as ansiedades e os temores de sua época. Ao longo dos anos, a história foi adaptada diversas vezes, cada uma refletindo os medos contemporâneos, mas a versão de 1956 permanece emblemática por sua poderosa alegoria da paranoia comunista durante a Guerra Fria.
Com o ressurgimento do feminismo na década de 1960, a voz das mulheres também começou a ganhar destaque. Após um período de aparente estagnação desde a década de 1920, as mulheres buscavam redefinir seu papel na sociedade. A Décima Nona Emenda, que concedia o direito de voto às mulheres, não havia garantido uma verdadeira igualdade de papéis no lar e na sociedade, nem aberto portas para igualdade educacional e de emprego. Assim, o movimento feminista, embora surpreendente para alguns, buscava corrigir essas injustiças.
O movimento feminista enfrentou oposição feroz das camadas mais conservadoras da sociedade, mas conseguiu importantes conquistas. Em 1964, o Título VII da Lei dos Direitos Civis proibiu a discriminação no emprego não apenas por motivo de raça, mas também por sexo, marcando um passo significativo para a igualdade de gênero.
Enquanto o feminismo e a luta dos negros por direitos iguais tinham contornos políticos, o movimento hippie se destacou na esfera social. Originado nas cidades costeiras dos Estados Unidos, especialmente São Francisco, o movimento hippie se espalhou por outras cidades e pelo mundo. Pregando um estilo de vida mais livre e pacífico, os hippies se opuseram à Guerra do Vietnã e deixaram sua marca na moda, na música e no comportamento sexual, promovendo a ideia de "Paz e Amor".
Os anos 1960 revelaram uma sociedade inquieta e ávida por mudanças, em contraste com os valores conservadores da década de 1950. Os filhos do "Baby Boom" estavam em busca de novas formas de expressão e de um novo modo de viver, antecipando o choque de gerações que se intensificaria na década de 1970.
A Noite dos Mortos-Vivos (1968), de George A. Romero
Na pulsão cultural dos anos 60 surge o filme "A Noite dos Mortos-Vivos". No início do filme os irmãos Bárbara e John visitam o túmulo do pai no primeiro dia de verão. Inesperadamente, John é atacado e morto por um morto-vivo, enquanto Bárbara escapa e se refugia em uma casa abandonada. Lá, ela se junta a outros sobreviventes – o jovem Ben, o casal Cooper com sua filha ferida, Karen, e os namorados Tom e Judy – e juntos tentam resistir aos ataques dos mortos-vivos.
Na década de 1950, os filmes hollywoodianos frequentemente exploravam ameaças interplanetárias e seres de outras galáxias. Contudo, na década de 1960, essas ameaças externas perderam relevância diante dos tumultos sociais e políticos que agitaram os Estados Unidos. O público descobriu que os verdadeiros horrores não vinham de fora, mas das tensões internas e da insatisfação com o status quo.
Cena de A Noite dos Mortos-Vivos (1968), dirigido por George A. Romero, um marco do cinema de terror que revolucionou o gênero ao introduzir zumbis como metáforas para as tensões sociais e raciais dos anos 60, enquanto um grupo de sobreviventes luta para escapar de uma invasão de mortos-vivos. | Foto: Getty Images
Na cena inicial do filme, a visita ao cemitério simboliza a transição entre o antigo e o novo, representando a necessidade de que a geração mais velha dê lugar à nova. O filme explora a morte de maneira perturbadora, desafiando a visão convencional de uma "boa morte" e expondo a mortalidade como um tema que a sociedade moderna preferiria ignorar.
O filme utiliza o horror da morte para refletir sobre a resistência ao velho e a necessidade de mudança. O fogo, que Ben usa para repelir os mortos-vivos, simboliza a paixão e o conhecimento que os antigos tentam suprimir. Ben, o personagem mais ativo e enérgico do filme, representa a resistência progressista e a luta pela igualdade. Sua liderança e sacrifício são uma analogia ao papel crucial desempenhado por figuras como Martin Luther King Jr. na luta pelos direitos civis.
Martin Luther King Jr. discursa diante de uma multidão durante a Marcha sobre Washington, em 1963, proclamando seu icônico sonho de igualdade e justiça racial na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. | Foto: Wikimedia Commons
Em contraste, as mulheres no filme, como Bárbara, são retratadas como emocionalmente vulneráveis e menos ativas na luta pela sobrevivência. Sua eventual derrota é um reflexo da ideia de que a mulher é frequentemente vista como menos racional e mais propensa a ceder à emoção.
A dinâmica entre os personagens também reflete o confronto entre gerações e ideologias. Ben e o Sr. Cooper representam posturas divergentes: o progressismo de Ben e o conservadorismo de Cooper. A confrontação entre eles destaca a vitória das ideias progressistas sobre o comodismo.
A cena em que a família Cooper é atacada e consumida pelos mortos-vivos ilustra ainda mais essa luta. A Sra. Cooper, tomada pelas ideias de Ben, se entrega à filha morta-viva, exemplificando como a resistência ao novo pode levar à própria destruição.
"A Noite dos Mortos-Vivos", um filme independente de 1968, sintetiza o medo da mudança e a resistência jovem contra as convenções antigas. A premissa simples – mortos-vivos que atacam os vivos – é um poderoso reflexo das ansiedades e dos conflitos sociais da época.
O Exorcista (1973), de William Friedkin
Se a década de 1960 foi marcada pela renovação e pelo questionamento das normas estabelecidas, a década de 1970 trouxe um retorno ao conservadorismo, com um forte desejo de restabelecer a ordem tradicional. Esse ambiente de reação ao progresso e a uma crescente sensação de insegurança se reflete claramente no filme "O Exorcista", lançado em 1973. O filme encapsula o medo e a ansiedade da época, com um foco na ameaça de um mal implacável que parece invadir o seio da vida familiar.
"O Exorcista" gira em torno da tentativa da atriz Chris McNeil de salvar sua filha adolescente, Regan, de uma possivelmente demoníaca influência. O filme utiliza o horror da possessão para representar a tensão entre as gerações e os temores de uma mudança cultural rápida e ameaçadora. A transformação de Regan de uma criança adorável para um ser demoníaco simboliza a percepção dos pais da década de 1970 de que estavam perdendo o controle sobre seus filhos e enfrentando uma ameaça que parecia estranha e incompreensível.
Capa do filme O Exorcista (1973), dirigido por William Friedkin, onde o terror psicológico e o horror sobrenatural se encontram em um dos filmes mais assustadores de todos os tempos, explorando a luta entre o bem e o mal através do exorcismo de uma jovem possuída. | Foto: Divulgação
Durante a década de 1970, os movimentos conservadores emergiram como uma reação contra as conquistas progressistas das décadas anteriores. O feminismo, o ativismo pelos direitos civis e a aceitação das minorias foram atacados por grupos que viam esses avanços como uma ameaça aos valores tradicionais. Organizações como o Feminilidade Fascinante e o Mulher Total se opuseram ao feminismo e à Emenda dos Direitos Iguais (ERA), alegando que isso ameaçava os valores familiares e promovia mudanças indesejadas, como banheiros unissex e a integração forçada de mulheres e homossexuais em áreas tradicionalmente masculinas.
Nesse contexto de reação conservadora, "O Exorcista" se torna uma alegoria poderosa para a batalha cultural que se desenrolava. A possessão demoníaca de Regan pode ser vista como uma metáfora para a ameaça percebida pelos pais conservadores, que sentiam que seus filhos estavam se afastando dos valores que eles consideravam essenciais. Regan, após sua transformação, representa o medo de que as novas influências – sejam elas a cultura pop, o consumo de drogas ou comportamentos desafiadores – estavam corrompendo a juventude.
A perda do controle que os pais sentem é exacerbada pela forma como Regan se comporta de maneira grotesca e agressiva, desafiando a autoridade e os valores estabelecidos. Suas ações, como a masturbação com um crucifixo e as blasfêmias, são particularmente perturbadoras porque atacam diretamente as instituições que os pais valorizam: a família e a religião. O filme não só destaca a transformação de Regan em um símbolo do mal, mas também reflete a crise de autoridade e a sensação de impotência dos pais diante de uma juventude que parece ser irreconhecível e ameaçadora.
O exorcismo em si – um ritual antigo e místico – representa a tentativa de restaurar a ordem e recuperar o controle perdido. A intervenção dos padres, especialmente o experiente padre Merrin, é uma tentativa de confrontar e erradicar o mal que ameaça desestabilizar o núcleo familiar. O confronto final entre o bem e o mal no filme pode ser interpretado como uma metáfora para a luta entre o conservadorismo e o progresso social, com a vitória do conservadorismo simbolizando o restabelecimento da ordem e a reafirmação dos valores tradicionais.
No entanto, o impacto de "O Exorcista" pode parecer menos forte no século XXI, onde os valores e normas sociais mudaram significativamente. A agressividade e a sexualidade de Regan, que foram chocantes para os espectadores da década de 1970, podem não ter o mesmo efeito em uma geração mais acostumada com a transgressão e a quebra de tabus. Assim, "O Exorcista" não só reflete os medos e ansiedades da década de 1970, mas também ilustra a mudança na forma como o medo e o horror são percebidos e experimentados ao longo do tempo.
O presente texto tem como fonte e inspiração teórica o artigo “Os filmes de terror como alegoria para os horrores sociais”, de Jaime César Pacheco Alves dos Santos e Maíra Carvalho. Disponível clicando aqui.