Por: Jonas Jorge da Silva | 19 Junho 2024
“A ideologia mais substantiva, mais essencial da sociedade contemporânea, da sociedade moderna, é a ideologia do crescimento. Não é a ideologia do liberalismo ou a ideologia do socialismo ou qualquer outra coisa. É na verdade a ideologia do crescimento, ou seja, os homens e as mulheres são incapazes de pensar o futuro e a sua vida que não seja por meio do crescimento, por meio de ter mais, de produzir mais, de consumir mais”, avaliou o sociólogo Elimar Pinheiro do Nascimento, do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília - UnB, ao abordar o tema Limites planetários: decrescimento ou inabitabilidade, no terceiro encontro da série de debates [online] Questões do Antropoceno.
A iniciativa do CEPAT conta com a parceria e o apoio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, do Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental – SARES, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá – UEM e do Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB.
Série de debates 'Questões do Antropoceno', com o tema 'Limites planetários: decrescimento ou inabitabilidade'
Inicialmente, o sociólogo citou acontecimentos que historicamente favoreceram a percepção de que vivemos um momento crítico do ponto de vista ambiental, social e político. Mencionou, por exemplo, o trabalho de Rachel Carson, Primavera silenciosa (1962), que alertava para questões como os agrotóxicos, a produção de chuvas ácidas, as ameaças presentes nos alimentos, entre outros. No entanto, são os anos 1970 que provocarão uma mudança geral na percepção mundial acerca dos dilemas do modo de vida moderno e seu modelo de desenvolvimento.
Em 1972, além da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, conhecida como Conferência de Estocolmo, considerada um marco para os debates que viriam, entrou em cena o chamado Relatório Meadows, intitulado Limites do Crescimento. Encomendado pelo Clube de Roma, o relatório de Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows, Jorgen Randers e William W. Behrens III trouxe para o debate a projeção de cenários sobre o desenvolvimento humano, baseando-se nos modelos computacionais mais avançados da época.
O relatório se notabilizou ao fazer prospecções para um tempo muito largo, mas sua grande novidade foi demonstrar que o crescimento tem limites, já que o planeta, com seus recursos hídricos e terras agriculturáveis, é limitado. Não é possível um crescimento contínuo sem que em determinado a humanidade se depare com um colapso. Ideia já estudada por Jared Diamond, em sua obra Colapso (2004). Estudando sociedades passadas, o autor busca encontrar elementos recorrentes no modo como algumas civilizações se extinguiram, tais como a mudança climática, a perda da cooperação e a solidariedade, as decisões equivocadas, entre outros.
Nascimento também fez menção às contribuições de Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994), matemático, estatístico e economista, cuja obra não teve a mesma repercussão de Limites do Crescimento, mas que é crucial para a formulação de um pensamento crítico acerca de nosso atual modelo de desenvolvimento. Utilizando a ideia de entropia, retirada da física, demonstrou que a economia é, na verdade, uma espécie de ramo da biologia e que todo processo de transformação é simultaneamente um processo de degradação. Ao final de um processo de transformação, uma energia boa resulta em energia de baixa qualidade.
Para Nascimento, a crise ecológica conta com ao menos três dimensões muito claras: um crescimento da poluição de largo espectro, uma perda constante da biodiversidade e uma mudança do clima. No processo de tomada de consciência da problemática socioambiental, inicialmente, a questão da poluição parecia ser talvez a mais importante de todas. Contudo, em 1992, quando a ONU realizou a sua segunda grande Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, conhecida como Rio 92 ou Cúpula da Terra, além da questão da biodiversidade, o clima também passou a ganhar muita visibilidade, terminando o século XX como o fator de maior preocupação. Hoje, fala-se do fenômeno como emergência climática.
Nesse sentido, Nascimento lembrou que este será o tema da V Conferência Nacional do Meio Ambiente, convocada por Marina Silva, que reunirá diversas conferências municipais e estaduais até a etapa nacional. Simultaneamente, uma rede interministerial do Governo Federal está elaborando um Plano Clima que, inclusive, poderá contar com propostas que venham desta conferência. A emergência climática também se mostra, por exemplo, no desastre que aconteceu e está acontecendo no Rio Grande do Sul, com milhares de desabrigados e quase duas centenas de falecimentos.
Para o sociólogo da UnB, no cerne da emergência climática há um ciclo vicioso de complexa mitigação. Como exemplo, cita o derretimento das geleiras que afeta diretamente o chamado efeito albedo, presente na capacidade do gelo sobre a superfície refletir a radiação solar, fazendo com que a terra não absorva todo o calor do sol, que retorna para o espaço. Na medida em que acontece o aquecimento global, as geleiras vão perdendo espaço e com isso o efeito albedo diminui.
Por baixo dessas camadas de gelo, surgem terras que estavam cobertas há milhares de anos e que passam a receber a luz do sol, chamadas de permafrost. Elas estão repletas de carbono, que passa a ser liberado na atmosfera. Sendo assim, o degelo diminui o processo de reflexo, aumentando o calor, e libera terras que aumentam o volume de CO2. Por sua vez, esse volume de CO2 impacta em um dos principais sumidouros que são os oceanos, aquecidos com acidez e perda de vida interna, o que reduz sua capacidade de absorver CO2, provocando um acúmulo ainda maior.
Outro grande sumidouro de CO2, que o capta e transforma, são as plantas. Na medida em que se desmata, também se destrói e reduz a capacidade deste segundo sumidouro.
Sendo assim, há menos efeito de transferência de calor, mais CO2 sendo liberado pelo permafrost e, ao mesmo tempo, redução da capacidade de absorção desse CO2. Com isso, tem-se um processo de acumulação de gases do efeito estufa, que por sua vez aumenta o degelo, o calor dos oceanos etc. Na visão de Nascimento, trata-se de um ciclo absolutamente infernal, pois ainda que a emissão de CO2 proveniente do uso de combustíveis fósseis fosse detida, haveria um crescimento dos gases do efeito estufa, um aumento no aquecimento global.
Nascimento mencionou que as reuniões internacionais, inclusive a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2015, em Paris, a partir de algumas recomendações do IPCC, indicaram que não se deve ultrapassar a temperatura em 1,5 grau em relação aos níveis pré-industriais, ou seja, quando a humanidade não utilizava combustíveis fósseis da forma como usa hoje. A expectativa era de que caso medidas fossem tomadas, este limite de 1,5 grau só seria atingindo a partir de 2050, devendo parar por aí, mas muito provavelmente já se ultrapassará o 1,5 grau nos anos 2030, agravando ainda mais o problema.
Os cientistas não sabem o que pode acontecer caso se ultrapasse os 3 graus. Se 1 grau é perigoso, se acima de 2 é muito perigoso, acima dos 3 graus não se sabe o que fazer, pois a vida pode se tornar infernal, com os mais diversos efeitos: aumento das tempestades, das secas, com incêndios, impacto sobre a saúde das pessoas, perda da capacidade produtiva, entre outros. Na avaliação de Nascimento, estamos entrando em um ciclo infernal e é necessário interrompê-lo de alguma forma, pois a crise atual ameaça a própria existência humana.
Feita esta análise mais geral sobre o panorama da crise ecológica, Elimar Pinheiro do Nascimento passou a analisar a forma como historicamente desenvolveu-se determinada crença no modelo de desenvolvimento que impera atualmente, com graves consequências para a vida no planeta. A partir dos séculos XVIII e XIX, com a Revolução Industrial, o mundo entrou em movimento, com mudanças cada vez mais velozes.
De fato, com a Revolução Industrial, criou-se um novo modelo de desenvolvimento que não existia inteiramente antes, que é o modelo de desenvolvimento conhecido como capitalismo ou economia de mercado. A noção de desenvolvimento passou a ser muito importante na sociedade moderna. Antes, a palavra desenvolvimento era utilizada apenas pela biologia, não havia um uso no sentido de desenvolvimento da sociedade humana, na questão do desenvolvimento econômico.
Para Nascimento, desenvolvimento é uma noção criada e difundida durante o século XX, que alimenta esse modelo que vivemos e todas as outras concepções. Tal noção está presente tanto em Walt W. Rostow, com o seu famoso livro Etapas do desenvolvimento econômico, de 1970, cujo subtítulo é “um manifesto não comunista”, uma resposta dos Estados Unidos à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas; quanto em Celso Furtado, que na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – CEPAL pensou o desenvolvimento não apenas econômico, mas também social e cultural; no indiano Amartya Sen, com a ideia de que o desenvolvimento é na verdade o crescimento da capacidade de escolha dos humanos; e no relatório da ONU, com a ideia de desenvolvimento sustentável, dirigido pela ministra norueguesa Gro Harlem Brundtland.
“Todas essas concepções possuem um elemento comum, que é o núcleo do crescimento econômico. Todas supõem de certa maneira o crescimento econômico. Isso significa, e essa é uma hipótese que eu tenho e partilho com diversos colegas que trabalham essa questão, que a ideologia mais substantiva, mais essencial da sociedade contemporânea, da sociedade moderna, é a ideologia do crescimento. Não é a ideologia do liberalismo ou a ideologia do socialismo ou qualquer outra coisa. É na verdade a ideologia do crescimento, ou seja, os homens e as mulheres são incapazes de pensar o futuro e a sua vida que não seja por meio do crescimento, por meio de ter mais, de produzir mais, de consumir mais”, avaliou Nascimento.
Lembrou, por exemplo, que na China, que tem um regime socialista um pouco híbrido, por causa da economia capitalista, o que as pessoas querem é consumir mais. “Todo mundo quer consumir mais, todo mundo quer ter mais coisas. E o consumir mais, ter mais, está muito relacionado a ser mais feliz, o que é uma enganação”. Nesse sentido, “o mundo é movido, na verdade, pela ideologia do crescimento”, que nos leva à situação crítica atual.
Série de debates 'Questões do Antropoceno', com o tema 'Limites planetários: decrescimento ou inabitabilidade'
Na busca de respostas a esse crescimento econômico e seus impactos sobre a natureza, Nascimento reconhece que há uma diversidade de proposições, mas que ganhou relevância a ideia de desenvolvimento sustentável. “Inclusive, o centro onde eu trabalho chama-se Centro de Desenvolvimento Sustentável. Foi criado justamente em 96, inspirado pela Conferência de 92. Todos nós partilhávamos a ideia de que o desenvolvimento sustentável era a saída. E o desenvolvimento sustentável está ancorado em uma quadratura do círculo, ou seja, em algo impossível, que é crescer sem destruir a natureza. É impossível”, criticou. “Se você cresce economicamente, se você utiliza mais recursos naturais, necessariamente está degradando a natureza. Não necessariamente está destruindo todas as coisas, inviabilizando a vida humana, mas provoca uma destruição inexorável”, reconheceu.
Em sua análise, o desenvolvimento sustentável decidiu trilhar dois caminhos para enfrentar o problema da crise ecológica: a descarbonização e a desmaterialização da economia. Ambos demonstram limites.
A descarbonização busca a substituição dos combustíveis fósseis por energia limpa: solar, eólica, a fissão nuclear, entre outras. Enfim, produzir energia, que é essencial para a nossa vida, sem utilizar combustíveis fósseis, iniciando o que se chama de transição energética do uso de combustíveis fósseis para outras fontes. Houve muitos esforços nesse processo de descarbonização, mas insuficientes. Basicamente, ainda se utiliza combustíveis fósseis para produzir energia em nível mundial.
O segundo caminho almeja a desmaterialização da economia, contemplando a ideia de que é necessário reduzir o uso de recursos naturais na produção de um produto ou mercadoria. Reduzindo recursos, diminui-se a degradação da natureza, o uso de recursos que são limitados. Contudo, há um efeito rebote nessa desmaterialização. Ao se utilizar menos recursos naturais, diminui-se o preço do produto e, assim, aumenta-se o número de pessoas que podem comprar o produto. Consequentemente, apesar de se gastar menos recursos naturais por unidade, no balanço geral das mercadorias, há um aumento na produção, pois aumenta o consumo, ou seja, a degradação ambiental permanece alta.
Apesar de avanços na descarbonização e na desmaterialização, são respostas insuficientes. A prova está em duas constatações: cresce a perda de biodiversidade e aumenta os gases do efeito estufa na atmosfera. São respostas ineficazes, pois apesar do esforço que se faz, o desastre continua sendo gestado.
Diante das limitações da proposta do desenvolvimento sustentável, Nascimento apontou que um conjunto de pessoas, cientistas, militantes e trabalhadores começou a perceber que por este caminho não há futuro, podendo levar ao colapso. Então, passam a surgir respostas consideradas pós-desenvolvimentistas, com a seguinte indagação: como viver, produzir e consumir fora do desenvolvimento, fora desse crescimento contínuo?
Uma das vertentes do pós-desenvolvimento é a de Herman Daly, um norte-americano que foi discípulo de Georgescu-Roegen, com a ideia de economia estacionária (desenvolvimento qualitativo).
Outra ideia muito importante surgida no norte é a ideia de decrescimento, sobretudo com Serge Latouche e Joan Martínez-Alier. Não se pode crescer mais, portanto, é necessário decrescer, diminuindo o balanço geral de CO2, o uso de recursos naturais. Nascimento lembrou que Serge Latouche sugere o que chamamos de revolução dos ‘Rs’: reciclar, reusar e reduzir o nosso consumo. É possível reduzir o consumo sem perder a qualidade de vida. Por exemplo, quando se reduz o tamanho ou uso de embalagens, diminui-se o número de árvores para a produção de papel.
Nascimento destacou que para Edgar Morin o decrescimento não é total, não envolve a ideia de que todos precisam diminuir o seu consumo. São os adversários do decrescimento que dizem coisas assim. Para o pensador francês, na dinâmica do decrescimento, é preciso crescer decrescendo e decrescer crescendo.
Isso significa que zonas pobres, segmentos sociais que possuem menos bens materiais para poder viver, precisam crescer, ou seja, precisam produzir mais alimentos, mais casas, mais roupas, ou seja, elementos básicos para uma vida digna. Por outro lado, é necessário decrescer o consumo dos ricos, a produção de automóveis, entre outros. Com isso, é possível manter a qualidade de vida das pessoas, fazendo com que todos tenham uma vida melhor.
“Nessa linha do decrescimento, Cristovam Buarque tinha sempre uma proposição muito interessante, que infelizmente nunca escreveu. Não me lembro se ele publicou em algum lugar, mas sempre falava isso e depois foi retomado por uma economista. Dizia: o mundo tem que criar duas linhas. Primeiro, a linha de baixo, que é a da dignidade da cidadania, ninguém pode ter menos do que necessita para ter uma vida digna. Ninguém pode passar fome, ninguém pode não ter casa, ninguém pode não ter transporte. Tem que haver uma linha mínima de dignidade para todos. Depois, vem a linha máxima, ou seja, a linha ecológica: ninguém pode consumir do jeito que quer. Não se pode permitir que um Neymar da vida tenha dez carros e três aviões, porque está utilizando recursos naturais que são necessários para melhorar a vida daqueles que não têm”, destacou Nascimento.
Uma outra vertente do pós-desenvolvimento é o bem viver, que nasce nos Andes, mas também está presente nos povos africanos e asiáticos. Trata-se da vida em harmonia com a natureza, extraindo-se dela apenas o necessário para viver. “Nós, humanos, somos animais, somos parte da natureza como qualquer outro. Não somos descolados da natureza com a ideologia do crescimento, do modelo econômico que o capitalismo criou”, ressaltou.
Por fim, há também a vertente da prosperidade sem crescimento, que é um pouco a utilização das ideias que estão presentes no bem viver e no decrescimento: é possível viver com menos. É claro que é necessário atender as necessidades de todas as pessoas, mas, no conjunto, é possível ter um aumento da prosperidade humana, um aumento da qualidade de vida das pessoas, sem necessariamente crescer a fabricação de produtos.
“O desafio, portanto, é criar uma alternativa para enfrentar essa crise”, avalia Elimar Pinheiro do Nascimento, dizendo que é preciso ir além. Não basta só proteger a natureza, é preciso regenerá-la. “É necessário, por exemplo, melhorar a qualidade de vida dos 29 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia, sem derrubar a floresta. É preciso superar a ideologia do crescimento. É preciso criar uma nova utopia, criando um caminho de harmonia com a natureza. É o único caminho para sobrevivermos”, conclui.
Abaixo, disponibilizamos a íntegra da exposição e debate.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Superar a ideologia do crescimento e sair do ciclo infernal: crescer decrescendo e decrescer crescendo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU