20 Mai 2020
Para Kate Raworth (Londres, 1970), a economia deveria ter a forma de um donut, de uma rosquinha. Esboçou uma teoria que rompe com o mercado da forma como é hoje. Propõe deixar de buscar riqueza à custa dos limites ambientais e da justiça social. Sua teoria foi apresentada como um documento de trabalho para Oxfam, em 2012, depois conquistou protagonismo na Assembleia Geral da ONU e foi uma referência para o movimento social Occupy London.
Defende uma transição da que chama economia do século XX para a do século XXI, na qual o PIB, um índice finito, seria substituído por uma rosquinha que relaciona as necessidades humanas com o impacto ambiental da economia na sociedade e na Terra como ente vivo.
A entrevista é de Belén Kayser, publicada por Rebelión, 16-05-2020. A tradução é do Cepat.
Nota do Instituto Humanitas Unisinos IHU: Amanhã, quinta-feira, Kate Raworth proferirá a conferência 'Designing a regenerative and distributive economy' promovida por A Economia de Francisco. On-life seminars. Moving towards a post-Covid better World. Para acessar o link do seminário clique aqui. Para mais informações veja o banner anexo.
Estudou economia, mas não se sente economista. Por quê?
Defino-me como uma economista renegada e me parece razoável. Acredito no conceito grego de economia como a arte de administrar o lar. A Universidade deveria reconhecer que o sistema de produção e distribuição depende da sociedade e do mundo vivo, onde está integrado, e da saúde de ambos. A economia é interdependente da saúde e dos recursos do planeta, são as fontes às quais recorre. Todos os economistas deveriam repensar os indicadores do mundo em que vivemos e questionar como lidamos com os nossos recursos planetários. Isto deveria ser o ponto de partida: a natureza é inerente à economia.
O que quer dizer, quando pede para abandonar a concepção do século passado?
Nos anos 1870, os economistas fizeram uma analogia entre as leis do movimento de Newton e a economia: assim como a gravidade atraía coisas para ela, os preços iriam atrair a economia para o equilíbrio. O problema é que, enquanto a ciência avançou, a economia ficou no século XIX. Se a questão é administrar seu lar, primeiro você precisa entender como funciona. Aprender da psicologia, da neurociência, da sociologia, da antropologia e da ciência terrestre. É preciso colocar à frente o bem-estar humano e planetário e a saúde de ambos. O indicador do crescimento é o PIB, mas deveria ser a prosperidade humana. É preciso traçar que tipo de mentalidade econômica, instituições, políticas e estruturas são necessárias para isso.
Propõe uma nova estrutura em forma de ‘donut’. O que significa?
É um diagrama que almeja condensar o salto do velho para o novo pensamento econômico. O desafio é criar economias locais e globais que levem a todos o espaço seguro e justo do donut [o anel principal, por baixo do qual estão as carências do sistema e, por cima, os excessos]. Em vez de perseguir um PIB cada vez maior, é hora de descobrir como prosperar de forma equilibrada. A economia donut satisfaz as necessidades de todas as pessoas, mas dentro dos limites do planeta. Que tipo de economia do século XXI poderá fazer isto?
Por que é tão importante o meio ambiente em seu sistema?
O bem-estar humano depende da terra viva. Se quisermos ter comida suficiente, precisamos de solos férteis e um clima estável. Se quisermos viver de forma saudável, precisamos de ar limpo e uma camada de ozônio. Nosso bem-estar depende dos sistemas que suportam a vida na Terra. Estes foram mal compreendidos no século passado e deixados à margem da teoria econômica. É hora de colocá-los no centro de nossa visão de bem-estar.
Como sua teoria propõe repartir a riqueza?
É preciso pré-redistribuir as fontes de crescimento e de conhecimento. Por exemplo, auxiliar para que a propriedade seja distribuída, compartilhada, com energias renováveis, e que as comunidades sejam proprietárias. O crescimento das licenças de código aberto é um conhecimento de forma distributiva. Em relação à moradia, apoiar um modelo mais distributivo, por exemplo, mediante cooperativas. A reforma é profunda. Mais que confiar na redistribuição de renda, é preciso pensar em instituições mais distributivas e pensar em como criar uma economia com tecnologia, com desenho.
Em que a gestão centralizada e a distributiva se diferenciam?
Pensemos na energia fóssil: era extraída, refinada e vendida. Isso era uma gestão centralizada nas mãos de uma empresa que possui os direitos de uma exploração e que gere tudo. No caso da energia, a distribuição por desenho seriam as pequenas estações solares de uma casa. No século XX, a propriedade se tornou muito importante, um campo de batalha entre companhias, com suas patentes e a propriedade intelectual. Haviam boicotes para que a inovação não crescesse. Hoje, temos creative commons, licenças de uso coletivas e padrões abertos, outra forma de distribuição por desenho. Em matéria de instituições, é possível aplicar o mesmo modelo e mudaria seu comportamento.
Como deveríamos mudar, então, a forma de fazer negócios?
Perguntando-nos: Por que uma companhia pode explorar os recursos da terra com a bandeira de conseguir lucros e aumentar as vendas? Por que tem o direito de minar os direitos sociais? O desenho das empresas do século XXI precisa gerar valor social, ambiental e cultural, compartilhar e beneficiar a criação conjunta e a devolver ao planeta do qual dependemos. Então, rapidamente as empresas velhas ficarão realmente velhas, caducas, não terão lugar. Mas, cuidado, há empresas que querem repensar seus modelos e podem ocorrer casos como a da mal chamada economia colaborativa: que sejam negócios de antes, com o disfarce novo.
Você não acredita na economia compartilhada?
As mudanças de modelo, tecnológicas e de uso sempre trarão consigo possibilidades muito distintas, mas a palavra compartilhar implica outras coisas mais humanas e profundas na natureza. Nunca chamaria o Airbnb de economia compartilhada. Isto é microcapitalismo, continua sendo aluguel, não é compartilhar, ainda que o termo esteja tão ampliado. A tecnologia nem sempre defende distribuir de forma igualitária os recursos. A rede, por exemplo, está dominada pelo Facebook, Ebay, Google... bem poucas empresas levam a vantagem das redes em que estão.
A Internet retrocedeu?
A Internet 2.0 se tornou algo muito concentrado, mas nem sempre foi assim. A Internet 1.0 abrigava redes mais autênticas, com mais valor. Estamos nos inícios da Internet 3.0. As pessoas estão começando a reagir, a se rebelar contra tudo, a entender os efeitos negativos dessas redes, dessa Internet. Preocupam-se com a privacidade, os preços dos aluguéis... A Internet terá um valor diferente se formos capazes de criar, de ter outro tipo de redes de colaboração: menores, melhor conectadas entre si e não dominadas pelos grandes da Internet.
Como acontecerá a transição?
Haverá velhos agentes que se transformarão para fazer parte do novo sistema, mas será difícil. Por exemplo, o redesenho concebido pelo donut consiste em que as companhias poderiam começar a vender serviços em vez de produtos: iluminação em vez de lâmpadas.
Que exemplos você conhece que estão neste novo paradigma?
O diretor executivo de Unilever, Paul Polman, está tentando reinventar a companhia, dar a ela um propósito do século XXI, mas segue nas mãos do mercado, negocia na bolsa, continua sendo regido pelo curto prazo. Patagonia é uma empresa que de base possui um sistema distinto, que trabalha para mudar o sistema em que vivemos. Yvon Chouinard (1938, Lewiston) a fundou sobre valores realmente ambientais – é alpinista e ecologista –, é assim na filosofia da marca. Ou Houdini, fundada com base dos limites planetários.
As empresas podem pensar que seu sistema não é possível ser aplicado ao mundo em que vivemos, onde quase tudo é extrativo ou tem obsolescência. Eu falo também em minha teoria da ética. Suponho que não é muito ético fabricar algo que você sabe que irá quebrar.
As pequenas empresas têm maiores possibilidades de se transformar em empresas do século XXI?
É certo que as startups, a priori, têm maiores possibilidades de mudar suas estruturas ou de nascer com um modelo de negócio mais circular, mas quando falo com elas, o que mais repetem é que precisam crescer. É o que mais lhes importa. Nisso está baseado seu modelo. Todas estão competindo no mesmo terreno, ainda que às vezes em mundos paralelos. Você pode centrar seus esforços em ser sustentável e regenerador, mas em última instância depende da estrutura da companhia. Obter o maior retorno e lucros possíveis deve deixar de ser a meta. E a base deve ser a proteção ambiental, não pode ser algo acessório.
Não é partidária de frear os abusos ambientais com impostos. Por quê?
Os impostos, as cotas e os preços escalonados podem contribuir para aliviar a pressão que a humanidade exerce sobre as fontes da Terra, mas são insuficientes. As empresas exercem pressão para atrasar sua execução ou para reduzir os tipos fiscais, obter bonificações... Os Governos cedem porque temem que seu país possa perder competitividade ou que seu partido perca votos. As cotas e impostos que limitam as existências e reduzem os fluxos de poluição pretendem mudar o comportamento de um sistema, mas são alavancas de baixa influência. Quando a indústria é de fabricar, usar e jogar, os incentivos não evitam que os recursos se esgotem. O que se necessita é um paradigma de desenho regenerativo que mude as empresas.
E por onde começamos?
Por exemplo, para retirar do mercado os plásticos de apenas um uso e os produtos com obsolescência, é preciso criar um ecossistema de materiais diferente do que temos e pelas mãos das empresas. Algumas companhias têm em suas fábricas alguns dos engenheiros e desenhistas mais engenhosos e brilhantes, estou certa de que existiriam desenhos mais efetivos, se fosse o seu objetivo. É preciso pensar que todos os materiais, sejam biológicos ou técnicos, sejam metais, fibras que não se decompõem naturalmente, devem ser desenhados para ser reutilizados ou reacondicionados e, em última instância, reciclados.
Olhe, por exemplo, os telefones móveis: em 2010, só foram reutilizados 6%, 9% foram desmontados para reciclar e 85% foi para o lixo. É preciso outro desenho.
O ‘donut’ acabará com a desigualdade?
Das emissões poluentes, 45% partem da demanda de 10% da população. Existe uma enorme diferença no uso que se faz dos recursos planetários. Um dos principais propósitos do donut é criar uma economia regeneradora e reduzir esta brecha. Eliminar os extremos no bem-estar. E uma das razões pelas quais insisto tanto nos limites planetários é a mudança climática. Sei que é um projeto muito audaz para o século XXI, mas é precisamente este o tipo de projeto que devemos abordar, porque não podemos deixar este legado aos que vierem depois e aos filhos destes. E devemos nos sentir orgulhosos de colocá-los como meta.
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“A ‘economia donut’ satisfaz as necessidades de todas as pessoas, mas dentro dos limites do planeta”. Entrevista com Kate Raworth - Instituto Humanitas Unisinos - IHU