A manosfera online seduz e radicaliza meninos e homens. Entrevista especial com Elisa García Mingo

Com promessas de identidade e pertencimento, fóruns online arrastam meninos e homens para ideologias machistas, racistas e antidemocráticas

Foto: Pexels

Por: Tradução e edição: Letícia Fagundes | 05 Junho 2025

Em um mundo cada vez mais mediado por telas e algoritmos, a violência deixou de ser apenas física ou visível, ela se tornou também digital, simbólica e cotidiana. O ambiente virtual, que poderia ser espaço de liberdade, criatividade e diálogo, tornou-se, muitas vezes, um território hostil para todos, mas principalmente os que estão nesse ambiente de forma mais assídua, os jovens. É neste cenário que atua a socióloga e professora Elisa García Mingo, coordenadora do Projeto Divisar, uma potente iniciativa espanhola que une ciência, imaginação e ação para enfrentar as novas formas de violência na sociedade digital.

O Projeto Divisar busca compreender as dinâmicas violentas da era digital, especialmente a violência sexual, e propor caminhos para uma internet mais justa, com perspectiva de gênero e antirracista. Mais do que uma pesquisa acadêmica, trata-se de um exercício de compreensão política.

Na entrevista a seguir, García Mingo compartilha os principais achados de suas pesquisas sobre a manosfera, os discursos antifeministas e a radicalização de jovens homens em ambientes como fóruns, jogos online, TikTok e plataformas digitais. Ela explica como essas subculturas digitais formam um vocabulário próprio, alimentam sentimentos de perda e vitimização masculina e conectam-se com ideologias políticas ao redor do mundo.

O projeto vai além do diagnóstico. Com base em trabalho de campo online e offline, a entrevistada e sua equipe colaboram com escolas, organizações civis, profissionais da saúde e de justiça e até mesmo com o Parlamento Europeu, contribuindo para legislações sobre inteligência artificial e proteção de menores. Ela defende que a transformação social exige ações coletivas da regulação das grandes plataformas à formação crítica de educadores, passando pela construção de espaços físicos de acolhimento juvenil.

A entrevista é um chamado urgente para avaliar, de forma crítica, o papel da ciência social em tempos de polarização e sofrimento psíquico crescente no referente ao ambiente digital. Como responsabilizar as plataformas digitais por sua atuação? Como formar educadores e famílias para dialogar com adolescentes imersos na cultura online? Como oferecer referências de masculinidade que não sejam baseadas no domínio e no ressentimento?

García Mingo oferece um horizonte, a da reconstrução social através da legalização das tecnologias. Afinal, como ela mesma diz, “não estamos falando da sua geração, mas da geração Z e alfa e elas têm direito a uma internet habitável”.

Na entrevista, os temas explorados são: masculinidades, extrema-direita, manosfera, redes sociais e articulações políticas.

A seguir, publicamos no formato de entrevista a conferência Relações entre masculinidades e a extrema-direita. Manosfera, redes sociais e articulações políticas, proferida por Elisa García Mingo. A atividade integra o Ciclo de estudos Juventudes e o espírito do tempo e do espaço. Desafios tecnopolíticos e socioambientais.

Elisa García Mingo (Foto: Ximenaysergio)

Elisa García Mingo é doutora pelo Departamento de Sociologia, Metodologia e Teoria da Faculdade de Ciências Políticas e Sociologia da Universidade Complutense de Madri. É licenciada em Jornalismo, com mestrado em Metodologia da Pesquisa Social pela Complutense de Madri e mestrado em Migração, Conflitos e Coesão Social pela Universidade de Deusto. É doutora em Estudos Internacionais e Interculturais pela Universidade de Deusto.

Foi pesquisadora júnior na Universidade de Deusto, Marie Curie Predoctoral em Coimbra, e bolsista de pós-doutorado na Universidade Complutense. Também atuou como pesquisadora na Universidade Villanueva. Ela integra o grupo de pesquisa sobre cultura digital e movimentos sociais, além de ser membro associada do centro Transforming Sexuality and Gender da Universidade de Brighton.

A professora também foi pesquisadora e docente convidada nas universidades de Coimbra, Alberto Hurtado, Católica do Chile, McGill e Brighton, entre outras.

Confira a entrevista.

IHU – Como o Projeto Divisar através da pesquisa pode transformar a internet em um espaço mais justo e seguro, especialmente para mulheres e jovens?

Elisa García Mingo – Coordeno a equipe de trabalho do Projeto Divisar, um projeto de pesquisa com duração de quatro anos que busca estudar a sociedade digital para compreender as dinâmicas violentas, essas novas formas de violência na sociedade digital.

Atualmente, estamos focadas no estudo da violência sexual. Nosso trabalho é um exercício de imaginação. Imaginamos como seria uma internet sem violência, com perspectiva de gênero, uma internet antirracista. E digo que é imaginação porque a internet atual, infelizmente, é um espaço com pouca harmonia.

Reprodução do slide apresentado durante a conferência de Elisa no IHU.

Nossas pesquisas tentam entender criticamente a tecnologia. Estudamos as tecnoculturas atuais para desvendar e problematizar o sexismo e a violência nesses novos ambientes digitais. Isso inclui o estudo da manosfera, dos discursos de ódio, das masculinidades, da política troll, entre outros. Nosso enfoque também busca compartilhar não só os resultados, mas dialogar sobre que tipo de ciência podemos e devemos fazer frente a essas questões que afetam a democracia digital e as relações de gênero igualitárias.

Nossa perspectiva nas ciências sociais parte de uma postura muito clara. Todos os resultados são fruto de trabalho de campo empírico, tanto online quanto offline. Trabalhamos principalmente com adolescentes e jovens entre 12 e 29 anos, abrangendo a adolescência e a juventude.

Também buscamos criar redes com outros pesquisadores e pesquisadoras na Espanha e no exterior que trabalham com esses temas.

Colaboramos ainda com organizações da sociedade civil e ONGs, criando protocolos, guias, intervenções, avaliando ações voltadas ao bem-estar digital e à proteção da infância e juventude. Nos últimos anos, também temos formado profissionais como operadores da justiça, professores do ensino médio, serviços sociais e agentes de saúde pública preocupados com as novas dinâmicas sociais e polarizações.

Atuamos frente ao surgimento de discursos negacionistas da violência de gênero e novas violências digitais. Temos atuado junto a parlamentares europeus e parlamentos regionais da Espanha, contribuindo para novas leis sobre inteligência artificial, bem-estar digital de menores e novas formas de violência contra mulheres e meninas.

Tudo isso para contextualizar o tipo de ciência que acreditamos necessária neste momento histórico, seguindo a lógica deste ciclo de estudos: o que acontece com as juventudes e qual é o espírito deste tempo? Que tipo de ciência esses desafios tecnopolíticos exigem?

IHU – Como o sentimento de perda e vitimização expressado por alguns jovens, em grupos masculinos online, afeta a forma como eles entendem o feminismo e se relacionam com as mulheres?

Elisa García Mingo – São seis anos investigando a manosfera, sua influência sobre os jovens, sua percepção sobre a violência e o que significa ser um homem jovem hoje na Espanha. Um exemplo é o relatório “Culpables hasta que se demuestre lo contrario” (Culpados até que se prove o contrário), que investiga como e por que alguns jovens, sobretudo homens, adotam posturas de banalização ou negação da violência de gênero. Nosso estudo mais recente, publicado em novembro de 2024, é uma pesquisa nacional com jovens de 16 a 29 anos sobre violência sexual digital. Usamos o termo “manosfera” para traduzir o inglês “manosphere”. Esse conceito refere-se a um conjunto de culturas digitais masculinas, caracterizadas por serem misóginas e antifeministas.

Essas subculturas digitais não estão limitadas a uma única plataforma. Não apenas o Twitter (agora X), Facebook ou Instagram, mas qualquer espaço digital onde se crie conteúdo misógino, conspiracionista e antifeminista. Existe uma manosfera mais mainstream e anglófona, como alguns subfóruns do Reddit, a cultura chan (4chan, 8chan), e a incel Wiki. Nos últimos anos, surgiram também manosferas locais, como a espanhola, a brasileira e a turca. Pesquisadores documentam cada vez mais as variações em diferentes países e comunidades linguísticas.

Como as comunidades digitais são muitas vezes transnacionais, há diferentes subculturas na manosfera, mas em geral, são comunidades antifeministas com forte dimensão afetiva. Encontramos, por exemplo, comunidades em torno de youtubers, streamers na Twitch, tiktokers ou no Twitter, onde predominam sentimentos de vitimismo e sofrimento masculino. Esse sentimento se manifesta como a percepção de perda. Homens que acreditam que perderam direitos e que espaços antes exclusivos masculinos agora são ocupados por mulheres, como, por exemplo, mulheres árbitras de futebol, na política, nos videogames.

Há uma grande nostalgia por um passado onde o homem era o provedor e chefe da casa. O objetivo, muitas vezes implícito, é restaurar essa masculinidade tradicional, essa hegemonia masculina. Esse objetivo se expressa quando os homens são apresentados como verdadeiras vítimas, alegando que o feminismo é a causa dessa inversão. Frequentemente, há também a legitimação de formas de violência contra as mulheres. Por exemplo, entre os MRAs (ativistas dos direitos dos homens), é comum a ideia de que a violência sexual não é tão disseminada, mas um “pânico moral” criado pelas feministas.

Também encontramos o “gender trolling”, uma forma de violência digital que consiste em ataques massivos e contínuos contra mulheres destacadas na internet, seja por seu trabalho ou por serem figuras públicas. Tradicionalmente, a manosfera inclui quatro grandes subculturas, todas com misoginia e antifeminismo. A mais antiga são os pickup artists, homens que se apresentam como treinadores de sedução, ensinando métodos para conquistar mulheres, surgidos nos anos 1990.

Reprodução do slide apresentado durante a conferência de Elisa no IHU.

Outra subcultura conhecida é a dos incels (celibatários involuntários), homens frustrados sexualmente que reivindicam o direito a relações afetivas, mas alegam que a sociedade feminista os impede.

A terceira é a dos homens que seguem seu próprio caminho, The Men Who Go Their Own Way (MGTOW), que também têm ideologia misógina, mas optam pelo celibato voluntário e a vida sem mulheres. São homens que escolhem não casar, não ter filhos, evitar exposição pública e não cair na chamada “armadilha” das mulheres, que eles geralmente veem como pessoas interesseiras, cujo único objetivo seria obter dinheiro ou status dos homens.

 

Reprodução do slide apresentado durante a conferência de Elisa no IHU.

Por fim, a quarta comunidade tradicional da manosfera é a dos ativistas dos direitos dos homens, conhecidos em inglês como Men’s Rights Activists, ou simplesmente MRAs.

IHU – Por que os incels se sentem rejeitados pela sociedade e como isso afeta a forma como eles veem os relacionamentos e as mulheres?

Elisa García Mingo – São comunidades digitais focadas na reivindicação dos direitos dos homens. Dentro delas, destacam-se os ativistas dos direitos dos pais, homens que perderam a custódia dos filhos e se sentem prejudicados pelas leis de divórcio, que consideram injustas e favorecedoras das mulheres em questões como guarda, pensão e divórcio.

Entre essas subculturas, a que chama mais atenção para entender certas questões é a subcultura incel. Nos últimos anos, o interesse acadêmico sobre esse tema cresceu muito, especialmente a partir de 2010, quando o debate sobre incels e a manosfera explodiu. Diversos relatórios de think tanks e governos, como os da Noruega e do Reino Unido, têm sido publicados para estudar esse fenômeno.

Um levantamento no Google Trends mostra que as buscas pelo termo “incel” aumentaram, especialmente em momentos relacionados, como o lançamento do filme Joker, que se tornou um marco cultural para essa subcultura. A cultura incel tem ganhado espaço em documentários, como o premiado curta francês La mecánica de fluidos (2022), e em séries como Adolescência na Netflix, que incorporam essa temática. Além disso, observa-se um crescimento na produção acadêmica sobre o assunto. O termo “incelosfera”, usado pelo autor Bale, designa o conjunto de blogs, fóruns, wikis e canais em plataformas como Discord e Telegram dedicados aos incels.

Desde de 2022, o conteúdo relacionado a incels também tem se espalhado por redes sociais como TikTok, ampliando seu alcance. Embora nem todos sejam incels, a cultura que eles representam tem grande influência sobre as subculturas masculinas digitais. Um ponto central para os incels é a virgindade, vista como um estigma e um peso que marca sua identidade, frustrando-os e levando a sentimentos de tristeza e ressentimento por se sentirem rejeitados numa sociedade que consideram injusta. Um meme emblemático dessa cultura contrapõe os incels, retratados como homens tristes, solitários e sem apelo, aos “chads”, homens bem-sucedidos, atraentes e desejados pelas mulheres.

Outro conceito importante para os incels é a “hipergamia feminina”: a crença de que as mulheres são sexualmente mais seletivas que os homens, devido a um menor desejo sexual, o que justificaria sua exigência na escolha dos parceiros.

Reprodução do slide apresentado durante a conferência de Elisa no IHU.

 

Reprodução do slide apresentado durante a conferência de Elisa no IHU.

IHU – Segundo a cultura incel, por que as mulheres preferem se relacionar apenas com homens que ocupam posições de destaque na sociedade e como essa visão impacta a percepção sobre a autoexclusão social?

Elisa García Mingo – O que eles dizem é que, antigamente, todo homem podia ter relações sexuais ou afetivas com uma mulher, porque todas as mulheres tinham que se casar, mas atualmente as mulheres só querem ter relações sexuais com poucos homens, aqueles que estão no topo da pirâmide, que eles chamam de hierarquia social, ou seja, homens bonitos, interessantes, ricos.

Eles afirmam que, nesse novo regime, alguns homens, no caso eles mesmos, estão excluídos dessa possibilidade de ter relações sexuais e afetivas. Falam das necessidades das mulheres, ilustradas em memes como o “Roasty Hierarchy of Needs” (hierarquia de necessidades das “roasties”), termo pejorativo para mulheres que têm muitas relações sexuais. Segundo eles, essas mulheres sempre vão precisar de um homem muito rico, famoso, dominante, neurotípico, alto e bonito. Defendem que esse tipo de homem concentra todo o sucesso, dividindo o mundo entre ganhadores e perdedores, sendo eles prejudicados por esse sistema.

Reprodução do slide apresentado durante a conferência de Elisa no IHU.

Esses memes são todos da própria incelosfera, o espaço virtual. As mulheres, para eles, são classificadas como stacies, ou seja, mulheres muito desejadas, com muito capital erótico, ou ainda beckies, que têm menos capital erótico, geralmente feministas, estudiosas, mas com algum sucesso sexual.

Algo muito característico dessa subcultura é a forma pejorativa como chamam as mulheres, como “roasty”, referindo-se à “vagina gasta” depois de muitas relações sexuais, ou “foid” e “femoid”, abreviações de “female humanoid”, negando-lhes o reconhecimento como pessoas.

No mundo incel, os homens do topo da pirâmide são os “alfa”, confiantes, carismáticos e líderes. Abaixo deles estão os beta, delta, gama e ômega, estes últimos na base. Também circula a ideia dos “machos sigma”, um tipo particular de alfa que segue seu próprio caminho, um “lobo solitário”.

No topo estão os alfas, no meio os betas e acima até dos alfas, os “chads”, homens musculosos, esportistas e bem-sucedidos, típicos dos Estados Unidos, onde a subcultura surgiu. As mulheres alfa são chamadas de “Stacy”. Depois, na hierarquia, vêm os betas, que são piores que os chads e as stacies e entre as mulheres, as beckies, e entre os homens, os “normies”, homens comuns. Os ômegas, que estão fora da sociedade, são os incels, grupo excluído.

Um arquétipo típico do mundo incel é o “GigaChad”, representando os poucos homens, 0,1% da população masculina, que são os mais fortes e atraentes. Esse meme é recorrente na cultura incel.

Eles também acreditam que há diferentes tipos de chad, dependendo da raça e etnia, com nomes diferentes para cada grupo. Por exemplo, além do chad branco, “Tyrone” é usado para os chads negros nos Estados Unidos, e “Chadríguez” é um termo para os latinos, combinando chad com o sobrenome comum Rodríguez.

Reprodução do slide apresentado durante a conferência de Elisa no IHU.

IHU – Como a ideia de “loteria genética” influencia a forma como os incels veem o sucesso com as mulheres e eles acreditam que é possível melhorar a aparência para mudar essa situação?

Elisa García Mingo – Dentro do mundo incel, onde eles hierarquizam os homens segundo o aspecto físico, é importante considerar que acreditam na chamada loteria genética, que ao nascer a pessoa tem a sorte ou a desgraça de possuir determinados traços físicos que influenciam sua posição nessa hierarquia. Eles veem que vivemos em um regime de discriminação chamada aspectismo (tradução do termo “lucism”), que é a discriminação contra homens considerados feios, enquanto as mulheres preferem os geneticamente superiores.

Um meme típico diz: “Na vida, você tem que jogar com as cartas que recebeu”, referindo-se às características físicas, por exemplo, os “chads” teriam ombros fortes, musculatura, cabelo abundante e boa mandíbula. Grande parte da cultura incel está ligada ao lookmaxing, que é a ideia de que, mesmo perdendo na loteria genética, é possível melhorar seu aspecto físico.

Lookmaxing é tirar o máximo proveito dos atributos que você tem. Eles têm teorias sobre sobrancelhas, maçãs do rosto, mandíbula, crânio, ombros. Há uma subcultura chamada Gymsel, focada em musculação e culto ao corpo. Também há conteúdos sobre mewing, que são exercícios para fortalecer a mandíbula e o bone smashing, que envolve martelar os ossos do rosto para modificar a face.

Dentro do lookmaxing, o soft maxing consiste em modificações corporais sem cirurgia. Já o harding inclui uso de testosterona e cirurgias estéticas para mudar o corpo ou rosto. Essas ideias, mewing, bone smashing, lookmaxing, estão viralizando, especialmente no TikTok, entre jovens que não necessariamente são incels, mas acham atraentes essas teorias sobre beleza e modificação corporal.

Outro conceito central na manosfera é o das pílulas, que representam eventos que despertam para a realidade. A pílula vermelha (red pill), originária do filme Matrix, simboliza o despertar para ideias da manosfera, como a crença de que o feminismo radical transformou o mundo, dando mais direitos às mulheres e criando leis discriminatórias contra os homens.

Tomar a red pill é adquirir essas ideias e entender como o mundo realmente é. Porém, os incels vão além e falam da pílula negra (black pill), que representa um nível mais profundo de pessimismo e fatalismo. Eles acreditam que a red pill não é suficiente e que eventos pessoais negativos como término, perda de amigos, divórcio dos pais, desemprego, revelam a impossibilidade de mudança no sistema.

Reprodução do slide apresentado durante a conferência de Elisa no IHU.

Após tomar a black pill, eles veem que só existem três opções: render-se (to lay down and rot), suicídio (há muitas reflexões e fantasias sobre isso) ou violência extrema, que seria uma última alternativa.

IHU – Por que essa linguagem das pílulas e esses códigos usados na internet atraem tantos jovens e acabam levando alguns deles para ideias tão radicais?

Elisa García Mingo – É importante neste ponto fazer essa conexão entre a política das pílulas, como funcionam na manosfera e como estão vinculadas à extrema-direita. De fato, há muita conexão entre a manosfera e a extrema-direita. Por exemplo, nos Estados Unidos, há vasta literatura sobre a relação entre o supremacismo masculino e o branco.

Houve atentados terroristas cometidos por homens que se declararam incel e membros de redes supremacistas brancas. Na Espanha, que é o caso que conheço melhor, também há vínculo entre a manosfera e o partido de ultradireita Vox.

Existe essa ideia do Red Pill Politics, que é bastante interessante. A ideia das pílulas nas culturas digitais da extrema-direita é relevante porque os usuários que adotam essa linguagem começam a indicar à comunidade que estão aderindo a uma ideologia.

Reprodução do slide apresentado durante a conferência de Elisa no IHU.

O treinamento físico é fundamental, por exemplo. Estar acordado, preparado, fisicamente vigoroso para a guerra futura. Há ainda outras duas pílulas, a bread pill, que representa a adesão a valores extremistas cristãos ligados à família tradicional. Na Espanha, não é comum, mas nos Estados Unidos há mais comunidades assim, incluindo minorias religiosas. E há a green pill, a pílula verde, que se refere ao ecofascismo, uma visão ecológica que defende o extermínio de parte da população para “salvar” o planeta, justificando ideias eugênicas.

Esses são códigos linguísticos muito desconcertantes. Muitas palavras do mundo incel, como stacy, chad, gigachad, mewing, bonus smashing, lookxing, foid, fimoid, fazem parte de um vocabulário próprio. Alguns linguistas de língua inglesa apontam que está surgindo um criptoleto, um dialeto específico da comunidade incel usado para comunicação interna e para não ser entendido por quem está fora. É uma linguagem ofensiva. Por exemplo, chamam mulheres com sobrepeso de landwhale (“baleia terrestre”).

Há muitos termos depreciativos para mulheres e também para qualquer um que não se encaixe no grupo. Embora pareça sem sentido, essa linguagem fortalece o sentimento de pertencimento. São comunidades digitais sem presença física ou simbólica fora da internet, sem uniformes, marchas, cânticos ou músicas, como ocorre em outras subculturas. Por isso, o vocabulário é tão essencial, porque estabelece e solidifica o pertencimento.

Essa linguagem própria é um registro simbólico poderoso. Uma leitura sobre o tema, que considero importante é a Os homens que odeiam as mulheres, de Laura Bates.

Reprodução do slide apresentado durante a conferência de Elisa no IHU.

Algumas conclusões após cinco anos estudando a manosfera, é que se trata de um espaço digital que cumpre uma função, ou seja, cobre um vazio emocional entre homens jovens e atende a suas necessidades socioafetivas. Também é um espaço onde criadores e participantes sentem sua masculinidade restaurada, onde recuperam uma “honra perdida”.

É fundamental estudá-la porque contribui para a polarização do debate público, especialmente sobre políticas de igualdade de gênero. Em qualquer país, a manosfera tensiona o diálogo social e político, colocando em xeque os acordos públicos voltados ao combate da violência contra mulheres e meninas.

IHU – Os memes podem ser usados como armas em uma ‘guerra de ideias’. Como você vê o impacto disso na forma como jovens pensam sobre feminismo e masculinidade hoje?

Elisa García Mingo – É muito importante entender que a manosfera é parte fundamental desse movimento antifeminista, desse recuo patriarcal. Alguns conceitos foram cruciais para compreendê-lo. Um deles é a guerra memética. Estudamos ideias da manosfera e dos incels, analisando como criam e usam memes numa verdadeira guerra de ideias.

Eu chamo isso de arqueologia de memes, uma tentativa de reconstruir como os memes circulam ideias complexas e sofisticadas. Outro conceito interessante é o de câmaras de eco afetivas ou emocionais, proposto por várias autoras, especialmente Jaida Esencilla. Elas não existem só nas redes sociais, são espaços onde, além de ideias semelhantes, circulam afetos e emoções que fazem a pessoa se sentir bem.

Nessas câmaras, algoritmos criam ambientes onde não apenas se reforçam ideias parecidas, mas também sentimentos de acolhimento e conforto. Isso aumenta a predisposição para aceitar ideias antifeministas, por exemplo, que questionam a igualdade de direitos, sob o ponto de vista feminista, trata-se da necessidade de os homens abrirem mão de certos privilégios para que a sociedade seja mais justa.

IHU – Como as instituições educacionais devem agir? As famílias estão preparadas?

Elisa García Mingo – Na universidade, estamos começando a ver comportamentos que antes pareciam mais próprios do ensino médio. Aqui na Espanha, esse fenômeno começou a ser investigado de forma mais crítica, com entrevistas e pesquisas sobre o antifeminismo entre homens universitários.

A Universidade Rovira i Virgili, em Tarragona, fez um esforço nesse sentido. Eu mesma participo de formações com universitários para conscientização sobre essas questões. Acho esse um tema importante para pesquisas e para a formação transversal.

Temos de tudo. Fazemos muitas formações para professores do ensino médio e planejamos ações em escolas. As famílias ainda não estão preparadas e muitos professores também não, mas de forma otimista, acho que estão mais preparados do que antes.

IHU – Como podemos responsabilizar efetivamente as plataformas digitais pela promoção de uma cultura de ódio e sofrimento psicológico entre os jovens, sem cair em soluções simplistas como a proibição total da tecnologia e garantindo que os direitos à educação crítica, à expressão e ao desenvolvimento saudável sejam equilibradamente preservados?

Elisa García Mingo – A transformação precisa ocorrer não apenas nas famílias, governos ou instituições educativas, mas também nas empresas de tecnologia. Precisamos pressionar as plataformas e redes sociais que lucram com a cultura do ódio, da misoginia, da violência e da humilhação.

É fundamental incluir isso no debate. Não adianta focar somente em educação se, ao mesmo tempo, as redes sociais, grandes agentes socializadores, atuam no sentido contrário. Não podemos colocar toda a responsabilidade nas famílias e escolas, embora sejam pilares fundamentais. É preciso pensar também em como regular as plataformas que lucram com o sofrimento e os danos causados aos nossos filhos.

IHU – No Brasil foi recentemente aprovada a lei que proíbe o uso de celular nas escolas. Qual sua opinião?

Elisa García Mingo – Acredito que educação digital não é uma quimera. Precisamos continuar investindo nisso, com alfabetização digital crítica, com perspectiva de gênero, interseccionalidade e sustentabilidade. As novas gerações têm direito a esse tipo de formação, porque é o mundo delas. Sem isso, não damos as ferramentas necessárias para que habitem esse mundo de forma segura.

Quando os diretores ou professores dizem que não se interessam porque não usam redes sociais, eu respondo: “Ok, mas não estamos falando da sua geração, e sim da geração Z e da geração alfa”. Precisamos acompanhar os jovens de forma responsável e a educação digital é parte disso.

Sobre a proibição de celulares, não quero alimentar o tecnopânico, apesar de trabalhar com temas como misoginia e violência online. Gosto da internet. O problema não é a internet em si, mas o modelo atual, baseado na economia da atenção e no design viciante. Por isso, todo tempo longe do celular, sem exposição a essa internet tóxica, é benéfico para os jovens.

A internet que conheci em 1998 era outra; havia fóruns, blogs, buscadores. Hoje, temos redes sociais feitas para manipular. A exposição excessiva de 5 a 8 horas por dia afeta a atenção, as relações, o sono e as funções cognitivas. Cada momento de interação no mundo real é um presente para essa geração que já nasceu conectada.

IHU – Como a religião é mobilizada por essas subculturas?

Elisa García Mingo – Não vejo muita presença religiosa, exceto entre os MRAs (ativistas dos direitos dos homens), que às vezes se alinham com grupos católicos extremistas, especialmente na Espanha. Esses grupos ajudaram a popularizar termos como “ideologia de gênero”. Alguns ativistas ainda se apresentam como bons pais, católicos, tradicionais, mas isso é minoria. O que predomina na manosfera são ideias ligadas ao individualismo, culto ao corpo, empreendedorismo e meritocracia, valores do capitalismo digital selvagem.

IHU – O uso excessivo da tela prejudica as habilidades sociais e reforça padrões estéticos que aumentam a insegurança dos jovens. Como lidar com isso?

Elisa García Mingo – Sim. Essa é outra dimensão que estudamos e documentamos. Há evidências de que o uso precoce e excessivo de redes como TikTok ou Instagram está relacionado à baixa autoestima e a transtornos alimentares. Os algoritmos criam bolhas que promovem subculturas da anorexia e da bulimia. Há também muitos casos de incentivo à automutilação.

Na Espanha, os dados da psiquiatria pediátrica mostram que entre 20% e 25% dos adolescentes estão se automutilando. Isso tem relação direta com conteúdos não moderados nas plataformas. Sabemos que certos grupos na Europa usam hashtags, WhatsApp, canais de Telegram. O mesmo ocorre com temas como suicídio e tentativas autolíticas.

IHU – Como o Brasil pode se inspirar na Lei de Serviços Digitais da União Europeia para desenvolver uma regulação eficaz que proteja jovens e grupos vulneráveis dos riscos presentes em plataformas digitais?

Elisa García Mingo – Na Europa, temos a Lei dos Serviços Digitais, em vigor plena desde 2024. O Parlamento Europeu está desenvolvendo uma nova legislação, o Digital Fairness Act, voltada também para microinfluenciadores e designs viciantes, não tanto em videogames, mas em microvídeos para celular.

Essa Lei dos Serviços Digitais, coordenada pela Comissão Europeia, obriga grandes empresas de tecnologia com mais de 45 milhões de usuários a realizarem avaliações de risco para menores e grupos vulneráveis, como mulheres e a adotarem medidas de mitigação.

Não sei se há algo semelhante no Brasil, mas essa é a direção a seguir. A Comissão Europeia realiza investigações sobre moderação de conteúdo e impõe multas altíssimas às plataformas que não cooperam, as maiores da história da União Europeia nesse campo. É algo muito interessante e recente, em vigor há apenas um ano. Veremos como impactará o cenário.

IHU – Comunidades digitais, jogos, Discord, todos são grandes captadores de jovens pela extrema-direita e pelo inicielismo. O que fazer para evitar esses abismos?

Elisa García Mingo – A regulação da internet pode ser uma solução. Muitos jovens não chegam sozinhos a conteúdos violentos. Entram aos poucos. Muitas vezes, videogames e fóruns online funcionam como portais para conteúdos antissemitas, islamofóbicos, racistas e transfóbicos. A regulação é necessária, pois sem ela as plataformas não colaboram. Seria ideal que as empresas respeitassem os direitos humanos desde o design das tecnologias, mas isso não ocorre.

A União Europeia, que mais regulou, enfrenta o desafio de se contrapor à indústria tecnológica, majoritariamente concentrada no Vale do Silício, mas há outros polos, o TikTok é chinês, o Telegram é russo, há uma geoestratégia nas plataformas. Por isso, quando Mark Zuckerberg afirmou que a IA da Meta não será disponibilizada na Europa devido ao ambiente regulatório instável, ele quis dizer: “Vocês regulam demais aqui”. Estamos em um momento fascinante e de mudança. O nome deste ciclo é muito apropriado, pois expressa a juventude em tempos difíceis, com gerações adultas como a nossa que ainda têm poucas respostas.

IHU – Como lidar, em sala de aula, com manifestações do chamado “vitimismo masculino” sem invalidar sentimentos, mas reafirmando os princípios do feminismo como projeto de igualdade?

Elisa García Mingo – Compartilho uma experiência que alguém me contou. Uma amiga tentou adotar uma nova postura em sala de aula. Em uma apresentação, ela foi criticada por se declarar feminista ao elogiar a presença feminina em uma turma de engenharia. Um aluno reclamou que os homens eram minoria e também mereciam destaque.

Situações assim se tornaram frequentes. Concordo com a Darl, o discurso do vitimismo masculino se expandiu. Em nossas pesquisas, analisamos o sentimento masculino de desvalorização, de não ter direitos ou espaços. Proponho sempre escuta e empatia, mas também firmeza, afinal o feminismo é um projeto político e filosófico pela igualdade, não uma caça às bruxas. É um esforço coletivo contra a violência às mulheres e meninas.

Sempre uso a pedagogia para lidar com essas questões. Tenho colegas na sociologia que adotaram o uso do plural feminino ou masculino conforme a maioria da turma. Alguns estudantes homens reagiram com acusações de “feminazismo” ou militância.

IHU – Qual o papel de espaços físicos fora da internet para acolher jovens imersos no digital? E qual a importância da formação de educadores sobre masculinidades?

Elisa García Mingo – Discursos de ódio e vitimismo são individualistas. As soluções precisam vir do coletivo. Espaços fora da internet devem ser também coletivos.

Falo de vida de bairro, escotismo, igrejas, associações, partidos, esportes, tudo que recupere o tecido comunitário. Reencontrar pessoas diversas na rua, pois os jovens pós-pandemia ficaram reclusos, jogando videogame, com a síndrome da cabana. Estão em câmaras de eco, sem convívio com o contraditório e sem treino para o diálogo.

E os educadores? Precisam entender as lógicas digitais. Por exemplo, eu disse ao diretor da escola da minha filha: “a escola não termina às 17h”. Os conflitos continuam em plataformas digitais e devem ser tratados pelos protocolos de assédio escolar. Esses conflitos entre colegas em chats escolares também devem ser abordados conforme o protocolo. Professores e professoras precisam estar preparados para detectar os problemas trazidos por essas interações digitais.

Imaginem jovens sendo captados para redes extremistas ou para serem sugar babies. O enfoque de masculinidades é essencial, é preciso homens referências nas escolas, bem-preparados para lidar com violência digital e apoiar outros homens.

Que a referência de igualdade não seja sempre uma mulher. Que um aluno possa procurar um professor homem e dizer: “Compartilhei uma foto da minha namorada. O que faço agora?” Trabalhar com enfoque nas masculinidades e formar professores homens bem-preparados é essencial para mudar a realidade nas escolas e universidades.

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