06 Junho 2023
"Uma crônica sobre os (pós)adolescentes liberais, ancaps, incels e redpills. O que os move é a visão infantil de liberdade. Violentos e misóginos, creem-se oprimidos. Mas, pobrezinhos, só desejam que a roda do mundo gire a seu favor, sem contrapartidas", escreve Henrique N. Sá Earp, professor no Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica da Unicamp, em artigo publicado por Outras Palavras, 02-06-2023.
A liberdade está em alta no debate público trivial, valendo-se do maravilhamento com que prestigiamos certas noções mal definidas. Assistimos perplexos a manifestações de ideias repugnantes, opressões laborais e afetivas, destruições de imagem e reputação, entre outros abusos flagrantes, receosos de que a única resposta possível seja a ladeira escorregadia da censura e do autoritarismo. Para além do moralismo raso, uma chave para entender este mal-estar reside no conceito fundamentalmente contraditório de indivíduo livre e, por extensão, no sistema de crenças que profetiza a harmonia social a partir de mediações contratuais de mútuo acordo, a que se chama vulgarmente liberalismo. Levada aos seus extremos de dedução causal e aplicação prática, esta ideologia organiza certas manifestações antissociais e de toxicidade interpessoal aparentemente desconectadas, que pretendo aqui correlacionar.
Comecemos por desmistificar a noção de indivíduo, segundo a qual cada pessoa é essencialmente definida por seus atributos singulares, como arranjo constitutivo logicamente anterior às suas interrelações com o mundo e demais pessoas nele. Embora esteja profundamente naturalizado em nosso cotidiano, o entendimento do indivíduo como átomo isolado de interações é uma ficção abstrata e frágil, tanto em sua coerência interna quanto em seu poder de descrever nossa experiência real.
Afinal, mesmo os átomos que compõem o Universo tanto possuem estrutura relacional interna entre suas partículas constituintes quanto só se manifestam como matéria sob a mediação de campos de forças, em interação com todas as demais partículas no espaço. De modo análogo, o indivíduo só é definido por suas características singulares, como sua fisiologia e sua história, na medida em que estas são contrapostas às dos demais indivíduos, e, portanto, posteriormente às suas relações sociais. O meu corpo se delimita quando toca o seu; meu nome me distingue porque é diferente do seu; minhas ideias me identificam porque se comparam às suas, mediadas pela relação de linguagem.
Não existe, nem na abstração matemática, elemento antes de conjunto, pois qualquer propriedade atribuída a um elemento define ao mesmo tempo seu próprio conjunto-verdade: sou brasileiro porque participo do Brasil, e o Brasil é o conjunto dos brasileiros, não cabendo falar daquele anteriormente a este. Assim é a nossa experiência do mundo: somos concebidos por uma relação interpessoal anterior a nós mesmos, em seguida gestados em vínculo orgânico com outro corpo, e por muito tempo ainda completamente dependentes de uma rede de relações, que se diversifica e se estende por toda nossa vida e mesmo além dela como luto e legado. Exceto talvez por Adão e Eva, criados por ato de ofício, o momento atômico do indivíduo anterior aos vínculos nunca existiu. Embora tal noção seja por vezes útil como recurso analítico, a exemplo de seus usos na Física, está longe de ser o núcleo definidor da condição humana: nós nascemos, vivemos e morremos em relação, e portanto sou relação muito antes de ser indivíduo.
Chama-se “liberal” àquele que, ao entender-se como indivíduo abstrato, imagina possuir o atributo primordial da liberdade. Ele a define como uma condição natural de autonomia desvinculada, a partir da qual todas as suas potências de pensamento e ação estão ao mesmo tempo autorizadas e reguladas por algum arremedo metafísico de Direito universal pautado em princípios de fácil entendimento, como a não-intervenção coercitiva na liberdade dos outros. Reciprocamente, quaisquer amarras impostas por outrem à sua livre ação são entendidas como violações de sua própria essência. O liberal então crê que as relações entre indivíduos se estabelecem a posteriori, de forma voluntária e contratual consoante suas vontades e desejos, como expressões ulteriores de sua liberdade original.
Para ilustrar este equívoco, imaginemos o experimento em que um liberal é abandonado na Floresta Amazônica ou no Deserto do Atacama, digamos um reality show hipotético. Inicialmente, o liberal vê-se em estado de máxima liberdade, eis que não há ao redor ninguém a lhe cercear qualquer ação. No entanto, pressionado por sua condição corpórea, ele rapidamente dá-se conta de que precisa garantir a própria sobrevivência, e a busca emergencial por víveres e proteção em um ambiente hostil na prática esgota a totalidade de sua potência de ação no mundo.
Nosso empreendedor passa logicamente a conceber formas de sinalizar sua posição com vistas a um resgate, ou então parte em busca de alguma povoação. Afinal, suas únicas possibilidades para além da mera – e mesmo assim incerta – subsistência estão no restabelecimento de relações com uma coletividade. Ele poderá assim, novamente, realizar trabalho especializado e trocas, receber afeto e generosidade, descansar e divertir-se. Ele perceberá então que recuperou em certa medida sua potência de ação no mundo, eis que toda ação necessariamente se dá no tempo de que ele voltou a dispor, por isso mesmo chamado livre.
O liberal aprenderá que a gênese social do tempo livre é o efeito superaditivo da cooperação humana, e está, portanto, alicerçada em uma teia de relações que exige de cada um a obediência a regras sociais de que não gosta, ou seja, em limites à liberdade individual. Como se vê, em circunstâncias extremas até mesmo um liberal é capaz de concluir que a liberdade para agir deriva de sua própria restrição no marco de relações sociais que lhe são, necessariamente, anteriores. O estado de espírito capaz de acomodar este aparente paradoxo – uma liberdade que só existe de fato como estreita margem de manobra, na medida em que é constrangida de origem por relações sociais – é o que costumamos chamar de adulto.
Os tempos atuais nos brindam com a trágica emenda ao soneto liberal dada pela perspectiva anarco-capitalista – ou ancap, por preguiça. Enquanto um liberal pragmático admite submeter-se a um Estado garantidor da paz social minimamente necessária à livre celebração de contratos, esta estirpe é caracterizada por sua oposição radical a qualquer superestrutura de controle. A utopia ancap é um mundo composto por indivíduos, ou estreitos núcleos familiares, totalmente responsáveis pelo atendimento das próprias necessidades e interesses, cuja preservação depende consequentemente tanto de sua vocação para o trabalho quanto de sua capacidade de associação comercial e paramilitar com os vizinhos imediatos, em escala suficiente ao equilíbrio de forças contra outros grupos. O ancap acredita que tal arranjo maximizaria sua liberdade individual, defendendo-se de qualquer poder coercitivo e, portanto, exercendo a plenitude de seu direito universal.
Quanto às consequências práticas de tal ideário, consideremos o experimento edificante do cruzeiro Satoshi, adquirido em 2020 pelos intrépidos Grant Romundt, Rüdiger Koch e Chad Elwartowski. Sob a promessa de criar uma legítima comunidade ancap em águas internacionais – livres de impostos e leis de qualquer país – e sustentada pela infalível mineração de criptomoedas em computadores a bordo, os jovens atraíram algumas dúzias de entusiastas.
A empreitada logo revelou-se, internamente, um perpétuo desacordo em reuniões de condomínio e, externamente, refém de minúcias como a recorrente atracação em portos e estaleiros (de países com impostos e leis) para atendimento médico aos residentes ou abastecimento e manutenção da nave, ficando assim com o pior dos dois mundos. Após falência contábil e um motim da tripulação profissional contratada, nossos pioneiros foram finalmente obrigados a abandonar o projeto – o barco mesmo eles venderam –, aprendendo a já debatida lição de que não há liberdade efetiva senão em uma rede social de interdependências.
Enquanto o sonho de um mundo empreendedor livre do Estado não chega, a intervenção política dos ancaps dá-se a partir de think tanks ditos liberais, financiados por bilionários e governos estrangeiros, promovendo agitação e propaganda ideológica na esfera partidária, na academia, na imprensa formal e nas redes sociais. Sua atuação é pautada pelo combate a toda forma de solidariedade social mediada por mecanismos compulsórios, como tributos, leis ambientais e trabalhistas, políticas distributivas ou de ação afirmativa e restrições à expressão de opiniões.
A pretexto de zelar pelo equilíbrio contratual natural entre indivíduos livres abstratos, sua agenda efetiva é perpetuar condições de barganha assimétricas entre grupos de indivíduos formados em redes de relações sociais com posições de poder distintas, ou seja, privilégios. O que se revela na prática é que o militante ancap típico não reivindica a liberdade como exercício genuíno de autonomia – honrosa exceção feita aos tripulantes do Satoshi –, nem muito menos busca atingi-la pelo rompimento de eventuais vínculos limitantes impostos por outros indivíduos; inclusive, se um vínculo é rompido pela outra parte, ele o denuncia como cancelamento. Por exemplo, quando algum agitador ancap verbaliza uma consequência abjeta de sua noção fundamentalista da liberdade – p.ex., a legalização da venda de órgãos ou a normalização do nazismo – ele ressente-se da perda de seguidores e do cerceamento de sua plataforma, pois sua liberdade de expressão exige que os demais permaneçam vinculados a seu canal em respeito à sua opinião repugnante.
A reivindicação ancap, em seu subtexto, é a manutenção abusiva de relações assimétricas a seu favor, sem responsabilidade recíproca. Como esforço de empatia, recordemos um exemplo profundo de tais relações assimétricas favoráveis, na figura do incondicional amor parental, que pouco ou nada nos exigiu em troca dos recursos e cuidados que nos pôde oferecer. A partir desta chave é possível entender muito do espectro de comportamento ancap, porquanto a liberdade que exigem é um desejo infantil.
Incel e redpill
A transposição ao campo afetivo masculino desta perspectiva imatura sobre a visão de mundo liberal, que entende a própria liberdade como outorga de assimetria favorável em suas relações sociais, tem produzido recentemente outros dois fenômenos identitários caricatos e preocupantes.
A assim chamada comunidade de celibatários involuntários – ou incels, por mais preguiça ainda – reúne homens a partir de um tipo específico de rancor misógino. O incel ressente-se de sua dificuldade em firmar relações íntimas com o sexo oposto, que ele atribui à sua posição inferior em uma hierarquia sociobiológica imposta aos homens pelas mulheres. Ele interpreta a rejeição feminina como violação de um direito metafísico que julga possuir – da qual aliás os homens no topo da hierarquia são cúmplices – e exige, portanto, relações em que o seu desejo tenha centralidade absoluta, não cabendo à parte desejada nem sequer configurar-se como sujeito apto à recusa. Os noticiários estão tristemente repletos de desdobramentos trágicos da frustração incel, como condutas autodestrutivas, ataques misóginos em redes sociais e mesmo violência armada em escolas e locais de trabalho.
Por outra via, encontramos uma resposta alternativa e igualmente errada à mesma angústia na identidade redpill – alusão à cena do filme Matrix em que a pílula vermelha simboliza enxergar a verdade por trás da máscara narrativa do status quo. O homem redpill reconhece a mesma hierarquia biológica nas preferências das mulheres, porém busca hackear este sistema com uma estratégia em duas frentes: a emulação superficial de símbolos e atitudes que ele associa à atração feminina (ostentação financeira, musculação, arrogância etc.) e ao mesmo tempo a renúncia radical em estabelecer relações afetivas genuínas com as mulheres que atrair.
A subcultura redpill de toxicidade masculina prolifera em um ecossistema comunicacional de influenciadores digitais, cursos de sedução e mentorias de relacionamento no estilo coach. Em sua maioria, arregimenta (pós-)adolescentes inseguros, vedando-lhes a descoberta de relacionamentos recompensadores e ao mesmo tempo vitimando as mulheres que tenham o azar de cruzar-lhes o caminho.
Por fim, cabe explicitar a regularidade de fundo entre as perspectivas incel e redpill: ambos têm o mesmo entendimento emocional infantil da liberdade, segundo o qual as relações afetivas devem ser, por direito universal, assimétricas a seu favor. A diferença está em que aqueles desejam avidamente tais relações até o limite da frustração ressentida, enquanto estes abdicam categoricamente de construí-las, em prol de uma disciplina psíquica de dessensitização e artificialidade. Não por acaso, ambos os perfis frequentemente identificam-se no plano político com o ideário ancap, e quase na totalidade com o rótulo de liberal, do qual são todos bastardos.
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Breve radiografia da juventude ultradireitista. Artigo de Henrique N. Sá Earp - Instituto Humanitas Unisinos - IHU