23 Setembro 2011
É preciso estabelecer limites diferentes dos do corpo inviolável e da normalidade natural. Está se delineando uma ordem social da técnica que reivindica uma autonomia própria. Em um mundo em que as máquinas influenciam a nossa vida, é preciso repensar a antropologia e os limites da ética.
A análise é de Stefano Rodotà, professor emérito de direito civil da Universidade La Sapienza, de Roma, e ex-deputado do Parlamento italiano. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 21-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O que é hoje a desumanização, aquele adeus ao humano cujo temor recorre os milhares de títulos de uma literatura que analisa os desvios para esse resultado fatal? O futuro assume as formas de um corpo inervado e transformado pelas tecnologias, anuncia a ciborgue, deixa entrever uma inquietante "natureza" robótica. A razão tecnológica ganha força, o homem torna-se "antiquado", o direito é expropriado da sua "causa final", a proteção da pessoa. E justamente o conflito entre a imagem do homem expressada pelas constituições e pelo saber técnico-científico é precocemente assinalado não por um jurista, mas por Paul Valéry.
Muitas vozes se entrelaçam. Ouvimos a de Kazuo Ishiguro, em Non lasciarmi. "Enquanto eu te observava dançando naquele dia, eu vi alguma outra coisa. Eu vi um mundo novo que se aproximava a grandes passos. Mais científico, mais eficiente, certamente. Mais tratamentos para as velhas doenças. Esplêndido. E, no entanto, um mundo duro, cruel. Vi uma menininha, com os olhos fechados, apertando ao peito o velho mundo gentio, o que em seu coração ela sabia que não duraria para sempre, e ela o segurava entre os braços e implorava que não a abandonasse".
Retorna o conflito entre velho e novo mundo, um que brilha com as cores da nostalgia; o outro, portador de um progresso que parece querer se despedir definitivamente do humano.
Como medir, então, o eventual afastamento do humano? E isso só ocorre por efeito da tecnologia ou também existem outras técnicas que podem determiná-lo? Se recorremos ao critério de um homem que se torna "antiquado", não devemos olhar apenas para o futuro e para a inovação científica e tecnológica. Devemos, com a mesma intensidade, considerar uma desumanização determinada pela qualidade das relações sociais.
E aqui nos deparamos com um aparente paradoxo: o homem antiquado não pela sua projeção no futuro, mas sim pelo retorno de um passado que a modernidade havia anulado. Quase parece que a fita do tempo novamente se enrola vertiginosamente para trás, reportando-nos para a era anterior à que John Locke afirmava a propriedade do homem sobre o seu próprio trabalho, retalho de uma liberdade sua, embora problemática, no mundo das relações sociais.
Hoje, as técnicas relacionadas apenas com a lógica econômica impõem uma consideração do trabalho sem mais relação com a liberdade, pura mercadoria que arrasta toda a pessoa do trabalhador para uma dimensão em que a sua humanidade é posta em discussão, fazendo desaparecer não um sujeito na plenitude dos seus direitos, mas sim o objeto do poder impessoal do mercado.
Eis as vidas precárias, as vidas "de descarte". A retribuição não deve mais garantir "uma existência livre e digna", como quer o artigo 36 da nossa Constituição [italiana], mas se inclina perigosamente para uma atenção pela pura sobrevivência biológica. A redução da pessoa à sua biológica a entrega nua ao poder, a qualquer poder, negando a sua biografia, verdadeira conotação do humano. A pessoa "constitucionalizada" desaparece, torna-se antiquada.
Existe aí uma relação com a "máquina" que torna imediatamente evidentes esses sinais dos tempos. A máquina a qual a pessoa é conectada para prolongar a sua sobrevivência; a máquina, um computador que o trabalhador deve carregar, que permite que o empresário o dirija e o controle à distância. Aqui, a liberdade, e com ela a humanidade, pode desaparecer, superada pela técnica. Ao moribundo, pode ser rejeitado o direito de "esticar as costas". O trabalhador é degradado a objeto.
Despertados da hipnose tecnológica, podemos avistar um mundo em que são diversas as modalidades da desumanização. Mas é justo continuar empregando essa palavra com a sua evidente carga negativa? Ou não seria mais correto, e consistente com a realidade, falar de um além do humano, de um pós-humano? Uma questão de fronteiras, portanto, de um limiar que, ao ultrapassá-la, se entra em uma dimensão diferente. E então o problema torna-se o de estabelecer o critério com o qual se marca a fronteira, que não pode ser o de uma normalidade "natural", de um corpo inviolável.
Justamente porque o corpo ocupa a cena do mundo, pela conjugação de fatores culturais, tecnológicos e científicos, captamos nele a tensão que Günther Anders descreveu ao falar de um homem que "se afasta cada vez mais de si mesmo, se "transcende" sempre mais". Mas esse "transcender-se" não leva necessariamente à perda da humanidade. Indica novos horizontes, onde, juntamente com uma maior liberdade de escolha, pode-se alcançar uma plenitude do humano que liberta até dos vínculos impostos pela materialidade do corpo. Não por acaso, o protagonista de Neuromancer, de William Gibson, teme a recaída na "prisão de carne". A humanidade verdadeira vai se deslocando do real para o virtual?
Não estamos diante de trajetos lineares, de separações e rupturas radicais. Se olharmos para alguns documentos jurídicos, como a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, compreende-se a tentativa de recompor uma unidade não pós-humana, mas sim "pós-tecnológica", da pessoa. Essa reconstrução exige uma integridade do corpo, que reconcilie soma e psique, e uma unidade entre pessoa real e virtual, realizada através de um acomunamento de instrumentos, do consentimento informado e do direito à autodeterminação, em primeiro lugar. Mas também requer uma análise de problemas novos, começando pela legitimidade do recurso a qualquer oportunidade tornada disponível pela inovação científica e tecnológica.
Embora se possa dizer que o corpo começa a ser uma máquina "nano-bio-info-neuro", por causa da concentração sobre ele de instrumentos oferecidos por essas diversas tecnologias, é preciso distinguir entre o que pode contribuir para uma potencialização sua e o que torna possíveis controles cada vez mais intensos; entre as decisões que se esgotam na esfera do interessado e aquelas que incidem sobre a vida dos outros; entre as ofertas que ampliam o poder de fazer escolhas livres e informadas e aquelas que incidem sobre a pessoa, transformando-a em um gadget.
E assim, enquanto se continua a insistir justamente na centralidade adquirida pelo corpo nas nossas organizações sociais e no discurso público, também se deve refletir seriamente sobre o fato de que a construção da identidade das pessoas sempre é mais intensamente confiada a algoritmos que definem as suas características e identificam as suas dinâmicas futuras.
A pessoa novamente entregue à abstração, desencarnada, reduzida a fantasma tecnológico? Está se delineando uma ordem social e jurídica das máquinas que reivindica uma autonomia própria sua e que não só pode determinar conflitos com a tradicional autonomia das pessoas, mas também produz uma nova antropologia?
Se os problemas são novos, e perturbadores, as soluções devem ser buscadas a partir de palavras conhecidas e irrenunciáveis. A liberdade das escolhas, a igualdade entre as pessoas, o respeito pela dignidade de cada um. São essas as garantias para que o ser humano possa sobreviver, quaisquer que sejam as técnicas que invistam sobre ele.
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Liberdade e direitos: breves instruções para o ser humano do futuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU