"A liberdade efetiva, plena, não será possível na sociabilidade capitalista, só se realizará, concretamente, quando esta for superada e transcendida. Destarte, é preciso esperança, como defende Ernest Bloch; não enquanto espera, passiva, mas como esperançar, traduzido na organização e ações político-sociais de resistência e contra-hegemonia das massas, da classe trabalhadora e das camadas populares a todas as formas de explorações, dominações e opressões. A esperança – e o esperançar – é o horizonte que nos ajuda e anima a caminhar e na caminhada, é uma necessidade ontológica rumo à liberdade. É necessário mantê-la, ainda que não seja suficiente, embora sem ela a luta não tenha forças e nem se torne possível", escreve Iael de Souza, professora adjunta da Universidade Federal do Piauí (UFPI), mestre em Ciências Sociais (UNESP/Marília) e doutora em Educação (UNICAMP/SP).
Após o processo eleitoral de 2022, um dos exercícios do regime democrático burguês, com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, protestos são financiados e incitados por empresários e setores das forças armadas. Contraditoriamente, os manifestantes que deles participam dizem estar exercendo um direito democrático ao se colocar contra o exercício da própria democracia (ainda que burguesa), validando sua liberdade individual.
Acontece que a liberdade da ideologia liberal burguesa não guarda nenhuma relação com a liberdade em sua acepção ontológica. No atual cenário assistido e vivenciado, precisamos retomar o significado de liberdade desenvolvido por um dos maiores fenômenos pedagógicos da história do Ocidente, guia de todo o iluminismo e de toda filosofia moderna, Sócrates, através de Werner Jaeger (1994), estabelecendo as aproximações possíveis com outro grande educador, internacionalmente reconhecido, naturalmente brasileiro, Paulo Freire (1967), demonizado pelo (ainda) presidente Jair Messias Bolsonaro e seu séquito instável de ministros da educação.
É urgente e mais do que necessário repor a verdadeira essência da liberdade humana para denunciar e combater as distorções, as tergiversações, as idiossincrasias e as dissonâncias cognitivas que acabam por legitimar comportamentos, condutas, atitudes completamente estranhas, irascíveis e abomináveis à liberdade do indivíduo. O posicionamento ético, político aqui manifestado é a forma encontrada para contribuir na análise e reflexão da situação concreta que estamos passando e vivendo, fazendo jus ao que defendia Florestan Fernandes quando dizia que os intelectuais e educadores deveriam, como uma de suas tarefas, lançar a luz da ciência, da história e da razão razoável sob os problemas sociais do país, auxiliando as pessoas a compreender o que acontece, por que acontece, munindo-as com conhecimento para combater, enfrentar e persuadir os demais, questionando o sentido de suas ações, expondo a manipulação social, ideocultural da qual estão sendo vítimas, intervindo na realidade e nas situações de modo mais eficaz. Trata-se de não dar as costas à nossa responsabilidade social e política enquanto intelectuais e educadores diante da realidade. Este é o intento desta reflexão.
Segundo Jaeger (1994), para Sócrates a liberdade é a capacidade de fazer uso da própria razão para buscar e alcançar o “bem”, a “verdade”, de modo que, ao utilizar apropriadamente a razão, os seres humanos não podem desejar o mal. A busca do bem se dá mediante o “cuidado da alma”, um cuidado realizado através do conhecimento dos valores supremos, infinitos, universais (condição humana de humanização) e da verdade. A alma é entendida como o espírito, a razão, oráculo interior que, ao ser decifrado, desvela o conhecimento de si mesmo (interior) e do mundo (exterior), propiciando uma ordenação histórica e filosófica consciente da vida, formas melhores de existência humana. Permite ao ser humano se autoconstruir a partir do seu próprio centro, agindo de acordo com as exigências de sua alma. O conhecimento do “bem”, portanto, é a expressão consciente de um ser interior do homem que lhe permite a penetração do conhecimento e a posse do conhecido.
O “bem”, ao tratar dos valores supremos, infinitos, universais, diz respeito não aos valores, interesses e necessidades particulares, mas aos valores, interesses e necessidades sócio-humano-genéricos (SOUZA, 2019). A preocupação com as “coisas humanas” culmina sempre no bem do conjunto social, do coletivo, de que depende a vida do indivíduo. A busca do “bem” é a construção de condições públicas, coletivas que devem estar pressupostas a todos, possibilitando, assim, que cada um se desenvolva conforme suas capacidade e necessidades. Percebe-se que faz referência a uma liberdade substancial e qualitativamente diferenciada e superior àquela propalada nos tempos hodiernos nas sociabilidades capitalistas.
No entender da reflexão ética/política socrática [1], livre é todo aquele que não é escravo dos seus apetites, sendo capaz de autodomínio, de examinar, indagar e refletir se tal ou qual desejo, vontade, comportamento, ação ou conduta individual produzem, ou não, o bem para todos. De modo que “partir da consciência de cada um” tem um significado completamente distinto daquele defendido pela ideologia liberal burguesa. De acordo com o ideal de “bem” e da “verdade”, cada qual, utilizando o logos, o espírito, a razão, que é o cuidado/cultivo da alma, pode chegar à verdadeira norma obrigatória e irrecusável para todos (os valores universais, infinitos, supremos, porque sócio-humano-genéricos, trans-históricos). Portanto, a tarefa de examinar a própria vida não tem fim (uma vida não refletida, não examinada, não vale a pena ser vivida, dizia Sócrates), gerando em muitos desconforto e desamparo. Contudo, para o filósofo e educador, viver buscando é melhor do que viver no engano.
Infelizmente, no presente, parece que as pessoas não querem se libertar das ilusões e dos grilhões, preferindo viver no engano, evitando tomar consciência de sua verdadeira situação e condição. Não querem sentir a dor e frustração de descobrir a verdade, como Cypher, personagem do filme Matrix, que prefere viver na ignorância. Agarram-se às ilusões como forma de tolerar e sobreviver à vida, cada vez mais sem sentido, sem projeto de futuro (duvidoso, incerto, inseguro, angustiante). Para elas, é melhor viver o aqui e agora como se não houvesse passado nem futuro, só o presente e seu presenteísmo imediatista, fazendo o que quer, como quer, na hora que der vontade, sem preocupação com continuidade, com o outro, com o coletivo, com o social, com o gênero humano.
É possível aproximar Sócrates e Paulo Freire considerando seu escrito de 1967. Nele, o educador brasileiro registra a experiência com o Movimento de Alfabetização de Adultos, sendo a base para o desenvolvimento da Pedagogia do Oprimido, contrapondo uma pedagogia libertadora à pedagogia da educação bancária, denunciando o mutismo e o silenciamento impostos às massas, às camadas populares, à classe trabalhadora desde o processo da formação econômico-social brasileira [2], agravado com o golpe militar de 1964, responsável por desestruturar aquilo que foi, conforme Francisco Weffort, prefaciador do livro de Freire, o maior esforço de democratização da educação já realizado no Brasil através dos “círculos de cultura”, que intencionavam chegar a lugares em que a educação formal não havia chegado, estabelecendo novas relações entre quem ensina e quem aprende.
O método e o objetivo de Freire se assemelham aos de Sócrates. Através do diálogo, problematizam as situações vividas, a existência, lançando mão da reflexão crítica, fazendo a passagem (transitividade) da consciência ingênua para a consciência crítica, elevando a consciência de classe das massas, politizando-a, devolvendo ao povo o direito de pensar por si e de dizer a sua palavra. Todas as pessoas são desafiadas a descobrir que pouco sabem de si (“conhece-te a ti mesmo”, dizer escrito na entrada do Oráculo de Delfos, imputado à Sócrates), constituindo-se em problemas para si mesmas, pois a busca e curiosidade (espantar, admirar, indagar) são posicionamentos e atitudes primordiais para a constituição do humano e de sua humanização, fazendo com que o ser humano busque “ser mais” e não se conforme, nem contente, em “ser menos”.
Portanto, para Freire, assim como para Sócrates, a liberdade é a capacidade de refletir criticamente o mundo, as relações e as condições objetivas e subjetivas da própria existência por si próprio, tendo, assim como defendia e incentivava Sócrates, o autodomínio de si, apropriando-se do saber e do conhecimento do mundo, de sua situação para compreender e transformar a realidade, buscando realizar o bem comum, criando as condições para a realização das capacidade e potencialidades de todos os seres humanos conforme suas possibilidades e necessidades perante as forças produtivas genérica e historicamente postas pela humanidade.
Desta feita, a liberdade é luta, ação e reflexão, contribuindo para que sejamos sujeitos de nossa própria história, de nossas vidas; é tomar consciência da situação de exploração, dominação e opressões vividas pelos seres humanos na sociabilidade capitalista. Daí o trabalho do educador ser dialógico-problematizador, tendo na amorosidade um dos seus principais alicerces, pois não basta dar voz e poder de intervenção/participação político-social ao povo; acima de tudo, é necessário amar o gênero humano (Freire se inspira em Che Guevara), capaz de nos fazer transcender nossos interesses e necessidades particulares, finitos, para que nos enxerguemos como membros e parte do gênero humano, colocando como prioridade os valores e necessidades sócio-humano-genéricos, infinitos, trans-históricos. A ética deve servir de guia as nossas ações, comportamentos e interações, a fim de que busquemos o bem, a verdade, cultivando e cuidando da alma, no dizer socrático, colocando o coletivo, a criação das condições materiais de existência isonômicas para todos como pressuposto do desenvolvimento dos indivíduos e de suas individualidades.
Por isso a educação é um ato político, porque dialogal e política (prioriza as decisões voltadas ao bem comum, ao bem viver, a vida boa para todos), contribuindo para a transitividade da consciência ingênua para a consciência crítica-transformadora da realidade, evidenciando que a dialogação implica a responsabilidade social e política dos seres humanos com o mundo, os outros, consigo próprio e, primordialmente, com a coletividade social (condição para a eudemonia, conforme os gregos). Porém, Freire frisa que a educação, por si mesma, não é capaz de emancipar as sociedades humanas da opressão, podendo, tão somente, contribuir para esse processo, uma vez que permite à classe trabalhadora, às camadas populares, às massas, como diz Saviani (2007), dominar o que os dominantes dominam. Eis a condição de libertação. Isso demonstra que a educação, o conhecimento e a própria liberdade não são neutros, pois trata-se de uma educação, de um conhecimento e de uma liberdade para a decisão e responsabilidade social e política.
A condição para a liberdade dos indivíduos é o “cuidado da alma” permanente, para toda a vida, tornando-a, assim, significativa, a serviço do social e do individual. A inquietude, a irreverência, a rebeldia diante dos fatos são saudáveis e necessárias à problematização dos desafios e situações existenciais. Quanto menos criticidade entre os educadores, tanto mais ingenuamente tratam os problemas e discutem superficialmente os assuntos e problemas sociais cotidianos.
Entende-se, deste modo, porque a democracia vai além de uma forma política para Freire, sendo, na verdade, uma forma de vida, essencialmente caracterizada pela transitividade da consciência ingênua à consciência crítica-transformadora, tornada uma segunda natureza ética-moral dos seres humanos. A transitividade da consciência, como lembra Freire, exige como condição que os indivíduos sejam lançados no debate, examinando seus problemas e os problemas comuns da coletividade, estabelecendo as conexões entre indivíduo e sociedade, individual e coletivo, indivíduo e gênero humano, participando ativamente no e do planejamento e direção dados à vida societária através da autodeterminação.
A liberdade efetiva, plena, não será possível na sociabilidade capitalista, só se realizará, concretamente, quando esta for superada e transcendida. Destarte, é preciso esperança, como defende Ernest Bloch; não enquanto espera, passiva, mas como esperançar, traduzido na organização e ações político-sociais de resistência e contra-hegemonia das massas, da classe trabalhadora e das camadas populares a todas as formas de explorações, dominações e opressões. A esperança – e o esperançar – é o horizonte que nos ajuda e anima a caminhar e na caminhada, é uma necessidade ontológica rumo à liberdade. É necessário mantê-la, ainda que não seja suficiente, embora sem ela a luta não tenha forças e nem se torne possível.
Sócrates e Paulo Freire nos munem com as ferramentas para buscar o conhecimento da verdade que os dominantes não querem dizer, não querem que saibamos, aprisionando-o a sete chaves. Mas é ele que pode possibilitar o ensaio e exercício das ações de esperançar, que são ações político-sociais, éticas-amorosas de enfrentamento e resistência contra-hegemônicas, altamente pedagógicas, educativas, politizadoras, de caráter emancipador. Depois desses quatro anos de governo da extrema-direita, que criou as condições para que os comportamentos, atitudes, ideias, valores fascistas reprimidos pudessem novamente se manifestar impunemente e sem pudor algum, passou da hora das esquerdas organizadas em partidos, movimentos sociais, sindicatos, instituições sociais unirem forças e exercitarem as ações de esperançar (como fizeram as torcidas organizadas do Palmeiras e do Corinthians), desarticulando os fascistas e combatendo, ferozmente, até a extinção, sem medir esforços para isso, as atitudes, comportamentos, valores e ideias que alimentam o fascismo inerente ao sistema capitalista enrustido nas pessoas. Até lá, é preciso lutar e combater, sem tréguas, em nome da verdadeira liberdade.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a educação política. 39 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2007. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo; vol. 5, p. 38-39)
SOUZA, Iael de. A superação da cisão indivíduo/gênero – necessidades, interesses e valores sócio, humano, genéricos. Revista Trabalho Necessário, v. 17, nº 33, maio-agosto 2019.
[1] Compreensão de que o modo de organização da vida pública cria ou não condições para o desenvolvimento da vida privada, estando o social e o individual interligados, interseccionados, interdeterminados, logo, fundidos e não cindidos, apesar de suas especificidades.
[2] Força do latifúndio e hegemonia das oligarquias rurais; mudanças devido à modernização urbano-industrial, nova configuração das relações de poder e força entre a classe dominante; o golpe republicano e a situação econômica, social, política, cultural das massas.