27 Julho 2023
Fome, doenças, marco temporal e violência são discutidos no ‘Chamado do Cacique Raoni”, em São José do Xingu (MT). Encontro, que contará com a participação de 600 indígenas e ministras do governo Lula, vai resultar em uma carta com as principais reivindicações e os próximos passos.
A reportagem é de Keka Werneck, publicada por Amazônia Real, 24-07-2023.
Seiscentos indígenas devem atender ao chamado do grande líder Raoni Metuktire para cinco dias de mobilização, começando a partir desta segunda-feira (24). Mundialmente reconhecido pela defesa dos povos originários e da Amazônia, o cacique de 93 anos convocou lideranças para discutir o marco temporal, a defesa da floresta e, sobretudo, como o movimento indígena precisa se fortalecer para ter uma força política. O evento O Chamado do Cacique Raoni – grande encontro das lideranças guardiãs da Mãe Terra, vai até sexta-feira (28) na Aldeia Piaraçu, território kayapó em São José do Xingu, no Mato Grosso.
“Se nós não cuidarmos da nossa terra e de nossas florestas, se deixarmos desmatar tudo, todos vão sofrer com as mudanças climáticas, com o intenso calor e com a poluição do ar. Faz tempo que eu tenho alertado o mundo, mas é preciso continuar alertando vocês”, disse Raoni em um vídeo em que faz o chamado. Uma carta é aguarda para o final do evento com as principais demandas e os próximos passos será assinada pelas principais lideranças indígenas do Brasil.
O encontro ocorre impactado com as cenas de destruição provocadas pelo garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, que chamaram a atenção para a situação de fome extrema, com centenas de crianças desnutridas, doenças, estupros de meninas e assassinatos. A tragédia humanitária demonstra a omissão do Brasil com os povos indígenas e exige providências urgentes.
De acordo com o Ministério da Saúde, as crianças Yanomami morreram nos últimos quatro anos por causas evitáveis como inanição, desnutrição e doenças que poderiam ser facilmente tratadas, como a malária. Desde o dia 20 de janeiro, a TI Yanomami, que é o maior território indígena do País, está em situação de emergência de saúde pública. “Inimigo dos povos indígenas é a fome, é a doença, o câncer, a Aids, coronavírus, pneumonia, malária, disenteria. O branco entra, com o garimpo, contaminando tudo. Quando chega, suja tudo”, denunciou Davi Kopenawa em entrevista à Amazônia Real, enquanto se preparava para viajar até São José do Xingu.
Ele afirmou que a situação dos Yanomami é uma tragédia anunciada há quatro décadas e completamente ignorada pelo governo Bolsonaro. Por isso, culpa o ex-presidente pela expansão da exploração predatória de minério na terra indígena, o que chama de “ouro do sangue Yanomami”, e pelas mortes sequenciais. “Foi ele (Bolsonaro) que matou. Ele matou e foi embora”, denunciou em entrevista exclusiva em janeiro deste ano.
Agora em outro contexto político, após a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Kopenawa espera que os encaminhamentos do encontro sejam considerados pelo governo.
Outro cacique que estará presente é Megaron Txucarramãe, uma das mais importantes lideranças Kayapó da Terra Indígena do Xingu, em Mato Grosso, e sobrinho do cacique Raoni. Megaron destaca um dos temas centrais do evento, que é a tentativa de estabelecer 1988, o ano da promulgação da Constituição Federal, como marco temporal para definir o direito dos povos indígenas às suas terras. “Não chegamos aqui agora, não chegamos aqui em 1988, não chegamos aqui nem em 1500. Sempre estamos aqui, então não tem que mexer nisso, em marco nenhum”, afirma.
Abertura do “O Chamado do Cacique Raoni – grande encontro das lideranças guardiãs da Mãe Terra” na Aldeia Piaraçu, território Kayapó em São José do Xingu, no Mato Grosso (Foto: Kamikia Kisêdjê/Amazônia Real)
Outra pauta que destaca é a resistência ao PL (Projeto de Lei) 490, que busca retirar a proteção e inviabilizar a demarcação de terras indígenas no Brasil, aprovado no Congresso e encaminhado ao Senado. “O que vejo? É a falta de respeito com nós, indígenas, de alguns políticos, deputados ruralistas, bolsonaristas e não vamos aceitar”.
Por sua liderança, Megaron seria um sucessor natural de Raoni. Porém, não quer falar sobre o assunto. No encontro, novas lideranças serão escolhidas, como informa a organização do evento. “Não estou preocupado com isso. Nossa luta sempre continua, a defesa do nosso território, com limites demarcados ou não, da floresta, rio, costumes, tradição, nossa vida.”
Tocando em um assunto delicado para os povos indígenas, ele afirma que esse encontro será também uma oportunidade de pensar uma forma de construir união. “Assim como toda a população brasileira, estamos divididos entre Lula e Bolsonaro. Isso preocupa a gente, porque entre os dois temos que cuidar das nossas coisas”, defende. Ele reclama disso há anos e em agosto de 2021 disse à Amazônia Real que há uma “guerra” em curso e dividir os indígenas é estratégia de enfraquecimento.
Outro tema de destaque do encontro é a liderança indígena feminina, inclusive no parlamento. Líderes indígenas como a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, a presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joenia Wapichana, e a deputada federal Célia Xakriabá (Psol) vão participar do evento.
Também está confirmada a presença da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva. E há expectativa sobre a participação do presidente Lula. À Amazônia Real, Joenia Wapichana afirmou que o governo vai ouvir o chamado que vem dos povos da floresta. “Será um momento importante, pois reunirá lideranças indígenas de várias partes do país, que atenderão ao chamado do grande líder Raoni. Ele tem lutado pelos direitos territoriais e ambientais, exercendo esse papel, mostrando a importância da terra e dos povos indígenas. A Funai estará presente como convidada para ouvir e responder às demandas que serão encaminhadas. A Funai tem a obrigação de fazer cumprir a política indigenista, já reconhecida em lei e de extrema importância para a vida dos povos indígenas.”
Em tratamento de saúde, o filósofo indígena Ailton Krenak, que mora na Reserva Indígena Krenak, no município de Resplendor, em Minas Gerais, foi convidado para o debate fechado que será feito somente entre lideranças. “Por motivo de saúde, lamento não poder estar ao lado desse líder incomparável, uma pessoa grande, um grande chefe de todos nós, o Raoni, que em 2020 subiu a rampa com Lula. Por isso quero acreditar que esse segundo encontro tenha essa relevância deste outro momento, uma vez que Raoni está mais próximo da área de decisão política e que nossas vozes sejam ouvidas verdadeiramente”.
Na opinião dele, uma das pautas que os povos indígenas devem reivindicar é a reorganização do sistema de fiscalização. “Houve um desmonte do Ibama, de outros instrumentos, no governo Bolsonaro. É preciso equipar e ativar tudo isso, porque os problemas persistem”.
No território Yanomami, por exemplo, ainda que as imagens tenham chocado o mundo e a tragédia humanitária se destacado, o garimpo ilegal ainda resiste, apesar da repressão. Treze garimpeiros foram presos na quinta-feira (20) durante a operação Ágata Fronteira Norte, uma força-tarefa das Forças Armadas, Polícia Federal e Ibama. Em uma semana, somaram-se 47 prisões.
Apesar do contexto político mais favorável com Lula, Krenak destaca que não é de um governo para o outro que uma situação crônica será resolvida. “É tragédia em vários territórios, águas contaminadas, rios predados, contaminados pelo mercúrio, isso em várias bacias hidrográficas, o uso agressivo de barragens, ou seja, essas práticas do agro e da mineração não vão parar. E tudo isso deve aparecer no evento, que será conduzido pela nossa liderança maior”.
O primeiro chamado do cacique de 93 anos ocorreu em 2020, quando Raoni reuniu lideranças indígenas no Xingu para unir vozes contra ameaças. O principal líder indígena brasileiro enfrentou nos últimos anos a perda da esposa, a líder indígena Bekwykà Metuktire e duas internações provocadas por uma infecção no intestino e pela Covid. Em janeiro deste ano, subiu a rampa de braços dados com Lula na posse do petista na Presidência da República.
O encontro deste ano será dividido em dois momentos: um apenas para lideranças indígenas e outro com a participação de convidados não-indígenas. Segundo a organização, será também uma oportunidade para reunir os mais velhos, os jovens e as mulheres no território indígena.
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Raoni reúne lideranças para fortalecer o movimento indígena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU