O documentário Pisar Suavemente na Terra (Stepping softly on the Earth), do diretor brasileiro (filho de pai norte-americano e mãe piauiense) Marcos Colón, venceu nesta quarta-feira (9) o prêmio de Melhor Fotografia da mostra 12ª edição do Filmambiente – Festival Internacional de Filmes Ambientais. O festival, que teve curso no Rio de Janeiro, exibiu 25 produções, entre longas e curtas-metragens (documentários, animações e ficções), de 11 países.
A reportagem é de Jotabê Medeiros, publicada por Amazônia Real, 09-11-2022.
“Bela fotografia do rio, do seu povo e da vida ribeirinha. A poderosa representação visual da beleza e dos conflitos do povo da Amazônia foi impactante”, afirmou nota do júri sobre o filme.
A vitória é merecida. Pisar Suavemente na Terra é, antes de mais nada, uma poderosa experiência visual. Imagens já quase banalizadas pelas contingências de um tempo de hiperconectividade ressurgem grandiosas, mobilizadoras, emocionantes ou chocantes. Vista de cima, a área desmatada da mina de bauxita da Alcoa em Juriti, no Pará, sugere um passeio de um robô espacial em Marte (ou um deserto vermelho); o trem que corta a noite na selva, acordando pavorosamente a aldeia, não é diferente do metrô que corta a Zona Norte do Rio de Janeiro. Tudo parece envolvido num continuum: do porto de embarque da soja em Santarém à Usina Hidrelétrica de Belo Monte, da estrada de ferro Carajás de Bom Jesus do Tocantins ao descascar vagaroso das pilhas de macaxeiras no barracão da aldeia.
A Amazônia que se vê é feérica e parece inédita. Vai de um enxame de tuc tucs (os mototáxis fechados) do mercado público do Peru às palafitas paraenses, dos abutres comendo restos de feira em Iquitos ao rastro de garimpo no rio Tapajós, em Itaituba, no Pará. É uma Amazônia ferida de morte, mas, em contraponto a isso, há a rotina tranquila e ponderada de três famílias, não por acaso três belos focos de resistência – a de Kátia, cacica do povo Gavião Akrãtikatêjê, na Terra Indígena Mãe Maria; de Manoel, cacique do povo Munduruku de Ipaupixuna (PA); e de José Manuyama, educador de origem Kokama, de Iquitos (Peru).
A qualidade dos depoimentos desses três resistentes vai se acentuando com o decorrer do filme. O professor José Manuyama, do Peru, parece ter a consciência das duas pontas da tragédia. “Acho que no Brasil isso é comum, derrubar milhares de hectares, mas aqui não”, exclama, ao descobrir que foram devastados 2 mil hectares de mata virgem em sua região. Mas a ação leniente do Estado é igual dos dois lados, a atividade das dragas é ilegal lá no Peru, aqui ela foi admitida pelo Estado quase como uma contingência nos últimos quatro anos.
O diagnóstico é exatamente o mesmo. O cacique Manoel define a ação contínua de novos empreendimentos modernizantes que falam em nome do progresso de forma clara: “Só trazem destruição, drogas , prostituição”. Para José Manuyama, importam “miséria, pobreza, contaminação, corrupção”. Para o escritor, poeta, ambientalista e líder indígena Ailton Krenak, o ímpeto de devastação não nasce de uma contingência própria à modernidade, à condição humana: “É uma produção”, sentencia.
Do ponto de vista da investigação, elemento quase sempre presente no gênero documentário, o espectador pode pensar que é um aspecto negligenciado no filme. Mas, súbito, se depara com o dramático depoimento Kátia Akrãtikatêjê sobre o cerco sofrido por sua própria família, seu pai e sua mãe com quatro crianças pequenas, no início dos anos 1980, em Tucuruí. Para expulsar os habitantes da aldeia, homens armados fizeram cerco com fuzis durante semanas em torno das moradias. Ela tinha apenas 9 anos na época, não entendia o que faziam ali. Mas seu pai, Payaré, resolveu resistir. Todos os outros acabaram desistindo, embarcando num caminhão para nunca mais serem vistos, mas a família ficou. Usavam dinamite para revolver o rio. Foi quando três homens tentaram degolar o pai dela, e todos tiveram que se esconder na mata. Ao saírem, viveram como pedintes na cidade. A saga de “humilhação e preconceito”, conta Kátia, foi tão profunda que os obrigaram até a renunciar aos nomes indígenas.
Em meio aos já graves problemas dos povos originários (a mineração predatória, do monocultivo, do garimpo ilegal, da exploração predatória do petróleo, da extração de madeira e o consequente desmatamento e da construção de faraônicas usinas hidrelétricas), o filme traz pausas surpreendentes, como a visita do cidadão peruano ao Cemitério de Covid de Iquitos, um sintoma da negligência do Estado e da vulnerabilidade dos habitantes da floresta. O documentário foi filmado no Peru, na Colômbia e no Brasil.
“A humanidade cria camadas de diferenças, até resumir-se a um clube fechado. E os outros, os que ficam de fora, os outros danem-se”, diz Krenak. “Eu não quero nada com essa parte da humanidade que escolheu morrer.”
Ao longo de Pisar Suavemente na Terra, nota-se uma busca deliberada pela ênfase na qualidade humana, um princípio do diretor do filme, que vive em Tallahassee, capital da Florida, e é professor do programa de Saúde Pública da Florida State University. Contra as mentiras de um sistema que passa de um fetiche a outro, de uma promessa de riqueza a outra, Kátia Akrãtikatêjê expõe a desnecessidade da acumulação do ouro, da venda de ativos da floresta, para um bem estar desconhecido. “Eu tenho meu maracujá, minha macaxeira”.
Não há riqueza esperando pelos povos da floresta na encruzilhada do desenvolvimento, que se funda, como diagnosticou o filósofo francês Bruno Latour (não por acaso, referência do cineasta Marcos Colón), na oposição entre natureza e cultura. “A modernidade é sinônimo de ruína social”, conclui Manuyama. Despido da ilusão de se deparar com o Paraíso, o filme garimpa a grandeza da consciência do mundo.
É interessante notar como a presença da água vai se tornando uma força visual e narrativa dominante no filme, ao longo do percurso, abarcando quatro bacias hidrográficas. “A água se impôs na narrativa, e é muito bem-vinda. Como você sabe, a Amazônia é anfíbia, e temos grandes escritores que narram essa condição. O próprio Milton Hatoum tem uma literatura anfíbia, que descreve esse processo da vida amazônica. Sem a água não existe a Amazônia, e se tornou parte construtiva por todas as questões relacionadas a ela: a contaminação no Peru, no Brasil, os lençóis freáticos, as mineradoras, o subsolo”, afirmou o diretor, que diz se contrapor a uma espécie de “amnésia biocultural” em relação ao território. “Pensar a Amazônia a partir dos seus povos implica pensar a Amazônia a partir do que é importante para eles: os modos de sobrevivência, a água, a floresta, a biodiversidade, a cultura local. Nós geralmente a pensamos como mercadoria, objeto de exploração”.
O filme começa com uma imagem da região onde foram assassinados, em junho, o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista brasileiro Bruno Pereira, em Atalaia do Norte, no Amazonas, sob depoimentos de Ailton Krenak, uma das consciências mais desenvolvidas da contemporaneidade em relação aos dilemas do planeta em tempos de massificação dos desejos. É possível, a partir das constatações óbvias da devastação, enxergar esse filme como a reiteração de uma denúncia, um protesto, uma advertência. Mas Pisar Suavemente na Terra é principalmente um filme filosófico, um mergulho nas percepções da ação do decantado mito do progresso e do desenvolvimento sobre a Amazônia brasileira e a peruana. Interligadas pela voz e a compreensão ancestral de Ailton Krenak, esses relatos de resistência nos apresentam outras formas de existir e caminhar pelo mundo.