17 Julho 2023
Em entrevista à Amazônia Real, uma das principais lideranças indígenas da Amazônia analisa o governo Lula e aponta a demarcação como a principal forma de fazer justiça aos povos originários e protegê-los do avanço e das ameaças mortais de invasores.
Maria Leusa Kaba Munduruku, uma das maiores lideranças na luta contra a invasão dos garimpos em territórios indígenas, de 38 anos, mãe de seis filhos e acadêmica de Direito, conta que seu povo cresceu nas vastas margens do rio Tapajós e erigiu uma nação de guerreiras e guerreiros, a Mundurukânia. Seu povo cresceu, guerreou e, hoje, resiste à destruição em suas múltiplas formas. O rio Tapajós, no Pará, é um dos principais alvos da invasão garimpeira na Amazônia. Mas também é cobiçado pelo agronegócio e por grandes projetos de infraestrutura, como portos graneleiros e hidrelétricas.
“Só tem um jeito de proteger nossos territórios e nosso povo, que é demarcando nossas terras. Enquanto isso não acontecer, as invasões vão continuar, as ameaças vão continuar; a destruição da floresta e a contaminação do rio, também. Demarcar não é favor, é obrigação do Estado”, pontua Leusa Munduruku, queixando-se do atraso histórico pelo reconhecimento dos territórios ainda não demarcados pelo governo brasileiro. Trata-se de um déficit e uma injustiça que se arrastam por décadas.
O protesto de Leusa também incide sobre o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que desde a campanha presidencial promete demarcar terras indígenas, contrariando a lógica de seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL). Em quatro anos, o ex-presidente não demarcou um centímetro de terras indígenas e quilombolas.
Em 28 de abril, quatro meses após ser eleito, Lula assinou a homologação – etapa final do processo demarcatório – de seis territórios indígenas: a Terra Indígena (TI) Arara do Rio Amônia, no Acre; TI Uneiuxi, no Amazonas; TI Kariri-Xocó, em Alagoas; TI Rio dos Índios, no Rio Grande do Sul; TI Tremembé da Barra do Mundaú, no Ceará; TI Avá-Canoeiro, em Goiás. O presidente fez questão de anunciar a homologação no encerramento do Acampamento Terra Livre (ATL), como um ato simbólico de seu governo.
No mesmo dia, Joênia Wapichana, presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), fez avançar dois outros processos, o da TI Sete Salões, do povo indígena Krenak, em Minas Gerais, e o da TI Sawré Ba’pim, do povo Munduruku, localizada em Itaituba, município paraense líder em garimpagem de ouro. Segundo a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), restam ainda cerca de 200 outras TIs aguardando pelo reconhecimento do governo brasileiro.
A TI Sawré Muybu, território mais ameaçado e impactado pelo garimpo e madeireiros ilegais, teve sua portaria declaratória assinada por Joênia. Desde 2015, com o projeto de usinas no Tapajós, eles realizam autodemarcação. Em 2021, eles retomaram o processo e recomeçariam neste mês, mas cancelaram devido à morte de duas lideranças.
Enquanto isso não ocorre, entre 2010 e 2021 a invasão garimpeira às terras indígenas cresceu mais de sete vezes, segundo o MapBiomas. O Pará é o Estado brasileiro com a maior concentração de áreas garimpadas, 113.777 hectares. Entre os povos indígenas com maior área invadida pelo garimpo, os Munduruku ocupam o segundo lugar, com menos invasões que os Kayapó — também no Pará — mas superando os Yanomami, cujo território está em Roraima, fronteira com a Venezuela. “As balsas de garimpo nunca saíram lá do Tapajós, a gente olha para elas lá das nossas aldeias”, afirma Leusa Munduruku, cuja entrevista concedida à Amazônia Real em maio na cidade de Belém (PA), segue abaixo.
A entrevista é de Cícero Pedrosa Neto, publicada por Amazônia Real, 13-07-2023.
Eu lembro que tu viajaste muitos quilômetros para chegar no teu colégio eleitoral e a Amazônia Real acompanhou a saga dos Munduruku para conseguirem votar. Na época me disseste que irias votar no Lula. Poderias dizer o que mudou para os povos indígenas com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
Esperança, a gente tem muita esperança no governo Lula, que a gente nem chama de governo Lula. A gente chama de governo das nossas parentas, que estão lá no governo hoje: Sônia Guajajara, como ministra, a Célia Xakriabá, como deputada, e a Joênia Wapichana, como presidenta da Funai. Mas não é fácil para elas, que são mulheres indígenas, que estão ali para lutar contra um grupo antindígena, parlamentares que são contra os povos indígenas.
Tu já estiveste em Brasília duas vezes depois da eleição do presidente Lula e da posse de Joênia Wapichana na Funai. Como foi lá?
A gente foi para Brasília e estivemos com a presidenta Joênia exigindo a demarcação dos territórios, e fomos atendidos. Vimos que ela assinou um relatório declaratório do território Sawré Ba’pim. E depois a gente viu nosso presidente assinando a homologação de seis territórios. Isso foi pra nós uma vitória, né? Porque depois de passar quatro anos, uma violência tão forte em cima da gente… não foi fácil, foi uma luta muito grande para nós. Mas ainda falta muita coisa.
Maria Leusa Kaba Munduruku, líder indígena do povo Munduruku, conhecida por lutar contra a invasão garimpeira no Tapajós. (Foto: Cícero Pedrosa Neto | Amazônia Real)
Além das demarcações, que foram promessa de campanha do presidente, o que está faltando?
Ah, falta muita coisa ainda, principalmente a fiscalização do nosso território. Ainda não tivemos fiscalização, e o território continua sendo invadido, uma movimentação muito grande de invasores, principalmente garimpeiros. As balsas de garimpo nunca saíram lá do Tapajós, a gente olha para elas lá das nossas aldeias. E a gente está lá enfrentando isso. O governo já fez um trabalho lá no território dos parentes Yanomami, e entendemos também que é uma demanda muito grande, que não é fácil. Mas a gente continua cobrando, exigindo do governo que faça a fiscalização, que defenda nosso território e que garanta a segurança dos defensores que estão lá ameaçados por esses invasores.
As lideranças Munduruku têm cobrado do governo uma postura mais enérgica com relação aos invasores, principalmente os garimpeiros?
Nós cobramos do Estado porque é obrigação dele proteger os povos indígenas. Fazer o seu papel, né? Porque até agora nós que estamos agindo no que o governo deveria atuar. E sobre o presidente, não podemos ficar só na promessa, ele tem que cumprir as promessas que ele fez, de que ia retirar os invasores, logo depois das eleições, do nosso território. E a gente tá aqui aguardando. Estamos na expectativa se o governo vai mandar fiscalização para os territórios, enquanto isso nós continuamos com o monitoramento e fiscalização autônoma no nosso território. Isso porque a gente não vai esperar só pelo governo, os garimpeiros estão ativos, as balsas de garimpo estão ativas.
Então, mesmo com o novo governo, os garimpeiros continuam agindo no Tapajós. Quais são os riscos disso?
Bastante, eles não pararam. O risco é principalmente para os defensores. Eles ameaçam a gente, dizem que a gente tem que morrer, porque nós estamos impedindo a entrada deles no rio e nos nossos territórios, atrapalhando a economia deles, que é sustentada pelo garimpo. Com isso, eu quero dizer que até o momento não há segurança para nós, principalmente para as lideranças, que estão na linha de frente dessa luta. Não tivemos resposta sobre isso ainda.
Em maio de 2021 tu e tua mãe foram vítimas de um atentado e tiveram as casas incendiadas, a Amazônia Real acompanhou de perto e ajudou a denunciar este crime. Como andam as investigações?
Para nós não tem justiça, né? Até agora a gente não sabe como está isto, a gente está esperando. Sabemos que a Justiça é difícil, é uma coisa muito lenta. A gente não sabe e pergunta: “cadê a justiça?”. Os criminosos estão soltos e continuam cometendo os mesmos crimes, envolvidos com o garimpo. Por isso a nossa luta também é por conta da contaminação do mercúrio, que a gente não sabe se tem cura.
O povo Munduruku é o segundo mais prejudicado pela invasão garimpeira, segundo o MapBiomas, superando em áreas garimpadas os Yanomami, ficando atrás apenas dos Kayapó. Quais as consequências dessa invasão?
Fora a destruição do rio e da floresta, são as doenças. Hoje nós somos um povo doente. Principalmente as mulheres e as crianças, como mostrou os exames que a Fiocruz fez nas nossas aldeias. As crianças já nascem doentes, contaminadas pelo mercúrio. É uma dor muito grande para nós que somos mães, é assustador demais para nós. A gente já perdeu o rio e a floresta para o garimpo e ainda estamos doentes; nossos peixes também estão doentes.
E como é viver sabendo que teu povo está contaminado?
A gente já sabia que ia adoecer com essa destruição toda. Tudo o que está sendo destruído, o rio e a floresta, é a vida que nós damos para os nossos filhos. Então, é a vida que está destruída, é a vida que está doente.
Tu e teus filhos chegaram a fazer exames toxicológicos para verificar a presença de mercúrio?
Não, a gente ainda não conseguiu fazer.
Maria Leusa Kaba Munduruku, líder indígena do povo Munduruku. (Foto: Cícero Pedrosa Neto | Amazônia Real)
Isso te preocupa?
É muito preocupante porque a gente não sabe, não sabe o quanto o mercúrio está adoecendo a gente. Por isso também que estamos cobrando, para que continue esse trabalho e para que o governo apoie a saúde do nosso povo, principalmente sobre a contaminação de mercúrio. E que pare com urgência o garimpo que está ativo na nossa região, porque é isso que mata e adoece o nosso povo.
Hoje tu és uma das pessoas mais ameaçadas do teu povo. O que mudou na tua vida por conta disso?
Mudou muito. Hoje eu estou em Santarém, tive que tirar meus filhos da aldeia e trazer eles para morar comigo na cidade. Mas meus irmãos, meus sobrinhos, e minha mãe continuam lá. E eu queria estar lá com eles.
Qual é teu maior sonho?
Deixar o nosso território livre das invasões, que o rio volte a ficar limpo e que as nossas futuras gerações possam viver nas aldeias sem depender do alimento do branco, sem precisar ir comprar alimento em comércio. Que os nossos filhos e netos possam plantar, pescar, caçar e viver em paz no nosso território.
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“Demarcar não é favor, é obrigação do Estado”, avisa Leusa Munduruku - Instituto Humanitas Unisinos - IHU