Quando o inimigo sou eu. Sobre violência e Bíblia. Artigo de Lidia Maggi

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21 Novembro 2025

"O profeta de Nazaré, ao dizer aos seus seguidores: 'Amai os vossos inimigos', convida a reconhecer que existem inimigos, com os quais se pode tentar estabelecer uma relação que não seja marcada pela violência mimética, mas pelo gesto inesperado do amor", escreve Lidia Maggi, pastora batista italiana, em artigo publicado por Servitium, n.º 1. 269, julho/setembro de 2025. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Para investigar o envolvimento da consciência pessoal nas diversas formas que a violência assume, devemos primeiro colocar as Escrituras judaico-cristãs no divã da psicanálise, depois na cátedra da filosofia, sem esquecer a passagem pela sala do tribunal! De uma perspectiva teológica, toda a antropologia bíblica deveria ser reformulada à luz do caso sério de violência que desde sempre aflige a nossa humanidade e que, em nosso inquieto presente, mostra todo o seu poder e alastramento. Nesta contribuição, limito-me a destacar uma questão-chave que poderia se revelar estratégica para enfrentar a questão da violência na Bíblia: o inimigo no palco narrativo. Refiro-me à figura do inimigo. Com uma formulação questionadora: como remover a violência de um olhar que na cena capta a presença do inimigo? Uma presença que está longe de ser secundária nas Escrituras. Basta pensar nos Salmos, onde, juntamente com Deus, a figura do adversário desempenha um papel de protagonista. Como também na história de Jesus, que terminou com a escandalosa crucificação decretada pelos seus inimigos.

O profeta de Nazaré, ao dizer aos seus seguidores: "Amai os vossos inimigos", convida a reconhecer que existem inimigos, com os quais se pode tentar estabelecer uma relação que não seja marcada pela violência mimética, mas pelo gesto inesperado do amor. Os inimigos, portanto, existem. O olhar bíblico, longe de ser idealista, capta essa presença inquietante e educa a não remover a questão. Mas então, como seria possível erradicar a violência presente nessa relação conflituosa? Como conseguir purificar essa perspectiva que filtra a realidade distinguindo entre amigos e inimigos e nos incita a combater estes últimos? Poder-se-ia pensar que essa relação de inimizade deve ser jogada no plano das palavras, do embate dialético, sem recorrer à violência física. A Bíblia não remove o conflito, mas o aborda no plano hermenêutico, não no campo de batalha. Na realidade, a narrativa bíblica parece desmentir essa nossa tentativa de suavizar a questão.

E mesmo que as narrativas bíblicas de massacres de inimigos não encontrassem correspondência histórica — como afirmam renomados exegetas, referindo-se, por exemplo, à conquista de Jericó — nem por isso atenuaria a violência da narrativa. Pois a transição das palavras para as armas ocorre rapidamente, como afinal vemos no nosso mundo atual. As palavras incendeiam a pólvora. A realidade é narrada de uma certa maneira, de modo que o outro seja desumanizado; consequentemente, o ato violento que se aplica contra ele não é interpretado como o assassinato de uma pessoa, mas como um gesto necessário para extirpar o mal. Até mesmo as palavras precisam ser desarmadas na gestão do conflito com o inimigo. Mas como? Como podemos mudar o modo de ver que intercepta a presença do inimigo? Como podemos desarmar as palavras que narram essa inimizade?

O ídolo, o inimigo teológico e a guerra santa

E mais ainda: na Bíblia, os inimigos são "legião": é impossível desviar o olhar dessa presença real, que se exibe de muitas maneiras. Mas, ao mesmo tempo, essa multiplicidade de presenças inimigas são todas reconduzidas à figura do "inimigo teológico", isto é, o ídolo. É em nome da rejeição da idolatria, em defesa da verdadeira fé, que o outro é afastado, destruído, sem sequer poupar seus bens. A idolatria é, ao mesmo tempo, um erro teológico e antropológico.

Aí reside a raiz daquele fracasso que a Bíblia chama de pecado. Em nome da luta contra a idolatria, até mesmo a violência parece encontrar plena justificativa. Portanto, a tarefa de mudar o ponto de vista e desarmar as palavras torna-se ainda mais árdua quando o inimigo é identificado como o portador da idolatria, a principal causa do afastamento do verdadeiro Deus e da vida boa.

Posto o problema, vamos tentar discernir possíveis caminhos para não chegar à conclusão de uma violência que assuma a face de um destino insuperável. Vamos partir da raiz que injeta linfa na consciência que crê, de modo que a inimizade violenta encontre uma sua própria justificativa específica, ou seja, a questão da oposição à idolatria. As Escrituras mostram uma consciência dessa raiz de toda violência.

Talvez a cena mais emblemática a esse respeito seja aquela protagonizada pelo profeta Elias. O zelo que o leva a opor-se aos profetas dos ídolos, em nome do Deus verdadeiro, a ponto de massacrá-los (1Reis 18), em vez de ser justificado pela narrativa bíblica, é alvo de críticas, destacando como a paixão pela verdadeira fé está cegando a sua visão, privando-o da capacidade de enxergar ao seu lado inúmeros outros crentes, bem como a presença de um Deus que não se apresenta nas vestes violentas de fogo, do terremoto ou do vento que quebra as rochas, mas como uma "voz mansa e delicada" (1Reis 19). Nessa cena, que começa com a ordália e o massacre dos profetas de Baal e termina com a presença de Deus que corrige o seu profeta, somos confrontados com uma narrativa que oferece antídotos à tentação violenta que habita a consciência do crente. Isso ocorre precisamente graças à função que a narrativa cumpre, ou seja, a de estender ao longo da história um processo que não pode ser reduzido ao instante do embate, à sensação de uma inimizade insuperável.

Uma história em movimento

Embora a identificação do inimigo seja um ponto importante, a narrativa insere esse ponto em uma série de outros pontos, precisamente aqueles que delineiam a trama geral, onde o que está em jogo só emerge por entre os movimentos, os repensamentos e as mudanças que cada ação acarreta, na interação dos diferentes pontos de vista. O ponto de vista de Elias não é o de Deus.

Nem mesmo o homem de Deus tem como garantida a possibilidade de se identificar com o olhar divino sobre a realidade. A sabedoria da narrativa se opõe à simplificação binária que situa a realidade com base nas categorias opostas de "amigos" e "inimigos". O relato bíblico pretende justamente nos mostrar como uma perspectiva diferente pode ser possível.

Além disso, as diferentes narrativas bíblicas dão forma a uma história que também está em movimento. Muitos intérpretes utilizam o conceito de "história da salvação" para afirmar que há uma evolução à medida que a narrativa progride, até seu cumprimento na história de Jesus. É ali que a face de Deus se desambigua; é ali que se esclarece o sentido de uma eleição chamada a vencer o mal com o bem.

Talvez essa abordagem "evolucionista" simplifique demais a riqueza do texto e carregue consigo uma violência igualmente problemática contra aqueles que não alcançam o cumprimento messiânico atestado no Novo Testamento. O que podemos, no entanto, extrair dessa abordagem, para além do esquema evolucionista-substitucionista, é que os relatos tomam forma em uma narrativa, atestada no Livro Sagrado. E que o leitor é chamado a seguir o fio da narrativa até o fim para não interpretar erroneamente o sentido de cada uma das cenas. Ambos os Testamentos, como os encontramos em seus respectivos cânones, estão empenhados em fornecer o sentido de um todo, aliás já indicado nos fragmentos dos vários livros. Em última análise, a Bíblia pretende justamente formar a consciência de leitoras e leitores por meio da sabedoria da narrativa. Evocando, ao mesmo tempo, a outra sabedoria necessária: aquela que parte do ato de leitura da narrativa. Pois nem todas as leituras são capazes de apreender o sentido do texto lido.

Desarmar o olhar: a violência do conflito interpretativo

E é nesse aspecto — creio eu — que é preciso trabalhar mais. Porque sobre o sentido a ser atribuído à arte da narrativa podemos recorrer a inúmeros estudos. Uma vez lidos e estudados, permanece em aberto a questão da "outra metade do texto", ou seja, o olhar do leitor, que parte de sua própria vivência, dos desejos que o habitam, entre os quais desempenha um papel nada secundário o sentimento de inimizade que desencadeia a violência.

As lentes que focalizam a cena narrativa são polidas no laboratório do nosso presente. Sem pretender capturar uma imagem exaustiva de um momento histórico, o atual, do qual sequer temos o distanciamento necessário para um juízo — mais uma vez, a questão situar um ponto, isolando-o dos demais pontos que compõem o quadro! —, limitar-me-ei a apontar a influência exercida sobre o nosso olhar por um certo clima quase de torcedor, que parece prevalecer cada vez mais sobre a escuta, a discussão e a reflexão. Uma simplificação que prejudica o grande debate que ocorre nas Escrituras, que extingue a sabedoria da narrativa em favor do imediatismo do slogan. Uma simplificação que mostra como uma certa dose de violência pode acabar contaminando a leitura da Bíblia. E não se trata de um problema novo: desde o alvorecer do cristianismo, o conflito interpretativo tem fomentado julgamentos, atitudes e comportamentos violentos. Mas essa deriva pesa ainda mais hoje, porque, nesse interim, ocorreu a virada ecumênica e as igrejas se empenharam a passar do anátema ao diálogo; e na sociedade civil ocidental, após o choque do Holocausto, amadureceu uma conscientização que levou a dizer: "nunca mais". Assim, a decepção com o estado atual das coisas resulta profunda; e até mesmo o empenho para uma leitura séria das Escrituras é afetado pelo desconforto com o uso impróprio que é despudoradamente feito delas. O nosso tempo celebra a lei do mais forte e torce toda razão para justificar seu interesseiro agir. A vitória da violência não ocorre apenas no campo de batalha, mas também — e sobretudo — nas fábricas que produzem os óculos que usamos. Hoje — assim me parece — o conflito interpretativo está novamente carregado de violência. Depois de todos os discursos — justos! — sobre a Bíblia não falar a linguagem única de Babel, sobre promover a comunhão na diversidade, a reconciliação das diferenças, eis que volta à pauta a espinhosa questão de uma diferença que produz violência.

O pensamento identitário está ganhando cada vez mais força, recompactando os grupos ao identificar o outro como um inimigo a ser combatido. E a Bíblia é lida pelo viés dessa triste paixão. O que fazer? Devemos, é claro, nos armar de paciência e revisitar as páginas "violentas" das Escrituras para extrair seu sentido dentro do livro em que aparecem, contextualizando literária e historicamente tais virtuais "versículos satânicos". Contudo, não podemos esquecer que a violência tem a seu favor a fúria que varre toda distinção, que não conhece razão. E, juntamente com a fúria, ao longo dos séculos tornou-se cada vez mais astuta, zombando daqueles que resistem ao seu encanto, expondo a impotência daqueles que gostariam de enfrentá-la.

O resultado do confronto frontal já está escrito. Portanto, é melhor recuar e experimentar um outro tipo de óculos para observar a situação. Ou seja, é preciso dar um passo para trás em relação ao desenvolvimento clássico do nosso tema, isto é, a análise de textos e sua interpretação sintética.

Reconhecer a violência que me habita

Vamos começar por analisar os óculos. Que, ao mesmo tempo que visam focar a cena da violência alheia, deveriam ver sua própria violência refletida naquelas mesmas lentes. A Bíblia, de fato, mostra em várias ocasiões o caminho do "partir de si mesmo”. Mais do que cenas separadas, é a própria natureza do livro que leva o leitor nessa direção. Trata-se, de fato, de um texto performativo, onde a leitura equivale ao discernimento e à conversão.

A Bíblia se inclina sobre leitoras e leitores e, em cada página, como um refrão canônico, diz: “Tu és aquele homem”. Não é uma manobra íntima, que esquece a violência que nos cerca: para a Bíblia, a pólis começa de mim. Consideremos aquele fio condutor da trama evangélica que são as palavras de Jesus sobre a hipocrisia, a atitude de ser aquilo que não se é, rompendo violentamente o vínculo entre o pensamento, a palavra e a ação. Como podemos nos posicionar contra as violências identitárias se somos incapazes até mesmo de enfrentar os conflitos que surgem nas comunidades cristãs? Não somos pessoas hipócritas? Há uma questão de credibilidade sobre a qual toda a Bíblia converge. Estamos convencidos de que nossos óculos enxergam claramente as violências alheias e gostaríamos de removê-las, como quem tira um cisco do olho; mas a palavra bíblica remove aqueles óculos e nos propicia outros novos, que revelam a surpreendente presença de uma trave em nosso próprio olho.

Esses óculos bíblicos, que nos impelem a começar por nós mesmos, evidenciam uma violência que nos habita, mesmo que não a percebamos. E, ao mesmo tempo, denunciam aquele desejo de dominação que se disfarça de motivações religiosas, de direitos a serem defendidos.

É nessa escola das Escrituras que a consciência crente encontra a sabedoria necessária para conter a violência.

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