27 Setembro 2025
- As coisas estão em turbulência. Os líderes da ONU se manifestaram, mas não chegaram a um acordo. Tempos apocalípticos são esperados; teremos que conviver com a Besta.
- Todos falam da Besta, dizem que ela chegou. Mas nem todos a colocam no mesmo mar, na mesma terra.
O artigo é de Xabier Pikaza, teólogo espanhol, especialista em teologia bíblica e história das religiões, publicado por Religión Digital, 26-09-2025.
Eis o artigo.
Todos falam da Besta, dizem que ela chegou. Mas nem todos a colocam no mesmo mar, na mesma terra.
Eu também não sei dizer onde fica, mas consegui descobrir algumas de suas características, e por isso as descrevo nas notas a seguir, após ter lido o Apocalipse com muita atenção e viajado muitas vezes por mar e terra. Esta é a minha conclusão: não temos escolha a não ser conviver com a Besta. Vamos com cuidado.
Para começar. Algumas generalidades.
Talvez possamos supor que no início houve um Big Bang (uma explosão da realidade) e que no fim haverá um estágio de quietude ou equilíbrio térmico e energético em que tudo termina e se consome (pelo menos em certo sentido). Bem, dentro desse processo, somos chamados a manter e transmitir a chama da vida, mas carregando em nosso próprio egoísmo o risco de apagá-la, como vimos ao falar do Dilúvio. O cristianismo nos coloca nesse caminho de vida e morte, como portadores da esperança da ressurreição.
— A realidade é geração. Desde a antiguidade, a importância da geração ou emergência da realidade tem sido enfatizada, seja em formas de emanação ôntica (entendida por meio de sinais físicos: como a luz brotando de uma fonte inextinguível, a água fluindo de uma fonte que nunca seca, etc.) ou de engendramento biológico. Nessa perspectiva, no cerne de um processo que parece arrastar tudo para a morte, poder-se-ia descobrir a existência de uma Realidade original da qual brotam e para a qual tendem todos os movimentos da realidade, tal como os interpretamos e vivenciamos. Talvez pudéssemos dizer que somos portadores e testemunhas de uma Vida de Deus em um mundo que parece ameaçado de morte, apesar de sua imensa riqueza de vida.
— A realidade é corrupção ou morte. Mas no mundo antigo, geração e corrupção faziam parte de um processo de eterno retorno no qual tudo muda (nasce e morre), permanecendo idêntico a si mesmo. Um tema evocado na própria Bíblia pelo Livro de Kohelet. Dentro da cosmovisão antiga, geração e corrupção eram momentos complementares de um processo constante de eterno retorno, como destacado por Mircea Eliade em O Mito do Eterno Retorno, no qual toda corrupção faz parte de um processo inverso de geração. Bem, ao contrário desse modelo cíclico de geração e corrupção (de acordo com o ciclo do eterno retorno), a religião bíblica introduz um esquema linear que leva, por um lado, à morte final desse tipo de vida no planeta Terra, mas abre, por outro, para um tipo superior de vida, que os cristãos identificam com a ressurreição de Jesus.
— Ao mesmo tempo, a realidade faz parte de um conjunto (um continuum) inter-relacionado de realidades minerais, vegetais, animais e humanas. Numa perspectiva de totalidade cósmica, pode ser tomada como um modelo de movimento cíclico (ondulatório), segundo o qual o cosmos (universo ou pluriverso) de galáxias "infinitas" se expande e se contrai sem cessar, como um eterno processo de geração/corrupção/regeneração etc. Mas no plano concreto do planeta Terra, dentro do sistema solar, impôs-se uma visão linear de nascimento, desenvolvimento e morte biológica que pode ser acelerada pela influência destrutiva da ação humana.
Esses dois movimentos, um descendente, que leva à degradação da vida física, e outro ascendente, que leva à elevação da mente (da ressurreição), podem e devem estar relacionados. Este livro aborda a deterioração e/ou aceleração da morte biológica no planeta Terra, habitado por humanos, a partir de uma perspectiva cultural e/ou religiosa. Os ciclos de vida podem terminar; a morte biológica do mundo pode chegar, ou seja, o fim desse tipo de vida. Portanto, neste plano, não se pode falar de eternidade, mas sim de geração e corrupção, um processo espiralado da vida que termina na morte, uma morte que pode ser e é acelerada pela ação predatória dos humanos, como continuarei a dizer.
Segundo isso, o compromisso humano (cristão) com a vida no mundo (na linha da ecologia) é integrado e culmina na graça e no compromisso da ressurreição. Assim, a ecologia cristã pode ser integrada a uma teologia geral da criação e da ressurreição, como Paulo enfatizou, ao integrar a vida do mundo inteiro na jornada do messianismo da vida, entendida como um processo de esperança universal (Rm 8).
Mãe Terra, lar da vida. Quero começar abordando a Terra, entendida como um processo evolutivo nutritivo, no qual algumas realidades advêm de outras, formando assim cadeias de vida. Dessa forma, minha reflexão visa focar especificamente neste planeta ou globo que é a Terra, entendida como lar ou lugar de surgimento e desenvolvimento da vida que somos.
— A vida é multiplicidade e movimento. Dentro da realidade cósmica, entre as galáxias quase infinitas, dentro da Via Láctea, como um planeta peculiar do nosso astro-sol, surgiu e nos sustenta este globo do mundo, que chamamos de Terra e que constitui a nossa casa (em grego, oikos, de onde vem eco-logia, bem como eco-nomia, etc.). Portanto, em vez de uma globalização cósmica, que mal conseguimos influenciar (pelo menos por enquanto), podemos e devemos falar de uma globalização ecológica, que se expressa no cuidado com o "globo" Terra, mãe da qual nascemos e lar em que nós, humanos, vivemos.
— Em certo sentido, nós, humanos, somos um risco para a vida do planeta Terra, pois podemos contribuir para sua degeneração e morte. Atualmente, após as grandes descobertas geográficas concluídas no século XVI, sabemos que nosso mundo é limitado, um pequeno planeta habitável girando em um sistema maior de sóis e galáxias, onde talvez existam outros seres razoáveis, com os quais um dia poderemos nos comunicar. Mas o problema neste momento não é colocado por possíveis seres de outras galáxias, mas sim por nós mesmos, humanos, introduzindo germes acelerados de morte no planeta Terra. Nesse sentido, o surgimento do homem no planeta Terra tem sido um elemento de maldição, uma aceleração da morte, a menos que ele se transforme (que nós transformemos por elevação/ressurreição).
— Mas, em outro sentido, podemos e devemos ser uma bênção para o planeta Terra, um caminho de abertura para a realidade original, isto é, para Deus. Por um lado, todos os processos da vida na Terra levam à morte, acelerada pelos outros. Mas, por outro lado, segundo a confissão cristã, a presença do homem constitui para o mundo um princípio de ressurreição, isto é, de vida que transcende a morte. Por um lado, o homem introduziu sua morte na terra. Mas, por outro lado, ele foi capaz de introduzir e introduziu um germe de transformação (vida futura), como continuarei a indicar. Parece que a vida humana não pode mais ser mudada (não pode evoluir) por meio de mudanças genéticas; mas pode evoluir/ascender de forma virtualmente infinita por meio de uma mudança/elevação vital (integran) que se realiza na forma de ressurreição, ao longo de uma linha de transformação que Paulo comparou em 1 Coríntios 15 à transformação das plantas (assumindo assim que somos como uma semente, anunciando e preparando um tipo diferente de humanidade).
Uma espécie peculiar. Genoma e cultura vitais
No processo da vida na Terra, nós, seres humanos especiais, emergimos por meio de mecanismos de evolução que estamos começando a compreender com alguma precisão. Emergimos e nos expandimos pelo mundo (por cerca de cem mil anos), capazes de desenvolver uma inteligência racional que nos coloca diante do mundo como um todo, descobrindo-nos como imagens de Deus, portadores de Sua Presença.
Supõe-se que a "evolução genética" como tal (por si só) se estabilizou nos humanos, de modo que eles constituem o último elo de uma cadeia evolutiva. Isso significaria que, geneticamente, não seremos mais capazes de criar novas espécies, mas continuaremos a existir em nossa forma genética atual, embora novas técnicas de engenharia genética possam levar ao surgimento de novas divisões intra-humanas, com consequências, por enquanto, imprevisíveis e muitas vezes destrutivas, pois tendem a negar o valor gratuito da vida, dando origem a formas de vida para-humanas a serviço do capital ou do mercado. Seja como for, por enquanto, a base da nossa globalização reside naquele preciso e precioso sistema genético que chamamos de genoma humano, que nos torna uma única raça, composta por homens e mulheres capazes de coabitar e procriar, dentro do grande processo da vida, aberto a diferentes formas de multiplicidade e unidade.
— Diferença humana. O processo vital que se desenrola e ocorre por meio da geração-corrupção (nascimento-morte) e da evolução (mutações e seleção genética) aparentemente se desenvolvia pacificamente em espécies anteriores, produzindo os resultados que vemos (que nós mesmos somos). Mas, ao chegar aos humanos, mudou de nível, porque novos fatores de individualização e inteligência foram inseridos em sua própria evolução. As regras anteriores da evolução por tentativa e erro, mutação e seleção genética entraram em crise ou foram suspensas, de modo que um novo elemento agora intervém, o que definiremos como individualidade pessoal.
— Multiplicidade e unidade. Carregamos o mesmo genoma; somos todos parentes (irmãos) e, portanto, podemos nos comunicar de forma vital (DNA). Além disso, desenvolvemos outros meios de comunicação verbal (palavras) e intencional (vontade, trabalho), que nos definem e nos distinguem e que podem ser expressos de forma positiva, em tolerância criativa e enriquecedora. Mas esses meios também podem nos levar a um tipo de confronto sanguinário, resultando na destruição em massa da humanidade ou em um tipo de sistema imposto a todos eles. Dessa forma, a riqueza da multiplicidade humana (que é a coisa mais bela e surpreendente que surgiu até agora no mundo) pode se tornar um princípio de morte, seja pela violência total (uma luta de todos contra todos), pela manipulação genética (os humanos poderiam mudar sua fórmula de nascimento e se tornar outra coisa, humanoides não livres), ou pela destruição do espaço vital, por uma ruptura ecológica irreversível.
Não viemos de um passado fácil. É bem possível que nossa espécie (sapiens-sapiens) tenha exterminado e talvez devorado, em uma espécie de explosão violenta e/ou sacrifício sagrado, outros hominídeos de tipo menos evoluído, como os neandertais. Nesse contexto, alguns teóricos, como S. Freud e R. Girard, falam de um assassinato fundador de toda cultura. Alguns teólogos ousam situar nesse contexto o pecado original dos seres humanos, que nasceram pela generosa casualidade da vida, mas cresceram matando seus concorrentes. Seja como for, o fato é que a existência humana no mundo está ameaçada, não por agentes externos (outros seres vivos terrestres ou extraterrestres), mas por eles mesmos. Podemos matar uns aos outros, destruindo a vida no planeta.
A grandeza e o perigo do homem. Diante de um possível suicídio universal. A vida é bela, exuberante: deu origem a uma abundância quase ilimitada de espécies vegetais e animais que povoam o planeta. Mas, ao mesmo tempo, é elitista e intolerante: milhares ou milhões de espécies desapareceram porque não se adaptaram ou perderam a oportunidade na batalha da evolução. Nesse nível, podemos e devemos afirmar com Nietzsche que a vida não tem "moral". Ela se eleva acima do bem e do mal, aparentemente movida por uma imensa "vontade de poder", que a faz deslizar incessantemente, sem se cansar, sem cessar em sua determinação de continuar existindo.
Sobre essa base cósmica e vital, a humanidade emergiu como um ser capaz de um nível mais elevado de tolerância: relaxado, aberto à Presença (a presença do divino, a presença ou o contato face a face), capaz de dialogar entre si e de se adaptar, por meio da tecnologia, às mais diversas circunstâncias de seu ambiente de vida (climas, empregos, alimentação, etc.). Assim, devido a um paradoxo que marca sua história, muitos seres humanos e grupos humanos tenderam a se tornar intolerantes e violentos. Em vez de dialogar uns com os outros, muitos se confrontaram desde o início, transformando sua história em um processo de luta e opressão. Em vez de humanizar seu ambiente, muitos se tornaram predadores de seu ambiente de vida. Esse duplo risco (luta mútua e destruição ecológica) define em grande parte a presença da humanidade no mundo.
Interpretamos o cosmos e o processo da vida a partir de uma perspectiva antrópica, como se toda a realidade, e especialmente o desenrolar da evolução das espécies, tivesse um significado unitário, culminando no homem (segundo a linha de Gênesis 1:28-29). Essa perspectiva nos parece positiva em princípio, mas levanta uma série de questões e questionamentos que fundamentarão tudo o que se segue. Certamente, as formas de existência do mundo estão, de alguma forma, a serviço do homem. Mas isso não significa que devam estar sujeitas a interesses comerciais, produção instrumental e consumo, pois existem outras formas de serviço e comunicação que são muito importantes: atividades intelectuais, relacionamentos românticos, fruição estética...
Um ser especial: sabe que nasce, sabe que morre. Nesse contexto, definimos o homem como um ser natal e mortal: ele é o único ser vivo que sabe que nasce, o único que sabe que morre. Vista de uma perspectiva cósmica, a morte biológica faz parte do desenrolar da vida, uma vez que, na cadeia alimentar, alguns seres vivos se sustentam de outros, e novos indivíduos só sobrevivem se os antigos morrerem. Nesse sentido, os malsucedidos e excluídos dessa cadeia alimentar fazem um favor aos que prosperam: somente por meio do sacrifício dos indivíduos e grupos menos aptos a evolução biológica pôde se expandir.
Vista dessa perspectiva, a morte faz parte do processo de expansão e globalização de uma vida em que os vencedores sobrevivem e avançam às custas dos derrotados e "devorados"; mas, em última análise, os vencedores também perecem, às mãos de uma morte democrática que se impõe a todos. Diversas religiões reconheceram isso e o expressaram simbolicamente por meio de ritos sacrificiais, nos quais a morte de uma vítima serve para desdobrar a vida. Nesse contexto, podemos distinguir três níveis:
—Sistema biológico: a espécie vive, os indivíduos morrem. Os seres vivos pré-humanos (plantas e animais) carecem de individualidade estrita: portanto, em um sentido radical, eles não podem morrer, porque não nascem, mas fazem parte do continuum da vida. Eles não são nem natais nem mortais, pois não são Autopresença; carecem de identidade estrita, individualidade pessoal. Portanto, a morte dos indivíduos está a serviço de toda a vida, que continua a nascer e avançar (ou rolar) sem saber, embora pareça carregar um Desígnio do qual ela própria desconhece. A rigor, neste contexto, não se pode falar de direitos específicos a seres vivos isolados, pois eles não são capazes de direitos, mas os têm a serviço da vida humana (isto é, de toda a Vida).
— Os homens, por outro lado, são seres pessoais, portanto, vivem e morrem não apenas como espécie, mas sabem que morrem e querem viver como indivíduos, portanto, têm valor absoluto, cada um em si (embora dentro do todo), pois são Autopresença em relação. Portanto, a morte é um problema para eles, ou melhor, um mistério, porque cada indivíduo (homem ou mulher) é um sinal pessoal de Presença, uma janela nova e única para o absoluto. Isso significa que cada homem é um absoluto, e sua morte é destruição estrita, a menos que seja vista como um caminho aberto para um tipo superior de vida, como várias religiões afirmam ou postulam.
— O sistema tende a ignorar os indivíduos humanos. Contrariamente ao impulso vivificante das religiões, que buscam respeitar o valor de cada ser humano (como um ser de Presença), o sistema econômico-político da modernidade tende a vincular todos os seres humanos por meio de um aparato de produção e consumo que possibilita a abundância de muitos, mas, na verdade, leva à opressão de muitos mais (os marginalizados e excluídos) e à desumanização de todos. O sistema tende a usar os seres humanos como tais, substituindo-os por uma espécie de "espírito objetivo" que se identifica com uma forma de produção e progresso separada da vida.
Dessa forma, o triunfo do sistema, com sua dinâmica de produção e consumo, leva à subjugação e à morte dos indivíduos concretos que coloca a seu serviço. Dessa forma, ele triunfa e se expande, espalhando sua morte por toda parte, ou seja, impedindo os indivíduos de desenvolverem uma existência valiosa em si. Dessa forma, o sistema passa a se apresentar como um ídolo, um falso Deus que sacrifica indivíduos em seu próprio benefício, destruindo o próprio ambiente da vida ou colocando-o a serviço dos interesses dos privilegiados, e não da alegria e do desenvolvimento de todos.
Eugenia, eutanásia
Parece que, em um nível, o processo do sistema é imparável: caminhamos para um desenvolvimento cada vez maior de redes de racionalização econômica e social, impostas aos indivíduos, a ponto de alguns afirmarem que o tempo apocalíptico da morte há muito anunciada está chegando, com a destruição da própria natureza. Mas, em outro nível, colocado a serviço da comunicação pessoal com a vida, o sistema moderno, com seu vasto potencial técnico, pode se tornar um princípio de gratuidade criativa para a humanidade, se verdadeiramente se colocar a seu serviço.
— Eugenia (=bom parto). Os seres humanos nasceram por meio de um processo genético que faz parte da natureza e continuarão a nascer assim em um nível. Mas esse processo é atualmente marcado por técnicas genéticas que oferecem a possibilidade de regular certos aspectos do processo biológico de fertilização e dos primeiros momentos de desenvolvimento do sêmen fertilizado. Essa regulação eugênica pode oferecer resultados muito positivos, colocando-se a serviço da saúde e da livre comunicação entre os seres humanos, não como um substituto para o "processo de nascimento", mas como um auxílio para torná-lo mais livre, mais alegre, mais humano. No entanto, manipulada pelo capital produtivo e regulada por um mercado monetário, ela pode ter efeitos destrutivos sobre a espécie como tal, tornando os seres humanos não mais seres de Presença e Comunicação na gratuidade (pessoas nascidas pela graça de outros), mas sim artefatos fabricados e dirigidos de fora de si mesmos, comprados e vendidos a serviço dos outros.
— Eutanásia (=boa morte). Os humanos estabeleceram relações sociais apelando ao poder de matar outros humanos de forma programada (ritual e social). Diz-se que a humanidade existe desde o início da fala, da possibilidade da comunicação pessoal. Mas, em outro sentido, podemos afirmar que a humanidade existe desde o momento em que os indivíduos foram capazes de matar e mataram outros, simbolicamente, para se sustentar. Certamente, a humanidade pode viver à custa dos outros (matando-os para se realizar), mas também pode viver, e de fato viver, fazendo os outros viverem e compartilhando a vida com eles.
Todos os outros seres vivos também nascem e se alimentam uns dos outros... mas o fazem de maneira "natural" (por seu próprio modo de ser, por sua natureza). Os homens, por outro lado, podem programar o processo de nascimento e morte. Os homens, por outro lado, o fizeram, organizando seu nascimento de uma certa maneira e matando-se uns aos outros "em ordem"... mas também podem dar a vida livremente, uns aos outros e aos outros, podendo assim viver neles, como disse João da Cruz com muita precisão: "a alma (o homem) vive mais onde ama do que no corpo onde anima" (CE 8, 3). De acordo com isso, os homens podem matar os outros, para assim viverem eles mesmos, ou amar os outros, vivendo assim neles/com eles.
O homem, um ser que morre e sabe disso
A partir desse fundamento, a morte pode ser compreendida, e é compreendida. O homem “habita” (cria um lar, existe) onde ama; não está encerrado em um corpo individual que “anima”; sua alma é uma comunhão de almas por amor… ou pode se tornar um inferno de morte, vivendo assim, programado à custa dos outros, como enfatizou o judeu S. Freud ao afirmar que o homem é movido (definido) por dois princípios, que são eros (viver nos outros por amor) e thanatos (matar os outros por egoísmo). Nesse sentido, pode-se falar de duas mortes (das quais fala o Apocalipse, reinterpretando o sentido da morte como destruição, que aparece em Gênesis 2-3: no dia em que comeres da árvore do conhecimento da vida e da morte, morrerás).
— A primeira morte (biológica) serve à evolução da vida e à vida da espécie. Nesse sentido, nós, humanos, somos mortais por natureza. O processo biológico foi e é mantido à custa da morte individual, mas conseguiu elevar os humanos, como seres de liberdade, a um planeta de vida equilibrada e bela, que poderia ser interpretado como um espaço de revelação de Deus, um paraíso. Todos nascemos, vivemos e morremos num contexto de desenvolvimento da vida, interligados uns aos outros.
— A segunda morte consiste em viver à custa dos outros, isto é, matá-los para nos superarmos, para que nós mesmos morramos, destruindo os laços de amor que nos unem a toda a vida. Isso significa que morremos e "acaba": não podemos mais viver/ressuscitar nos outros. Segundo a já mencionada máxima de João da Cruz, quem ama já vive nos outros, ressuscitou neles, venceu a maldição da morte.
Paradigma tecnocrático e crise ecológica
A maneira como entendemos a relação do homem com o mundo mudou. Anteriormente, a natureza dominava o homem, com os riscos que isso acarretava, mas também com seus valores, de modo que, segundo B. Espinosa, poderia se dizer: " Deus, sive natura: Deus, isto é, a natureza". Mas, nos últimos séculos, o homem tendeu a colocar sua própria tecnologia ou poder ativo (tecnocracia) acima da natureza.
Três ídolos. De acordo com isso, o poder real supremo não reside mais em Deus (teocracia) ou na natureza (cosmocracia), visto que vivemos como se Deus não existisse. Nem reside no povo (democracia), visto que este continua a ser controlado de fora. O poder real reside no capital monetário e no mercado, interligados por uma empresa produtiva de tipo tecnocrático, de modo que, nesse sentido, podemos falar de um paradigma tecnocrático.
— O primeiro ídolo é a corporação tecnocrática, que produz bens de consumo, como se o homem vivesse para fazer coisas e consumi-las. Certamente, o poder produtivo da corporação é bom, servindo à vida. Mas a Bíblia sabe que o homem pode acabar escravizado pelas coisas que produz, isto é, por ídolos que são obra de suas próprias mãos. Nos últimos séculos, os negócios cresceram, e o homem tornou-se capaz de produzir inúmeros bens, que no final, se não estiverem a serviço de sua própria vida, acabam por destruí-lo (ou destruir a vida do planeta).
— O segundo ídolo é o capital, isto é, o dinheiro, transformado em símbolo de tudo o que o homem produz. Em si mesmo, o capital não existe, não tem entidade (não alimenta, não cura, não enamora...), mas o homem o criou como símbolo de suas posses e de suas produções, transformando-o em um "deus" a quem se submete e com o qual pode fazer muitas coisas, especialmente produzir, comprar e vender.
— O terceiro ídolo é o fórum do mercado, onde todas as coisas produzidas por um tipo de poder tecnocrático são compradas e vendidas por dinheiro (capital), que assim aparece como um “deus produtor” que, como mostrarei, tende a destruir a vida e os bens da natureza.
Não estamos mais em uma era cosmológica e sagrada, na qual, em princípio, acreditava-se que a ordem do mundo e da sociedade era um sinal direto de Deus. Passamos pela modernidade e, dentro dela, buscamos criar, e criamos, um modelo do mundo à nossa imagem e semelhança, como demiurgos ou pequenos deuses, agora cumprindo consistentemente o que Eva pretendia no início: assumir o controle das fontes da vida (do mundo e seus recursos, do processo genético e suas consequências).
Percorremos um longo caminho, tornamo-nos modernos, descobrindo no final que esta tentativa, sem dúvida fascinante e irreversível, de produzir e dominar o mundo, revelou-se perigosa: corremos o risco de nos destruirmos, de modo que no fim do caminho encontramos a morte (como Deus tinha dito aos primeiros homens, se comessem da árvore proibida do conhecimento do bem e do mal: Gn 2-3).
— Antigamente, girávamos em torno da natureza, que se erguia diante de nós, pronta e acabada, de modo que tínhamos que nos limitar a conhecê-la, ajustando-nos aos seus ritmos. O homem estava imerso em um mundo externo fixo e acabado e não podia mudá-lo. As coisas eram como eram: formavam uma espécie de "abóbada" ou grande círculo perfeito onde os homens se limitavam a residir passivamente. Não poderia haver ecologia ativa.
— Agora, não somos mais meros receptores que recolhem a verdade do mundo externo com sua "compreensão paciente" (como já foi dito de Aristóteles a Averróis e São Tomás), mas devemos transformar o próprio mundo com nossos pensamentos (Kant) e ações (Marx). Portanto, a ecologia começa a ser uma tarefa para a humanidade.
A humanidade é responsável por seu ambiente cósmico, pois a Terra e suas matérias-primas lhe pertencem. Mas, ao mesmo tempo, deve continuar a lembrar que a Terra é uma dádiva que a precede, um tesouro que supera todas as suas tarefas, um presente. Não a criamos, ela não nos pertence, mas ela nos precede e nos fundamenta, com sua bondade e seus riscos. Essa posição contraria uma interpretação gnóstica da religião, que interpreta o mundo como uma prisão na qual estamos acorrentados (Platão), como um vale de lágrimas ou sofrimento (como diz um ditado cristão medieval), nem como aparência ou maya sem realidade (certas formas de hinduísmo).
Segundo a Bíblia, o mundo é bom em si mesmo, como expressão de Deus e um lugar de risco e beleza que devemos aceitar, respeitar e aprimorar a serviço da vida de toda a humanidade. Nesse sentido, a ecologia concebe o mundo como um oikos, ou lar para a humanidade; ela não se preocupa com o mundo "em si", mas sim com sua bondade para aqueles que o contemplam (Deus e a humanidade). Nós, portanto, somos o sujeito do mundo.
— O sistema tecnocrático atualmente dominante não conhece Deus, nem respeita o mundo, nem valoriza a vida humana como “infinita”, mas transforma tudo em objeto de fabricação e mercado, a serviço do capital. Portanto, os perdedores (espécies extintas, povos e indivíduos marginalizados...) parecem estar fora dos cuidados de Deus. Seriam o “preço” que o progresso deve pagar, como um resíduo necessário que é expulso para que o todo fique limpo. Nesse sentido, estabelecer-se-ia uma ecologia dos vencedores, ou seja, a negação de uma ecologia “divina” a serviço da humanidade. A isso, a preocupação ecológica, a serviço da vida humana, deve opor-se um paradigma tecnocrático de tipo capitalista e mercantil, como se só tivessem valor as coisas que podem ser fabricadas, compradas e vendidas a serviço dos donos do capital.
Cinco bombas, cinco riscos de morte.
Antes, não podíamos, não sabíamos como, não tínhamos a possibilidade de suicídio cósmico. Agora a temos. Entramos no que alguns chamaram de "pensamento de Deus", não para dizer "deixe estar" e criar a beleza e o poder dos vários elementos da Terra (como vimos em Gênesis 1), mas para provocar uma espécie de dominação social e material que poderia nos levar à destruição. Não sabemos se poderia haver um "dia seguinte", não sabemos se a vida poderia recomeçar seu ciclo, levando ao pensamento (neste planeta ou em outros). Mas nossa história concreta teria terminado.
- Bomba atômica, risco de morte cósmica, nos moldes de Gênesis 2-4: "No dia em que comeres da árvore do conhecimento do bem e do mal, nesse dia morrerás." No dia em que tentarmos explorar as possibilidades do nosso conhecimento, aplicando-o à estrutura atômica da realidade, nesse dia pereceremos. Vivemos, segundo essa dúvida, em um mundo ameaçado. A sabedoria da natureza nos sustentou até o momento presente. Não sabemos se a sabedoria da nossa cultura será capaz de nos sustentar no futuro, a menos que mudemos qualitativamente.
- Risco Antropológico da Bomba Biológica. Até agora, o processo de evolução biológica se desenrolava por si só, como se uma força interna (que podemos chamar de divina) guiasse as mutações genéticas, expressas externamente por meio de processos de acaso e necessidade. Bem, agora descobrimos que podemos penetrar com nossa ciência no interior desses processos, causando mutações, selecionando mudanças genéticas e influenciando não apenas o desenvolvimento da vida vegetal e animal (criando organismos transgênicos e clonando animais), mas também a vida humana, com as possibilidades e os riscos que isso implica.
- Bomba social, grande confronto. Junto com o terror atômico e o controle genético, a bomba do confronto social generalizado poderia explodir. Os privilegiados do sistema se defendem dizendo que o terror só pode ser detido pela força: mais polícia, mais prisões, mais segurança externa. Mas isso não resolve o problema; ao contrário, o amplia e aprofunda. A humanidade só pode emergir e se sustentar em condições de liberdade. Se o controle do sistema se tornasse absoluto, o terrorismo dos marginalizados cessaria, mas também poria fim à liberdade e à vida humana de todos os homens e mulheres da Terra.
- Bomba ecológica. Matando a vida do Planeta. Esta é a verdadeira bomba ecológica. Até agora, a Terra elevou-se no nível da vida para alcançar a consciência e a liberdade humanas. Uma força imensa que alguns de nós acreditamos vir de Deus, vinda da própria raiz do cosmos, nos fez crescer, assumir a liberdade, viver em um nível de consciência. Mas com a vida humana, cresceram o poder e a violência mútua, o egoísmo de usar os dons da Terra para nossos caprichos, até o ponto de destruí-los, através da bomba que chamamos de ecológica. Não podemos romper a "abóbada" do céu com tiros de canhão, que a Bíblia interpretou como uma capa protetora, mas podemos aquecê-la e perfurá-la com emissões de gases que produzem um efeito estufa, que não só aquece a atmosfera, mas também a "polui" cada vez mais, transformando-a em um espaço irrespirável. De modo que, se continuarmos assim, chegará o dia em que não conseguiremos respirar, de modo que a Terra se tornará um inferno...
- Bomba pessoal. Suicídio, cansaço da vida. De que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida? (cf. Mt 16,26). Esta palavra deve ser entendida não apenas num sentido religioso transcendente, mas num sentido vital muito concreto. Podemos ter quase tudo e perder o gosto pela vida, não só pelos valores emocionais, mas também pelos valores artísticos e vitais, pela água, pelo vento, pela natureza, no sentido do Cântico das Criaturas do Irmão Francisco. O maior risco neste mundo é o cansaço da vida, que se manifesta na necessidade de medicamentos e medicamentos consumidos, no número de suicídios cometidos.
Não se trata de dominar tecnicamente o mundo, mas de aprender a apreciar sua beleza, reconhecendo dia a dia o valor da vida e bendizendo a Deus por isso. Deus está presente e ativo no desenvolvimento e na vida concreta dos seres humanos, que se sustentam não apenas por desejo biológico e outras razões materiais ou familiares, mas também porque eles próprios escolhem fazê-lo, isto é, porque querem. Na realidade, no momento presente (2024), eles poderiam negar a vida e se matar (em nível individual e social, por meio do suicídio e da destruição da espécie).
Nós, homens, poderíamos renunciar à vida (suicidando-nos) ou transmitir a vida (sem necessariamente renunciar ao sexo), permitindo que a espécie humana desaparecesse... Por isso, na realidade, se eles continuam (se nós continuamos) a transmitir a vida e a viver, é porque queremos. O próprio fato de haver pais que dão a vida (da Vida de Deus) e que livremente geram, semeando e acolhendo novos seres humanos, numa liberdade generosa e arriscada, demonstra que, no fundo, mesmo que não o digam conscientemente, confiam (nós confiamos) no Deus da Vida que se expande e doa pela graça.
Bem, se isso mudar, se homens e mulheres perderem a alegria de viver e se sustentarem apenas de forma "artificial", apegando-se às coisas, querendo apenas desfrutá-las, apoderando-se de tudo à força, acabarão escolhendo a morte (suicídio direto ou indireto). O Deus bíblico deseja a vida da humanidade. Mas se persistirmos, por egoísmo e violência, nós, os "poderosos" do mundo, por sede de dominação e desejo de poder, podemos destruí-lo, matando-nos, como a Bíblia sabia.
Vivendo com risco. O desafio da vida
Neste contexto, inicia-se uma nova etapa na história: pela primeira vez, a humanidade como um todo pode destruir a si mesma (nos níveis cósmico, pessoal e social) ou pode escolher conscientemente a vida. Isso significa que as velhas respostas não são mais suficientes. Não podemos traçar caminhos para o futuro com ideias e técnicas sociais que nos serviram bem nos tempos modernos, mas que nos levaram à situação atual. Com o tipo de ciência e política, com a forma de educação dos séculos anteriores, tal como culminou no sistema capitalista, corremos o risco de nos destruirmos.
Por essa razão, muitos homens e mulheres começaram a pensar que a humanidade não tem futuro. Ela enfrenta desafios que não consegue resolver com as formas de pensar e agir adotadas até agora. Isso significa que precisamos implementar formas exemplares de renúncia e criatividade discursiva e social, com o auxílio de antigas tradições religiosas.
‒ Renúncia, um princípio de pobreza. A modernidade nos disse "ousar" (Kant), e nós ousamos, exploramos, criamos novas formas de ciência e economia, que de fato foram colocadas a serviço dos vencedores do sistema. Mas agora descobrimos que não podemos explorar todas as nossas possibilidades a partir de uma perspectiva racional, buscando sempre o nosso próprio benefício particular, absolutizando o nosso modo de pensar. No dia em que quisermos comer a "maçã do bem e do mal", tornando-nos donos da realidade, todos nós acabaremos nos matando. Agora, devemos acrescentar: ousar renunciar. Se não renunciarmos a um tipo de violência atômica, à manipulação genética e ao confronto social (ligado ao sistema capitalista e ao império com os grandes Estados-nação que o cercam), todos nós acabaremos nos matando.
— A fraternidade, a alegria do encontro com os outros. Até agora, empregamos um tipo de racionalidade dominadora e instrumental, transformando as coisas em ferramentas a nosso serviço. Agora descobrimos que essa atitude não é suficiente e é muito perigosa... Se cada um de nós, cada um dos povos e grupos humanos, busca apenas seu próprio triunfo e razão, o desenvolvimento de sua verdade particular, todos nós acabaremos nos matando. Precisamos de um novo tipo de sabedoria, para além dos antigos julgamentos do bem e do mal, dos discursos absolutos; uma sabedoria que não seja de dominação, poder e violência sobre os outros, mas de riqueza alegre e diálogo, de pluralidade e encontro mútuo, em linha com o que tem sido o múltiplo desenvolvimento do mundo. Somente assim, na pobreza (renúncia pessoal), pode ser cultivado o máximo dom do encontro com os outros, para que Deus (a vida) nos dê novamente irmãos e irmãs, em vez de concorrentes e inimigos como agora.
— Contribuição das tradições religiosas. Acreditamos que, nessa nova busca, modelos antigos podem ser úteis, mas não tomados literalmente, mas sim a partir de sua mensagem mais profunda. Pessoas das grandes tradições culturais, não apenas no contexto judaico-cristão ou muçulmano, mas também em outros contextos, exploraram caminhos de vida muito valiosos. Portanto, a humanidade hoje enfrenta novos desafios, mas não está totalmente desamparada ou desprovida de recursos, visto que as religiões, incluindo as de Israel, descobriram e profeticamente ofereceram linhas de abertura e soluções que nos permitirão viver na Terra, se apenas ouvirmos sua voz e a concretizarmos.
Nós, homens e mulheres que vivenciamos o transe da modernidade, já sabemos que uma forma de razão que alguns chamaram de cartesiana (de espírito geométrico e domínio sobre o mundo), se lhe faltar a sutileza do amor (Pascal), pode nos levar à destruição nos três níveis mencionados (cósmico, genético e social). Portanto, devemos transcendê-la, buscando um modo de pensar mais profundo e alegre que nos permita sustentar nossas próprias vidas e desenvolvê-las com beleza e gratuidade, superando o nível da racionalidade possessiva, centrada no poder e no gozo dos meios materiais. Enfrentamos, assim, a questão e o desafio da nossa criatividade: seremos capazes de abraçar nosso potencial mais profundo de forma afirmativa, para oferecer um presente melhor aos pobres do mundo e um futuro melhor a todos os homens e mulheres do futuro? Não se trata de política econômica, mas de humanidade, da alegria de viver e da utopia.
Vivemos, portanto, imersos em um risco universal de morte. Certamente, a falta de organização e planejamento no nível econômico-administrativo é ruim, pois impede as pessoas de desenvolver os recursos da Terra, escravizando-as, em certo sentido. Mas o triunfo perfeito do sistema seria igualmente negativo, pois destrói (ou desvaloriza) as fontes da vida pessoal, impossibilitando que as pessoas se relacionem livremente, como indivíduos responsáveis, no amor afetivo, na alegria pessoal, na busca da vida. Portanto, a ecologia é inseparável do desejo e do gozo da vida, vinculados à justiça.
O princípio da ecologia. O impulso de viver, de criar a nova terra. Somos mais do que um processo puramente cósmico, mas carregamos seus traços por toda parte, feitos de confronto cósmico e fragilidade vital. Como o budismo enfatizou, nascemos dolorosamente e morremos com dor, sem saber por quê. Além disso, no caminho do nascimento à morte, a vida humana é imensamente frágil: milhões nascem doentes, ameaçados por doenças, malformados, na grande roleta de um processo vital que parece nos abandonar à própria sorte. A vida parece indiferente ao bem e ao mal, como enfatizou o livro bíblico de Eclesiastes ou Qohelet. É normal que muitos homens e mulheres se declarem ateus e se sintam fracassados na vida, preferindo rejeitá-la, exilando-se internamente e buscando um refúgio superior (nirvana) além dos desejos (em linha com um tipo de budismo). Bem, de acordo com tudo o que foi dito acima, acreditamos que só pode haver um futuro para o homem onde os homens o desejam, desejam viver e gostam de fazê-lo.
Devemos insistir na vida, não nas coisas
Certamente, o sistema tecnocrático de poder, auxiliado pelo capital racionalizado e pelo livre mercado dos poderosos, alcançou resultados espetaculares, aos quais não podemos nem devemos renunciar: é capaz de prevenir malformações infantis e curar doenças; pode organizar a economia de tal forma que haja meios de consumo suficientes para todos, corrigindo assim muitas ameaças naturais (secas, tempestades, etc.); oferece-nos meios de comunicação rápidos e eficazes, que podem facilitar os encontros entre as pessoas...
Mas, em outro sentido, esse sistema corre o risco de nos encerrar em uma teia de relações impessoais, servindo a si mesmo, consumindo e destruindo simultaneamente as fontes e os recursos naturais da vida. Portanto, devemos manter a humanidade acima do sistema, criando condições de vida na gratuidade e no diálogo que nos permitam desdobrar livremente nossa existência, compartilhá-la com os outros e, assim, oferecê-la às gerações futuras. Não queremos, nem podemos, de forma alguma negar a ciência, nem rejeitar as conquistas da modernidade, mas devemos superar o risco que elas representam, colocando a ciência e a tecnologia a serviço da vida, invertendo assim os princípios do sistema:
— Um sistema tecnocrático de poder mata os excluídos já em vida, porque não se importa com as pessoas como tais, mas apenas com o seu próprio desenvolvimento e crescimento. Não tolera a existência de indivíduos autônomos ao seu lado, nem o desenvolvimento das pessoas como tais. Dessa forma, mata (exclui) aqueles que são diferentes. Certamente, pode tolerar alguns dissidentes, mas apenas na medida em que não coloquem em risco os seus interesses. É por isso que é injusto. Somente superando essa injustiça do sistema atual é que a autêntica experiência ecológica, a vida humana no mundo, faz sentido.
O sistema acaba destruindo as fontes de vida do planeta, colocando-as a serviço de seus próprios interesses. Ele quer construir uma Torre de Babel, manipulando a vida de tal forma que acabará por destruí-la, se não conseguirmos deter sua marcha desvairada, colocando o progresso da ciência a serviço da vida humana, como pretendia o Deus do Gênesis.
Notas
[1] Pode-se falar da Terra como um globo, mas não de galáxias, que talvez formem processos ondulatórios em forma de espiral. Por outro lado, de uma perspectiva física, só podemos falar de um cosmos onde o espaço e o tempo estão ligados, numa relação interna, como indicavam as leis de Einstein. De uma perspectiva física, só podemos falar daquilo que está relacionado, formando um todo, como SW Hawking belamente evocou, dizendo que se pudéssemos elaborar uma teoria completa do cosmos, "conheceríamos o pensamento de Deus" (Uma História do Tempo, Crítica, Barcelona 1989, 224).
[2] Mas, na verdade, hoje não nos comunicamos com possíveis seres racionais de outras dimensões ou sistemas estelares (semelhantes aos anjos das religiões), nem possivelmente o faremos num futuro próximo, com métodos científicos, de modo que, de fato, dentro do tempo previsível, não temos outro lugar de habitação senão a nossa Terra, com pequenas excursões ao meio ambiente que formam planetas do sistema solar.
[3] Este não é um problema de pura teoria, mas de vida e de morte: ou encontramos um modo de superar a dialética da violência da natureza, dialogando ao serviço da vida, numa perspectiva de gratuidade e de tolerância, corremos o risco de nos destruirmos a nós mesmos, de destruir a própria vida da terra.
[4] Francis Bacon desenvolveu uma valiosa “teoria dos ídolos” (Novum organum scientiarum, 1620), distinguindo três tipos básicos (idola tribu, idola specus, idola fori: da tribo social, da caverna platónica e do ouro ou mercado), que de alguma forma respondem aos aqui apresentados.
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