06 Agosto 2025
"Quem foi habituado a ser inamovível temerá qualquer balancear do barco da Igreja. Prefere nunca sair do porto seguro onde se petrificou ancorado. Quer que a memória das reformas de Francisco caíam no esquecimento e se 'volta à normalidade anterior'. Padres clericais se negam a assumir uma Igreja em saída e não assumem novas rotas e mapas de navegação, pois crê erroneamente que a função precede a missão", escreve Fernando Altemeyer Junior, assistente doutor na PUC-SP, em artigo publicado em seu perfil no Facebook, 04-08-2025.
Os desafios pastorais se multiplicam em pleno século 21. As Igrejas cristãs precisam de ministros e ministras para cumprir a sua missão imprescindível e central que é evangelizar. As comunidades cristãs são sustentadas pela graça do Espírito, pelos sacramentos e pela unidade forte entre os missionários, os diáconos, no futuro também diaconas, e o pastoreio amoroso dos bispos, unidos todos no serviço da Palavra, na profecia e na comunhão. As ministras e os ministros desde as origens na Igreja Apostólica foram ordenados ou sagrados com a imposição das mãos de um bispo local, em comunhão com os patriarcas e com a igreja-mãe de Jerusalém e em seguida, com a Igreja de Roma, aos pés de Pedro e Paulo. Os bispos não eram impostos, pois escolhidos pelo clero local e recebidos na província pelo colégio episcopal formado apostolicamente. Com o passar dos anos a igreja episcopal irá multiplicar muitos ministérios apostólicos, locais e alguns específicos de cunho missionário. O apostólico começava a entrar em conflito com a burocracia e o modelo piramidal do império romano e de seu direito civil (dioceses, paróquias). Com o surgimento de novos modos de viver a fé surgiram os monges contemplativos e um mosaico de comunidades religiosas de vida em comum, com figuras originais como Santo Antão e Santa Efigênia.
Ao final do século III e em parte do século IV emergem na história católica a figura dos atuais presbíteros com tripla função: a pastoral, a catequética e a litúrgica, seguindo o formato clerical inspirado no judaísmo, e atendendo a expansão das dioceses e uma presença no mundo rural e pagão. Depois de séculos declinará o diaconato que teve marcas importantes nas Igrejas primitivas. Desapareceria a figura de homens casados como parte do colégio de presbíteros na Igreja latina e também se apaga a presença das mulheres diáconas das Igrejas em estilo paulino. Surgem tipos históricos diversos de presbíteros conforme os múltiplos modelos de igreja surgidos na história e nos diferentes continentes. Nascem e morrem padres monges, padres casados, padres celibatários, padres-príncipes, padres-camponeses, padres da cristandade, padres mendicantes, padres religiosos, padres seculares, padres urbanos, padres apologetas, padres professores, padres triunfalistas, padres curandeiros, padres militares, padres clericais, padres confessores, padres cientistas, padres artistas e padres pastores ao estilo do peregrino Jesus. Cada mudança estrutural na sociedade deixa em crise o presbítero do modelo antigo e antecipa o parto de novo modo de ser presbítero, diácono e bispo.
Estamos participando nos últimos 60 anos do parto de um novo tipo de ministro (e ministra) não clerical. Já se pode vislumbrar um novo rosto presbiteral mesmo que a hegemonia seja clerical. Mons. Carvalheira percebia em setembro de 1966 a crise do antigo modelo e o parto do novo: “Não é fácil, pois, a muitos padres situar-se, exatamente, com relação às reformas atuais da Igreja. A parte do clero, formada no espírito do triunfalismo, não pode entender facilmente a necessidade de mudança” (Mons. Carvalheira, REB, v. 26, fasc. 3, setembro 1966, p. 531). A reforma da Igreja proposta pelo papa Francisco e agora seguida por Leão XIV exige esse novo presbítero em novas configurações de ministérios eclesiais amplamente participativos e colegiais. Nem todos estão preparados e talvez a maioria atual dos clérigos nem queira fazer essa conversão. Entretanto, o Povo de Deus anseia por um padre pastor e acolhedor, movido pela compaixão.
Quem foi habituado a ser inamovível temerá qualquer balancear do barco da Igreja. Prefere nunca sair do porto seguro onde se petrificou ancorado. Quer que a memória das reformas de Francisco caíam no esquecimento e se “volta à normalidade anterior”. Padres clericais se negam a assumir uma Igreja em saída e não assumem novas rotas e mapas de navegação, pois crê erroneamente que a função precede a missão. Alguns membros do clero pensam de forma monolítica, autoritária e temem a colegialidade, o modo sinodal e o diálogo com as forças vivas do laicato. Sem entender a época de mudanças na qual estão mergulhados se fazem de surdos aos desafios, e pretendem viver encastelados nas paróquias e em movimentos rígidos de cristandade, que já mostrou claramente que está morta. Há três pontos do modelo obsoleto vigente que precisam ser vencidos: o juridismo exclusivista, a intolerância clerical e o triunfalismo eclesiástico. O anterior papa Francisco alertou: “Ninguém é chamado unicamente para uma região determinada, ou para um grupo ou movimento eclesial, mas para Igreja toda e para o mundo” (Papa Francisco, Mensagem para a Jornada Mundial de Orações para as vocações 2016).
A irrupção de novos ares teológicos e pastorais durante e depois do Concílio Vaticano II repropôs a figura e a missão do novo tipo de padre para esse novo mundo em mutação. Não será mais o profissional da religião, comparável a médicos ou advogados. Não será um administrador de coisas sagradas ou um homem de convenções legais e senhor feudal de sua paróquia.
O padre que vive o Espírito e a letra do Vaticano II é o servo da Palavra de Deus primordialmente. Ele é também o homem do louvor de Deus, e um irmão da humanidade, em particular irmão dos pobres e dos vulneráveis que se apresentam em seu cotidiano e a quem ele busca em sua vida pelas ruas e bairros das cidades. Assim diz o documento conciliar sobre os padres: “Os presbíteros do Novo Testamento não poderiam ser ministros de Cristo, se não fossem dispenseiros e testemunha de outra vida que não a terrena, mas nem sequer poderiam servir à humanidade, caso se mantivessem alheios à sua existência e condições de vida” (Presbyterorum Ordinis 3). Esse novo tipo de presbítero terá um coração imenso e não um empedrado coração de funcionário que manipula rubricas. O segredo é este: “O ministério da Palavra antecede o da Eucaristia e dos sacramentos, e, por fim, vem o da direção do povo de Deus” (Mons. Carvalheira, REB, v. 26, fasc. 3, setembro 1966, p. 535). O padre dos novos tempos precisa ser profeta, pregador, amigo dos pobres, sacerdote sem magia e pessoa eucarística e mística. Não deve impor medo aos seus paroquianos e menos ainda aos não-cristãos. Deve ser profundamente ecumênico e com ampla cultura e mente aberta. Deve propor amor e diálogo a todos. Amar e deixar-se amar. O papa Francisco afirmou na mensagem aos vocacionados em 2016: “Toda vocação na Igreja tem como origem o olhar pleno de compaixão de Jesus. A conversão e a vocação são as duas faces da mesma moeda e se exigem mutuamente sem cessar a cada um de nos, em nossas vidas de discípulos missionários” (Papa Francisco, Mensagem para a Jornada Mundial de Orações para as vocações 2016).
O papa Leão XIV proclamou em maio de 2025, recém-eleito para bispo de Roma: "A Igreja tem grande necessidade de vocações sacerdotais e religiosas! E é importante que os jovens e as jovens encontrem, nas nossas comunidades, acolhimento, escuta e encorajamento no seu caminho vocacional, e que possam contar com modelos críveis de dedicação generosa a Deus e aos irmãos” (Leia aqui).
Em 2025, temos 493 bispos vivos (321 na ativa e 172 eméritos), 22482 presbíteros diocesanos e religiosos somados e 6.895 diáconos permanentes casados de 278 dioceses, ordinariatos, eparquias e prelazias brasileiras. Existem atualmente 8.041 seminaristas maiores nas várias dioceses preparando-se nos próximos sete anos para ser presbíteros. Há número expressivo de homens casados estudando nas Escolas Diaconais para receber a ordem do diaconato. Deverão ser nomeados nos próximos sete anos uma centena de novos bispos para fazer parte da CNBB (média de 15 por ano). Os padres e os diáconos unidos aos bispos diocesanos são os ministros que servem ao Povo de Deus por opção e vocação do Espírito de Deus. Vivem movidos à Eucaristia, como trigo moído para alimentar o povo de Deus pelo testemunho e entrega de vida em 12618 paroquias e 50159 centros de atendimento pastoral além de 3325 escolas. Querem ter cheiro de ovelhas e não ser lobos vorazes e mercantilistas. Um ministro presbiteral, episcopal ou diaconal vive do amor imenso de quem vive do Cristo Jesus, por Cristo e com Cristo. Um dado comparativo mostra que no ano 1952 quando nascia a CNBB havia 6349 presbíteros no Brasil. Houve um aumento de 3,5 vezes.
Padre Marins faz bela síntese de um padre formado na ação: “O ferreiro se faz ferreiro praticando seu ofício. O apóstolo se faz, sendo apóstolo. Para o sacerdote, por exemplo, não existem duas vidas, uma antes da ordenação em que não era apóstolo e outra depois, quando começa a ser apóstolo. Só existe uma única vida, a de apóstolo, com duas etapas “antes e depois da ordenação” (Padre José Marins, A escola em missão, Pro Manuscripto, São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 40). O evento do Concílio Vaticano II, de 1962 e 1965 foi e é um imenso divisor de águas. Mudará os rumos da Igreja e a própria compreensão da identidade do ministério eclesial e do serviço necessário aos novos tempos. De certa forma podemos dizer que após o Vaticano II brotou uma nova identidade presbiteral. Padres novos para essa Igreja renovada.
A proclamação da Palavra e a celebração da Eucaristia são os dois pontos de irrupção, convergência e de perspectiva na missão presbiteral. Em primeiro lugar, os novos padres são evangelizadores. Em segundo lugar, celebrantes com o povo de Deus da Eucaristia que é feita pela Igreja e como Igreja. Em terceiro lugar, vivem como membros do colegiado diocesano unidos ao bispo e ao povo. Não pode haver padre solitário e isolado. Seria contradição e um grave desvio de sua identidade. Padre sozinho e enclausurado deixa de ser padre. Vira ostra. Perde a razão de sua missão e de seu compromisso de vida e semeia o joio da iconoclastia e da idolatria.
Uma boa parte dos defeitos clericais está ligada à questão do individualismo e do narcisismo que ofende ao colegiado presbiteral e, que faz muitos padres se isolarem e ficarem doentes do corpo e da alma. A terapia proposta não pode ser outra que a que foi sugerida no documento de Puebla, maior comunhão e participação.
O estilo de vida requerido aos padres é a vivência das virtudes teologais na vida de um bom e santo sacerdote católico. Tudo isso só acontece se o padre viver de fé e pela fé viva em Deus na adesão pessoal, firme, decidida, livre e incondicional ao Deus que reside em seu coração. Com essa fé viva, a esperança mova o presbítero para uma vida de conversão. Recordamos a frase do papa Bento XVI: “Quem tem esperança vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova”. Mesmo cansado e vulnerável diante das turbulências o padre crê e se reanima na força do Espírito Santo. A caridade é a grande virtude do sacerdote de hoje, sem repetir modelos pré-estabelecidos. Amor novo para uma Igreja nova. Um bom padre não é o que sabe tudo ou pode tudo. Ao contrário, é aquele que é atento, terno, compassivo, acolhedor, disponível, quase um mendigo a pedir esmolas e sempre pronto a repartir. É alguém que se empenha e trabalha muito, mas sempre delegando e confiando serviços aos demais leigos, leigas, religiosas e, sobretudo seus irmãos de ministério no presbitério da qual ele faz parte como pedrinha do grande mosaico.
Temos inúmeros padres exemplares em vários ciclos históricos pelos quais passou a Igreja no Brasil. Nas origens coloniais recordamos ao padre Gabriel Malagrida, Frei Caneca, regente Antonio Feijó, Ibiapina, Cícero Romão Batista e Júlio Maria. Na época recente da ditadura militar recordamos os mártires João Bosco Penido Burnier, Antonio Henrique Pereira da Silva Neto, Rodolfo Lukenbein, Ezequiel Ramin e Josimo Morais Tavares. A lista de homens proféticos e exemplares deve vir acompanhada da memória de alguns padres profetas que foram expulsos ou banidos do Brasil pelos militares por ordem do latifúndio e de empresários de direita. Deve-se lembrar de Lawrence Rosenbaugh, Romano Zufferey, Giorgio Callegari, Vito Miracapillo, Joseph Wauthier, Jan Honoré Talpe, José Pendandola, José Comblin, Francisco Jentel, Giuseppe Fontabella, Francisco Lage. Há aqueles presbíteros que sofreram processos militares e mesmo tortura nos DOI-CODIs por defenderem os trabalhadores, aos pobres e aos camponeses. Gente que pagou caro por defender a justiça e ficar ao lado dos pequeninos como bons pastores. Eis alguns deles: Alípio Cristiano de Freitas, Francisco Lage Pessoa, José Eduardo Augusti, frei Francisco Benedetti Filho, Oscar Albino Fuhr, Affonso Ritter, Helio Soares do Amaral, Roberto Egídio Pezzi, Mariano Callegari, Carlos Gilberto Machado Moraes, Giulio Vicini, Geraldo Oliveira Lima, Gerson da Conceição, Paulo Martinechen Neto, Antonio Alberto Soligo e Jan Talpe. E como esquecer dos santos ministros como Helder Pessoa Camara, Luciano Mendes de Almeida, Décio Pereira, Joel Ivo Catapan, padre Toninho, padre Giuseppe Pegoraro, padre Agostinho Pretto, diácono João Luiz Pozzobon e tantos ricos exemplos de amor incondicional ao povo.
O desafio está lançado. Para receber a graça de um clero pastoral em 2032 é preciso mudar algumas estruturas e modelos formativos, para que sejam centrados no Santo Evangelho e não tanto em formar burocratas e administradores empresariais ou padres cantores e artistas. Será preciso alguns formadores e mestres espirituais, novos seminários, e sobretudo um novo estilo de viver o papel e missão presbiteral, diaconal e mesmo episcopal. Quem sabe possamos ter em breve a ordenação de diaconisas. E padres novos para tempos novos, talvez homens casados ordenados para as pequenas comunidades sem Eucaristia seguindo o modelo do rito católico oriental maronita e greco-melquita. Padres novos mergulhados na mística de Francisco como missionários despojados. Padres capazes de acompanhar o povo em suas crises e peregrinações. Bispos novos umbilicalmente unidos ao colégio presbiteral, como escreve Santo Ignácio de Antioquia a São Policarpo: “Vosso batismo há de permanecer como vossa armadura, a fé como elmo, a caridade como lança, a paciência como um arsenal de todas as armas” (Padres Apostólicos, Madrid: BAC, 1993, p. 500). Padres abençoados pela Mãe de Deus, a Imaculada Conceição Aparecida, convertidos em presbíteros companheiros e pastores humildes. Dispostos a dar razão da esperança, a quem lhes pedir (1Pd 3,15). Padres do jeito de Jesus. Padres santos como Luciano Mendes de Almeida. Rezemos ao Senhor!