27 Mai 2025
É o "totalitarismo liberal" brutalmente teorizado pelo vice-presidente J. D. Vance no "famigerado" (segundo Žižek) discurso de Munique: "aqueles que nos atacam são, na realidade, escravos de uma falsa noção de liberdade". Os extremos no final se encontram: os grandes inimigos da cultura do cancelamento fazem o mesmo, ou pior. E o profeta mais autêntico do trumpismo é justamente seu vice: se Donald é o "palhaço, humano em sua vulgaridade", Vance é, em vez disso, o "frio robô", destinado a administrar a próxima fase, a da "pura e simples opressão".
O release é de Cesare Martinetti, publicado por La Stampa-Tuttolibri, 24-05-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mas o que é o “trumpismo” na realidade? Como a doutrina política de Donald Trump pode ser definida? Para responder a essa pergunta, o filósofo esloveno Slavoj Žižek recorre a um de seus costumeiros e provocativos paradoxos: fascismo liberal.
E como dois universos ideais aparentemente tão opostos são mantidos unidos? Žižek lembra que, quando o magnata, a quem ele simplesmente definiu como "um liberal", surgiu no cenário mundial, foi duramente atacado pela esquerda liberal: como poderia ignorar que Trump é, na realidade, um "fascista"? A resposta agora chega com um dosado livreto no qual Žižek reuniu suas reflexões sobre o fenômeno do Príncipe Populista, que retornou à Casa Branca após uma vitória clara no desafio com a democrata Kamala Harris, que se mostrou ainda menos eficaz nas urnas do que Hillary Clinton em 2016. Se na época foi o espanto diante do resultado da eleição, desta vez foi mais a resignação.

O tsunami Trump, nesse interim, havia arrastado a opinião pública no coração dos EUA, não poupando nenhum meio, incluindo o assalto encenado por grupos armados fascistas no Capitólio. O filme Guerra Civil, de Alex Garland, lançado no ano passado e livremente inspirado naquele dramático evento, despertou emoção e debate não apenas nos Estados Unidos, porque representava a própria possibilidade de uma guerra civil. É um espectro que paira sobre a vida pública estadunidense há mais de dez anos, desde o surgimento do fenômeno Trump, sintoma de uma crescente desintegração do tecido social compartilhado.
E sobre a tolerância em relação a fascistas e nazistas, a história europeia do século passado escreveu páginas sombrias, também na Itália, onde liberais DOC como Giolitti, Croce e Einaudi se iludiram ao pensar que o sistema parlamentar democrático poderia absorver a insurreição de Mussolini. Não foi bem assim. No pequeno livro, publicado pela Ponte alle Grazie e secamente intitulado Trump e o Fascismo Liberal, Žižek não decepciona seus fiéis leitores, acostumados aos oximoros nos títulos de seus ensaios: ateísmo cristão, trash sublime, liberdade doença incurável, a coragem do desespero...
Na argumentação do filósofo esloveno, a política se cruza com a psicanálise e a leitura da realidade também se dá pela interpretação de símbolos profundos.
Então, por que fascista e liberal?
“Trump — escreve Žižek — é realmente um liberal, para ser mais preciso, um fascista liberal, a prova definitiva de que liberalismo e fascismo funcionam juntos, que são duas faces da mesma moeda. Trump não é apenas autoritário; seu sonho é também permitir que o mercado funcione livremente da forma mais destrutiva, desde a mais brutal busca pelo lucro até o descrédito por qualquer moderação ética (de tipo antissexista e antirracista) sobre os meios de comunicação acusados de expressar formas de socialismo”. O percurso é naturalmente contraditório, na verdade esquizofrênico: Trump promete liberdade, abertura, desregulamentação... e depois impõe tarifas, que são, por natureza, o oposto da ausência de regras.
Em sua relação com as mídias, ele se mostrou bem pouco liberal: ameaças abertas a dois jornais que certamente não são de "esquerda" (supondo que, mesmo nesse contexto, isso ainda signifique alguma coisa), como o Wall Street Journal, por criticar a política tarifária, e ao Washington Post, por ter anunciado que não seriam mais publicadas opiniões que contradiziam as liberdades individuais e de mercado.
A conclamada crise das democracias tradicionais, na eficácia de governo e no reconhecimento coletivo de símbolos e laços sociais, impulsiona a "trumpização" no mundo. Um exemplo grotesco é o papel desempenhado nesse jogo por Elon Musk, encarregado pelo presidente de "libertar os estadunidenses do fardo do Estado e do controle que ele exerce sobre os bolsos dos cidadãos", apesar de ser, na realidade, um monopolista da alta tecnologia, como outros magnatas do mundo digital, incluindo magos e feiticeiros variados das criptomoedas.
É o paradoxo — outro — das "liberdades obrigatórias", uma combinação única de liberdades formais e ditadura política de especialistas, monarcas corporativos sustentados por técnicos e conscientemente afirmada, como demonstra a política externa orientada à legitimação da força e à finalização dos negócios, no Oriente Médio como na crise russo-ucraniana.
"Enquanto isso", escreve Žižek, "o que deveria nos preocupar, não menos do que o potencial caos econômico, é a desagregação da ordem ético-política global, conscientemente perseguida por Trump. Os Estados Unidos, juntamente com muitos outros Estados, estão cometendo ou participando de crimes de guerra em série, sem sequer tentar mais justificá-los com desculpas superficiais: fazem isso simplesmente porque o podem fazer. O mundo inteiro está gradualmente sofrendo brutalidades inauditas que estão sendo assim normalizadas”.
É o "totalitarismo liberal" brutalmente teorizado pelo vice-presidente J. D. Vance no "famigerado" (segundo Žižek) discurso de Munique: "aqueles que nos atacam são, na realidade, escravos de uma falsa noção de liberdade". Os extremos no final se encontram: os grandes inimigos da cultura do cancelamento fazem o mesmo, ou pior. E o profeta mais autêntico do trumpismo é justamente seu vice: se Donald é o "palhaço, humano em sua vulgaridade", Vance é, em vez disso, o "frio robô", destinado a administrar a próxima fase, a da "pura e simples opressão".
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