08 Mai 2025
"Trata-se de uma terceira fase que deveria ser aprofundada, mas o que interessa analisar aqui é que, dessa vez, a Igreja Católica estadunidense também foi envolvida. O fato é que a parte nacional-conservadora dos republicanos EUA não estava satisfeita, constatando como o universo neo-evangélico (hegemônico de Reagan a Bush Jr.) tivesse se tornado heterogêneo e fluido em excesso, pulverizado e pouco estruturado", escreve Mario Giro, professor de Relações Internacionais na Universidade para Estrangeiros de Perúgia, na Itália, em artigo publicado por Domani, 06-05-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Suprema Corte dos EUA seja majoritariamente católica? O que levou JD Vance a se converter ao catolicismo? O que aconteceu nos EUA para levar o catolicismo ao topo do poder? O caminho da Igreja Católica estadunidense tem sido longo e cheio de obstáculos: por muitas décadas, considerada “estrangeira” e malvista pelas autoridades, só mais tarde se tornou aceitável.
Mais recentemente, teve que atravessar a questão dos abusos (ainda em aberto) e se envolveu na “guerra cultural” estadunidense que dividiu a sociedade e a política em questões como o aborto e os chamados valores não negociáveis, dos quais ela se tornou paladina. Hoje, sofre a mesma polarização que está ocorrendo em toda a sociedade estadunidense.
Nos extremos eclesiais estão os progressistas radicais, pós-clericais e pós-institucionais; no lado oposto está uma igreja que quer se livrar das influências do Concílio Vaticano II. Entre esses dois polos, está surgindo um produto híbrido, muito específico do país, em que se configura uma mistura de tradição culturalista e antiliberalismo, sem eliminar completamente um vago progressismo individualista. São os nacional-conservadores católicos à la Vance. A alma da maioria protestante estadunidense transformada pelos neo-evangélicos (cuja figura mais influente foi Bill Graham) viu numerosas igrejas protestantes históricas serem transformadas sob o ímpeto pentecostal. Com o tempo, as megaigrejas e os telepregadores mudaram a face religiosa dos Estados Unidos, disseminando-a de denominações originais por meio de uma onda de efervescência religiosa em tudo semelhante ao renascimento religioso do século anterior. Nas décadas de 1910 e 1920, de fato, os Estados Unidos foram varridos por uma maré de fervor religioso (um renascimento “born again”) que produziu muitas novas siglas, sem criar raízes na área católica. Na atual fase histórica, o Covid refreou em parte essa última forma de expressionismo religioso e hoje muitas megaestruturas estão sendo desativadas, pois os fiéis preferem se conectar on-line.
Trata-se de uma terceira fase que deveria ser aprofundada, mas o que interessa analisar aqui é que, dessa vez, a Igreja Católica estadunidense também foi envolvida. O fato é que a parte nacional-conservadora dos republicanos EUA não estava satisfeita, constatando como o universo neo-evangélico (hegemônico de Reagan a Bush Jr.) tivesse se tornado heterogêneo e fluido em excesso, pulverizado e pouco estruturado.
E, acima de tudo, muito pró-globalização, algo que os nacionalistas contestam. Se a teologia da prosperidade está ligada ao mundo da globalização, o mesmo não acontece com a visão dos nacional-conservadores de hoje, que tendem a retornar a formas mais sólidas de socialidade religiosa, a valores tradicionais comunitários e identitários e a modelos econômicos mais autárquicos (veja-se as tarifas).
Nessa versão, a prosperidade é entendida principalmente como comunitária e nacional, porque “também as mercadorias estrangeiras são uma ameaça”, como escreve Veronica De Romanis. Em termos religiosos, a eles serviam instituições estruturantes que produzissem uma nova cultura religiosa por meio de intelectuais orgânicos: em suma, era necessário criar um tipo de “partido cristão estadunidense”. Que melhor maneira do que usar a Igreja Católica estadunidense, dotada de cerca de 200 universidades e invejáveis centros teológicos e culturais, revistas e jornais?
No entanto, era necessário transformá-la por dentro e, em outras palavras, infiltrar-se nela para conquistá-la. Esses nacional-conservadores neocatólicos são diferentes de seus antecessores neocristãos de viés evangélico: eles amam São Tomás de Aquino e a forte e bem estruturada Igreja Católica pré-conciliar. Como podemos perceber pelas palavras de JD Vance, estão buscando valores fortes que devolvam aos Estados Unidos seu espírito de nação “sob Deus”. Eles sabem que também precisam lidar com uma forte secularização social.
É por isso que a passagem identitária é fundamental: permite sentir a pertença sem a prática constante. JD Vance se torna católico depois de ter sido um cristão não confessional. Os cristãos não afiliados (chamados de nones) nos Estados Unidos são cada vez mais numerosos (28%, como, por exemplo, os Obama).
A família Vance é de denominação protestante, mas ele superou os típicos preconceitos estadunidenses contra os católicos: para o vice-presidente, a Igreja Católica - como instituição - é a solução para os problemas do país, e considera que o impacto católico na cultura e na política dos Estados Unidos é maior do que o das várias famílias protestantes, agora demasiadamente divididas, leves e fluidas.
Como escreve o cientista político francês Olivier Roy, especialista na relação entre religiões e política, esse catolicismo “parece mais estruturante do que o evangelicalismo no plano das instituições e da filosofia política, embora a base de valores seja a mesma”. Vance prefere um certo grau de populismo e isolacionismo moderado ao neoliberalismo globalizante dos neoconservadores da era Bush.
A cena da “bênção” de Donald Trump por uma pequena multidão mista de líderes religiosos - supervisionados por Paula White - o agrada até certo ponto. Ele prefere um novo formato de catolicismo pós ou antiliberal que expresse solenidade e poder real. A “América Maga”, que quer se tornar grande novamente, precisa de uma religiosidade mais estruturada. Para o vice-presidente, abraçar a Igreja Católica foi uma forma de dissenso cultural contra o liberalismo globalizante.
De acordo com Massimo Faggioli (em Da Dio a Trump, editora Scholé), trata-se da mesma ideia de outro neocatólico, o famoso escritor Walker Percy, que escreveu: “O homem moderno tem duas opções diante de si: Roma ou a Califórnia”.
Obviamente, trata-se do homem estadunidense branco. Pode-se perceber como ocorreu uma espécie de sobreposição e troca entre o catolicismo estadunidense e o evangelicalismo, por meio de uma penetração da cultura da direita nacional-religiosa na esfera católica também do ponto de vista teológico: literalismo e fundamentalismo bíblico, com o registro emocional prevalecendo sobre a análise crítica.
Como escreve Massimo Faggioli, “a tríade doutrina-vida-culto do catolicismo EUA atual é hoje uma mistura de esquecimento e rejeição do Vaticano II, de triunfalismo devocional e intimista, de revival carismático-pentecostal e do culto ao entretenimento emocional do qual até mesmo o progressismo teológico inclusivo é adepto”.
Ou seja, nasceu uma espécie de “tradicionalismo globalizado de viés etnoculturalista”. Os progressistas católicos estadunidenses se perderam indo em uma direção diferente: da “opção preferencial pelos pobres” para a “opção preferencial pela diversidade”, onde se misturam o progressismo evanescente com o nativismo teológico e litúrgico.
A questão cristã nos Estados Unidos hoje é, portanto, tanto uma crise do catolicismo progressista quanto do protestantismo histórico. A primeira consequência foi o aumento da não afiliação, como rejeição das guerras culturais das décadas passadas (ainda em andamento). O segundo efeito é o surgimento dos nacional-conservadores de viés católico. Preencher o vazio com instituições tranquilizadoras é uma forma de responder à busca de sentido e dar uma identidade aos tantos ‘eus’ dispersos.
O Papa Francisco não podia agradar a eles porque superava as instituições com a “igreja em saída”, enfatizando a caridade mais que a norma, o universalismo em vez do identitarismo. Daí a polêmica com Vance sobre a ordo amoris com a carta de Francisco aos bispos estadunidenses. Lentamente se distinguindo da Igreja de Roma (mas sem romper com ela, é claro), os católicos estadunidense nacional-conservadores produziram uma espécie de privatização da fé que convenceu também muitos prelados: permanecem dentro da instituição, mas a vivem à sua própria maneira, produzindo sua própria cultura teológico-religiosa.
Dessa forma, o catolicismo estadunidense está abandonando sua clássica expressão étnica (irlandeses, italianos, latinos e assim por diante) para se tornar um catolicismo cultural identitário em sentido nacional-conservador. É com essa igreja e com bispos influenciados por tais ideias que o próximo papa terá que se confrontar.