18 Abril 2025
O seu avô sobreviveu ao Holocausto. Hoje, o neto, nascido em Gilon, Israel, em 1979, é professor e investigador no departamento de Filosofia da centenária New School for Social Research, no coração de Nova Iorque. Recentemente, foi convidado a fazer o discurso mais importante no ato de evocação dos 80 anos da libertação do campo de concentração nazista de Buchenwald, na Alemanha.
A reportagem é de Manuel Pinto, publicada por 7Margens, 15-04-2025.
Omri Boehm – pois é dele que se trata – deveria ter sido escutado por vários sobreviventes e por figuras de proa do mundo político alemão, no dia 6 de abril. Mas não foi. O convite foi anulado, escassos dias antes do evento, segundo revelaram vários meios de comunicação, por pressão das autoridades de Israel. A razão é que o filósofo Boehm, além de neto de um sobrevivente e autor de várias obras em que reflete sobre aspetos da religião e cultura judaica, é também conhecido crítico da política de extermínio que o Governo de Netanyahu tem vindo a fazer em Gaza, em resposta ao massacre do Hamas em território israelita, em 7 de outubro de 2023.
A embaixada israelita na Alemanha tentou justificar o afastamento do filósofo com o pensamento do filósofo, escrevendo na rede social X que, “sob a capa de ciência, Boehm, com o seu discurso sobre valores universais, tenta diluir a comemoração do Holocausto roubando-lhe assim o seu significado histórico e moral”.
Em março de 2024, o filósofo viu ser-lhe atribuído o Prêmio Literário de Leipzig para a Compreensão na Europa, pelo livro que publicou em 2022, no qual desenvolve e aprofunda as suas ideias sobre o “universalismo radical” e “se opõe resolutamente ao endurecimento ideológico do presente” e se dá “a obrigação de reconhecer a igualdade de todos os seres humanos, contra qualquer relativização”, como salientou o júri do prémio.
No discurso de aceitação, Boehm referiu-se ao caráter devastador da guerra Israel-Hamas para os palestinianos, afirmando: “Os meus amigos palestinianos sabem que quem quer que faça aquilo que o meu país está a fazer agora em Gaza, e chama isso autodefesa, está a trazer profunda vergonha à minha identidade judaica e israelita”.
E, afinal, que pretendia dizer Omri Boehm, no seu discurso evocativo do terror e morte do campo de Buchenwald? O conferencista silenciado não perdeu a oportunidade de tornar público o seu conteúdo (encontrámo-lo no jornal israelita Haaretz e no espanhol El País, por exemplo).
No discurso que não existiu e cujo texto se tornou, afinal, uma coluna de jornal, Boehm começa por refletir sobre o significado e o poder da memória “numa época em que essa memória enfrenta desafios novos e intoleráveis”.
Seguindo o historiador judeu-americano Yosef Hayim Yerushalmi, para quem a tradição judaica distingue claramente entre história (conhecimento factual sobre o passado) e memória (narrativa na primeira pessoa do singular ou plural, orientada para o presente e o futuro), o filósofo lembra que “o oposto de esquecer não é apenas conhecer o passado, mas também cumprir as obrigações que esse passado nos impõe no futuro”.
Nesta linha põe em evidência uma tensão que atravessa o judaísmo: “o foco intenso na memória” versus o interesse pelo futuro ou mesmo pela utopia e pelo ideal, que se traduz no zakhor! (lembrar!) dos profetas, o qual pretende que “nunca nos esqueçamos de que só podemos honrar o passado se buscarmos justiça no futuro”.
Tomando as reflexões de Yerushalmi como ponto de partida, Omri Boehm observa que “o objetivo mais elevado que os profetas nos propuseram, de facto, não é a justiça, mas a paz”. Apoia-se para tal em Martin Buber e, sobretudo, em Herman Cohen, quando este explicou que “a justiça não pode ser o mais alto objetivo moral, porque depende de ponderação e avaliação e, portanto, é inerentemente incompleta e tendenciosa”. A paz, por outro lado, “representa na tradição judaica o que a harmonia era para os gregos: a perfeição, o todo”, como se pode ver na palavra shalem que, em hebraico, significa “completo” e é a origem da palavra hebraica para paz: shalom. Assim, conclui e interroga: “a paz chega à justiça completa ao universalizá-la. É possível então que o oposto do esquecimento não seja nem a memória nem a justiça, mas a paz?”
Herman Cohen, um filósofo judeu aberto ao universalismo, sabia que, para além dos profetas hebreus, a paz era também um ideal do iluminismo, como mostrou Kant, em Sobre a Paz Perpétua, de 1795, consciente que estava de que “a realidade do nosso mundo é brutal” e “bárbara”. Ao contrário de Heráclito, para quem “a guerra é o pai de todas as coisas”, para os profetas e para Kant, “a origem das relações humanas, da política humana e dos direitos humanos não é a suposta necessidade da guerra, mas o ideal de paz”. “Segundo o alerta de Kant, escreve Boehm, o destino da humanidade que não permanece fiel ao ideal de paz será inevitavelmente a destruição”.
Daí que o filósofo lembre os horrores de Buchenwald e, pensando no desafio de Kant e no ensinamento dos profetas, interrogue: “Podemos evitar o esquecimento se a memória não for acompanhada de um compromisso incontornável com a paz?”. E, sabendo bem que há no judaísmo outras tradições como o “Lembra-te (zakhor) do que Amalek te fez” e “destrói a sua semente”, que vem no Livro do Deuteronômio, 25, volta a interrogar: “entre essa tradição ou a paz, qual delas escolheremos? E a que preço?”
Bohem enfatiza o facto de o antissemitismo fanático que levou a Alemanha nazista à operação de extermínio sistemático dos judeus ter sido igualmente “um ataque ao próprio conceito de dignidade humana”. Foi o reconhecimento desta dignidade, assumida como “obrigação moral”, que levou os Estados e a comunidade internacional a criar instrumentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos ou o Direito Internacional, a “incorporar a dignidade das pessoas no direito” e a dizer, dessa forma, um “nunca mais” à guerra, um ‘nunca mais’ que deve ser universal e não apenas para os judeus.
Olhando o que se passa hoje no seu país de origem, na sequência do massacre de 7 de outubro de 2023, o filósofo nota que o “nunca mais” é enunciado ora pelos israelitas ora pelos que se indignam com a destruição e a fome em Gaza. O que o leva a refletir:
“Se a intenção em ambos os casos é traçar um paralelo com o Holocausto, ambas as afirmações são enganosas. E, no entanto, há alguma verdade em ambas. Por um lado, porque ambos apontam para o facto chocante de que em duas ocasiões não foi evitada a desumanização completa das sociedades; e, por outro lado, porque ambos revelam que a comunidade internacional, dividida como está pelas suas várias alianças, ainda concorda na sua disposição de tolerar, e às vezes até mesmo justificar, crimes desumanizantes, que por sua vez minam a possibilidade de paz”.
O caminho que percorrem os Estados Unidos da América de virar costas aos seus aliados, ao Estado de Direito e ao Direito Internacional, conjugado com o fenómeno emergente das extremas-direitas na Europa deve ser motivo de alerta e denúncia, segundo Boehm. Mas, observa ele, “sem deixar de nos autoexaminarmos, para que nós, a esquerda democrática, a direita democrática e o centro democrático, tenhamos absoluta certeza de ser uma alternativa genuína na luta conjunta contra essas tendências”, “inequivocamente comprometida” com o Estado de Direito e o Direito Internacional e que resiste às tentações de “descartar a dignidade humana e a paz como falácias nobres e ingénuas” e de “exigir a expansão do poder europeu à custa do Estado de direito”.
Impedir que se passe do “nunca mais” para o “novamente” e não só “lembrar”, mas sobretudo, garantir que “não esquecemos Buchenwald” e outros campos análogos do terror – é a mensagem final do discurso que foi impedido… na Alemanha. E isto também é um sinal.