10 Abril 2025
No dia 1º de maio de 2016, começou um incêndio com a força do furacão Katrina, o mais destrutivo da história do Canadá, que expulsou mais de 88.000 pessoas de suas casas, durou três meses completos e devastou uma cidade inteira, Fort McMurray, acostumada a ser inabalável.
A crônica dos terríveis acontecimentos nos é oferecida pelo jornalista John Vaillant (Cambridge, Massachusetts, 1962), em um livro que ganhou o Prêmio Baillie Gifford de não-ficção (2023) e foi finalista do Prêmio Pulitzer na mesma categoria (2024). Trata-se de El tiempo del fuego. Historia de un incendio en un mundo más cálido (Capitán Swing, 2024), agora traduzido para o espanhol.
É o quarto livro de um autor com talento especial para produzir best-sellers e explorar questões-chave da atualidade. Conversamos serenamente por videoconferência a respeito desse evento tão preocupante, que talvez anuncie um novo paradigma de desastres em meio à crise climática.
A entrevista é de Azahara Palomeque, publicada por La Marea-Climática, 07-04-2025. A tradução é do Cepat.
Como o projeto começou? Por que é uma história que precisava ser contada?
A cidade de Fort McMurray, em Alberta, é o centro petrolífero do Canadá. É também uma das cidades mais ricas do país. Aqui, não se extrai petróleo, mas, sim, é minerado. Mineram areias betuminosas. É um processo complicado, muito ineficiente e poluente, mas encontraram uma forma de ganhar muito dinheiro com isto.
O que extraem não é petróleo, é betume, uma substância usada, por exemplo, para vedar as fundações das casas. É como o piche. Requer muito gás natural para torná-lo algo reconhecível para a indústria... Então, a ideia de que uma cidade tão industrializada, tão rica e importante pudesse ser arrasada por um incêndio em uma tarde não encaixava bem. Era difícil de imaginar, como se o Vale do Silício se incendiasse, algo assim.
Eu me inteirei no dia 3 de maio de 2016. De fato, eu estava em um retiro de escritores na Toscana, desfrutando meus pensamentos, e cometi o erro de abrir o Twitter e havia uma foto de Fort McMurray. Só que não era possível enxergá-la, pois estava coberta por uma enorme nuvem negra. Sim, via-se milhares de carros saindo, mas muito lentamente.
Enquanto isso, essa coluna de fogo se transformou em um sistema de pirocumulonimbus. Essas nuvens têm cerca de 14.000 metros de altura e atravessam a estratosfera, criando seu próprio clima, seus próprios raios, granizo negro, como na Bíblia, no Êxodo, e quase se tornam furacões de fogo. Foi justamente o que, durante dias, açoitou Fort McMurray.
Havia muito medo, muita incerteza e também a comoção de que uma cidade tão forte e inviolável pudesse ser destruída tão rapidamente. Além disso, a indústria do petróleo é uma indústria do fogo. O que realmente vendem é a combustão, é aí que está o dinheiro; vendem fogo.
Então, temos o capital da indústria do fogo sendo arrasada por um incêndio, e não porque suas refinarias tivessem explodido, mas porque algumas árvores incendiaram, as árvores que vinham cortando há décadas. A ideia de que as que sobreviveram pudessem gerar tanta energia, bombas nucleares, e expulsar os moradores da cidade, desta cidade tão poderosa, era simplesmente uma loucura. Isto nos faz perceber a ilusão absurda em que vivemos. Parecia uma parábola.
Há uma certa justiça poética. Acredita-se que é possível controlar a natureza e fazer o que quiser com ela, especialmente brincar com fogo, e é o fogo que acaba brincando conosco.
Sim, brinca-se com o fogo e agora o fogo brinca conosco. É bonito. Que arrogância! É hubris. Mas… é uma questão de reciprocidade. Na medida em que aprendi mais sobre o comportamento do fogo, compreendi que estamos entrando em uma nova era. Há um cientista muito famoso nos Estados Unidos [Stephen Pyne] que cunhou o termo “Piroceno”. Inspirei-me nisto e cunhei o termo “Petroceno”, a era do petróleo. Foi quando tudo saiu completamente do controle no que diz respeito à nossa relação com a estabilidade planetária.
Esta era uma das minhas perguntas. Você mencionou “pirocumulonimbus”. Estamos criando muitos neologismos. Por exemplo, antes não havia furacões no Mediterrâneo, e agora os cientistas falam de “medicanes”. Entramos em outro paradigma de desastres climáticos que exige um novo vocabulário?
Sim. Eu uso alguns desses neologismos no livro. Alguns, eu inventei, outros são emprestados. Precisamos de uma nova linguagem para dar sentido a esse desastre distópico que criamos. Há um termo do futurista Alex Steffen que se chama “descontinuidade”. Uma descontinuidade é um evento para o qual as experiências e os conhecimentos anteriores não são úteis devido à sua radicalidade. E o fogo é um excelente exemplo disto. Esses incêndios são incontroláveis.
A água não serve. O calor é tão forte que a água evapora muito antes de alcançar as chamas. Por isso, em minhas entrevistas, os bombeiros dizem: primeiro, levamos uma surra; e segundo, a operação de combate a incêndios se tornou uma operação para salvar vidas. Ou seja, o incêndio foi tão terrível que a única coisa que podiam fazer era tentar salvar as pessoas, inclusive eles próprios. Então, esses bombeiros não dormem à noite; trabalham continuamente, entrando em um estado de alucinação e esgotamento, usando máquinas pesadas em um ambiente muito perigoso. E isto é novo. O fogo pode se comportar de modo que os humanos não conseguem controlar.
Você diz que o fogo cria seu próprio sistema atmosférico. Poderia explicar em que consiste esse fenômeno?
Imagine Fort McMurray naquele dia 3 de maio, um dia precioso, e o incêndio começa e se transforma em pirocumulonimbus, e isto é um sistema meteorológico, produzido pelo fogo, e acaba ficando parecido com um furacão. Gera ventos com a força de um furacão, absorve toda a umidade. Tudo o que é queimado contém água que evapora. Então, a 9.000 metros de altura, a água congela em torno das cinzas e a fumaça cai como granizo negro, gera seus próprios raios, como os de um vulcão.
Esse raio pode desencadear novos incêndios a 30 km. Assim, desse lindo dia de sol, surge um monstro de fogo que devora a paisagem. Nesse sentido, cria sua própria atmosfera, suas próprias leis. É capaz de se alimentar e avançar enquanto o combustível e o clima permitirem. Então, teoricamente, um sistema como este é capaz de arder por todo o continente e só parar quando chegar ao oceano.
Menciona a ideia de “hubris”, e eu estava pensando nas descrições que você faz no livro a respeito da masculinidade da cidade, não apenas em termos de habitantes - há mais homens do que mulheres -, mas no estilo de vida: a cocaína e as salas de ‘striptease’. Considera que essa masculinidade influenciou no tempo de reação ao incêndio? Como se os homens fossem imortais, imunes a tudo.
Penso que as ações climáticas mais ambiciosas provêm de líderes mulheres. Obviamente, também há homens que contribuem, mas acredito que estaríamos em uma situação diferente se houvesse mais mulheres. Além disso, penso que os homens têm uma tendência maior ao risco, ao perigo. Não há dúvidas de que Fort McMurray é um dos lugares mais hipermasculinos dos que eu já estive, e não é agradável. Por exemplo, para conseguir camareiras para que trabalhem lá, oferecem a elas implantes mamários. Estive em alguns desses bares e é um freak show, perturbador.
Contudo, quanto à demora na evacuação, um fator foi a indústria do petróleo: não desejarem desligar as máquinas, que nunca param. Essas centrais funcionam 24 horas por dia, nos 365 dias do ano. Então, desligá-las é caro e até perigoso, por causa de todos os gases e líquidos. Havia um incentivo ali, embora o incentivo verdadeiro seja o dinheiro. Outra coisa: se você declara a evacuação, há dezenas de milhares de pessoas que você precisa retirar dali, e isto, para sermos justos, pode criar o seu próprio desastre. Então, é possível observar o motivo pelo qual queriam esperar.
E a outra razão é que é muito difícil imaginar cenários inéditos. Sempre houve incêndios florestais nos arredores de Fort McMurray – Alberta é famosa por isso –, mas nenhum havia alcançado a cidade. Os bombeiros sempre tinham conseguido detê-los e fizeram o que era preciso para impedi-lo, mas o fogo seguia avançando. Eles o trataram como um incêndio dos anos 1990, mas era um incêndio do século XXI. E é aí que a mudança climática nos supera. Está afetando lugares e em uma escala que nunca vimos antes.
Nós nos preparamos como antes, mas o que está provocando é algo completamente novo e muito maior. Portanto, nossos métodos não funcionam. Realmente, não conseguiam acreditar, não conseguiam imaginar semelhante desastre. Foi isto que me levou a escrever: ver esse lugar que parecia tão forte e invencível completamente destruído, desfeito, e de forma tão rápida.
O que podemos aprender em termos de planejamento urbano? Sempre me chamou a atenção que as casas sejam de madeira, pouco resistentes a fenômenos meteorológicos extremos. Você também explica que o conteúdo das casas agora é mais inflamável do que há várias décadas, com muitas fibras sintéticas em cortinas, sofás etc.
Podemos aprender que nos tornamos pessoas de petróleo. Não percebemos como a indústria do petróleo dominou nossas vidas, nosso comportamento e até mesmo nossas roupas íntimas. Talvez, nesse momento, você esteja vestindo produtos derivados de petróleo. Eu não os uso, mas muitas pessoas sim. Muitas pessoas se vestem com poliéster, náilon e roupas similares, inclusive, muito justas no corpo, e tudo isto é petróleo.
Seu colchão está cheio de produtos derivados do petróleo. Não sei se vocês têm revestimento vinílico na Europa, mas aqui é muito comum. É um revestimento de plástico muito barato, que derrete a 45-50 graus. E foi com isto que Forte McMurray foi construída, e a reconstruíram do mesmo modo.
Há uma política do negacionismo em Alberta. Estão mergulhados em um sonho perigoso... tão irracional que é difícil de administrar. Portanto, uma das coisas que podemos aprender é que a indústria do petróleo tem um controle muito forte sobre nossas vidas e o nosso comportamento.
Outra coisa que precisamos aprender é que realizamos suposições baseadas em experiências passadas sobre como o fogo se comporta, e nada disso vale mais. Esses incêndios são um convite a reconsiderar a nossa relação com a natureza e também são uma advertência. Precisamos estudar os sistemas em que vivemos, em termos de suscetibilidade ao fogo e às inundações. Estamos em uma transição energética, mas a indústria do petróleo é uma indústria do fogo, e o fogo é um elemento selvagem e ganancioso, e devorará tudo o que puder.
Quando se observa como os incêndios florestais se propagam e como o capitalismo se propaga, vemos que são muito semelhantes. Portanto, [o fogo] é uma forma de analisar o capitalismo e nossos próprios apetites. Agimos e consumimos inconscientemente, e esses incêndios são uma chamada de atenção para examinarmos nossos apetites e o papel que os combustíveis fósseis desempenham em nossas vidas. Porque, na realidade, é um experimento de 150 anos, e agora temos os resultados.
Em nível planetário, é um experimento fracassado. E, no entanto, quando se observa a maioria dos nossos políticos, os lobbies etc., é muito difícil questioná-lo. Agora, há milhares de processos judiciais em todo o mundo que basicamente acusam a indústria petrolífera de mentir. É possível sustentar que são assassinos. Isto é um crime violento. E isto é um grande salto psicológico, um salto legal... Pensemos no que a indústria petrolífera sabia nos anos 1950 e 1960, nos políticos que colaboraram com ela. Permitiram que esse desastre acontecesse. Não fizemos isso com a poliomielite.
Deveriam ser responsabilizados?
Claro. E especialmente agora que a indústria petrolífera está buscando lucros de forma mais cínica do que nunca. É verdadeiramente criminoso.
Mas sãos os ecologistas que estão sendo criminalizados.
De fato. Vivemos em um sistema muito corrupto. Vivemos sob um regime colonial promovido pelos combustíveis fósseis, os bancos e seus beneficiados imediatos. E o mais difícil é que a gasolina funciona muito bem. Melhorou a sua vida, tenho certeza de que melhorou a minha em muitos sentidos, mas não é a única forma de satisfazer as nossas necessidades.
Muitas coisas positivas estão acontecendo. O Reino Unido, berço da revolução industrial e da energia procedente de combustíveis fósseis, começando pelo carvão, fechou a última de suas usinas elétricas a carvão neste ano. Seu consumo de carvão é nulo. O Reino Unido, país historicamente com o maior consumo de carvão depois da China, conseguiu isto. Então, podemos agir.
E o Texas, que, assim como Alberta, tem uma política de negacionismo climático e também é um centro da indústria petrolífera estadunidense, está gerando, por uma ampla margem, mais gigawatts de energia renovável do que a Califórnia ou qualquer outro estado. Isto era inconcebível há uma década.