11 Abril 2025
"Uma 'arte sem artistas' é o desdobramento de um sonho distópico de gerar um 'capital livre do trabalho'. Nos últimos anos, com inúmeros avanços tecnológicos de caráter disruptivo, impondo para milhões de pessoas formas desreguladas e precarizadas de relações de trabalho, além da crescente financeirização das economias, alguns ideólogos resgatam a ideia de uma ruptura entre o capital e o trabalho na geração de valor, tornando este último tendencialmente obsoleto para a criação de riquezas", escreve Erick Kayser, mestre e doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
No final de fevereiro, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, defendeu que os EUA poderiam assumir o controle de Gaza após o fim do conflito, transformando o local em uma “Riviera do Oriente Médio”. O plano, abertamente criminoso pelo direito internacional, seria o de expulsar os palestinos do enclave e construir um complexo de resorts. Alguns dias após esta declaração, Trump divulgaria um bizarro vídeo, produzido por Inteligência Artificial (IA), onde era retratada a delirante “Trump Gaza”, formada por prédios altos, iates ancorados na costa, uma estátua gigante de Trump em ouro no meio de uma rua, o premiê israelense Benjamin Netanyahu tomando drinque em uma piscina e Elon Musk distribuindo dólares a crianças em uma praia. A trilha sonora é uma música, em inglês, com dizeres como “Trump vai te libertar”.
Se é notável a cafonice da estética kitsch na peça de propaganda de Trump, interessa-nos aqui destacar o quanto este vídeo é exemplar da adoção das imagens criada pela inteligência artificial (IA) como a nova expressão estética do fascismo. Chama a atenção o quanto a direita adora as imagens geradas através de IA. Em pouco tempo, em todo o mundo, este espectro político abraçou coletivamente os visuais brilhantes e perturbadores criados pela IA generativa. Estas imagens e vídeos são produzidos em grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT e geradores de imagens baseados em difusão como Midjourney e DALL-E.
Entre políticos e grupos da extrema-direita europeia, o uso destas imagens é disseminado, sendo abundantes as imagens de caráter racista contra imigrantes estrangeiros. No Brasil, as redes bolsonaristas têm se alimentado de muitas imagens que combinam a estética nacionalista com temas religiosos, expressando uma fantasia autoritária e messiânica, ou ainda, utilizando montagens com ataques agressivos e até escatológicos contra figuras da esquerda, em especial o presidente Lula. Javier Milei, outro adepto da arte por IA, parece querer que todos na Argentina se sintam sob a constante ameaça de ser atingido por sua motosserra, perdendo diretos sociais ou se somando aos quase 300 mil trabalhadores que perderem seus empregos, como resultado da recessão por ele induzida.
Para quê contratar um artista podendo gerar ilustrações gratuitas com IA generativa? Não é por falta de recursos que um chefe de estado opta por usar imagens de IA em suas redes sociais. O fato destas imagens serem, em boa parte, plágios de artistas de carne e osso, não é um problema moral para uma direita que nunca escondeu sua hostilidade à arte. Para ela, principalmente em sua versão extremista, é até mesmo desejável que seja uma arte sem artista. Esta escolha estética é derivada de alguns processos constitutivos da identidade deste fascismo do século XXI, como a relação com a cultura e a arte, um tanto distintas do fascismo clássico.
No passado era possível identificar artistas de direita em suas diferentes matizes – reacionárias ou não – capazes de produzir uma grande arte, como os escritores Fiódor Dostoiévski ou Jorge Luis Borges, ou o pintor surrealista Salvador Dalí, apenas para ficar em exemplos mais conhecidos. Hoje isto é algo que inexiste; são imagens de um passado cada vez mais distantes. Existe hoje algum artista sério na direita que não se envolve em nostalgia por algum tempo imaginado antes que a arte fosse “corrompida” por muçulmanos, mulheres ou homossexuais?
Enquanto no século XX o fascismo era capaz de absorver ou até mesmo gerar movimentos culturais vanguardistas, como o futurismo italiano, na direita atual subsiste um vazio, uma ausência só suprida, parcialmente, em uma relação politicamente instrumental ou como entretenimento efêmero. A direita atual é inimiga da cultura, refratária a tudo aquilo que não estiver contido em certos cânones petrificados – e, não raro, ainda possui um entendimento distorcido desses mesmos cânones, sob influências nacionalistas, religiosas ou dos mais rasos detritos do mainstream da indústria cultural.
Antes velada, mas agora escancarada após a vitória de Trump, a aliança da extrema-direita com as chamadas Big Techs norte-americanas, impulsionou a adesão a esta forma estética. Um dos motivos básicos é auxiliar no esforço de popularização do uso da IA, conferindo-lhe alguma utilidade. Incentivar que cada vez mais pessoas gerem imagens “inspiradas” nos desenhos animados da Dreamworks 3D ou do Studio Ghibli, ainda que possa parecer apenas uma brincadeira inocente, reforça as Big Techs em configurar a IA como salvação para um capitalismo em crise. Para termos uma dimensão do tamanho desta aposta, estima-se que, somente no setor privado entre os anos 2013 e 2023, foram investidos cerca de US$ 335 bilhões em tecnologia de IA nos Estados Unidos. Para isso, é fundamental que esta tecnologia seja utilizada massivamente, gerando a sensação de indispensabilidade na vida cotidiana, mesmo que à custa da eliminação de milhões de postos de trabalho e de um altíssimo impacto ambiental.
O negacionismo climático, comum às direitas em todas as latitudes, foi abraçado pelas Big Techs do Vale do Silício ao desenvolverem uma tecnologia com um custo ecológico sabidamente insustentável. Para exemplificar, as máquinas dos data centers de IA precisam estar entre 15ºC e 25ºC para seu funcionamento adequado, o que exige um sistema de refrigeração que consome muita água: para gerar um texto de apenas 100 palavras no ChatGPT, consome-se em média 519 mililitros de água. Isso, para eles, é apenas um efeito colateral do progresso, que em algum momento futuro será contornado, mesmo não havendo nenhuma evidência para tal. Trata-se de um tipo de crença contraintuitiva, aceleracionista, baseada em um messianismo tecnológico e bastante popular entre os adeptos da “ideologia do Vale do Silício”.
Idealizada como tábua de salvação para um capitalismo em crise estrutural, torná-lo um negócio lucrativo é um desafio para a classe capitalista. Objetivando a criação de uma nova fronteira de acumulação de capital, o retorno ainda é incerto para a fortuna investida. Por hora, os prejuízos se acumulam. A OpenAI não consegue ganhar dinheiro com as caras assinaturas de US$ 200 para o ChatGPT. As incertezas sobre sua sustentabilidade financeira ficaram ainda maiores com o lançamento do DeepSeek, o projeto de IA em código aberto desenvolvido na China que limpou mais de um US$ 1 trilhão do mercado de ações dos EUA apenas no primeiro dia após seu lançamento, colocando em dúvida o domínio ocidental do setor.
É na encruzilhada quanto ao seu próprio futuro que as empresas envolvidas no negócio da IA se encontram, desejosas de ganhar tempo para recuperar fôlego e sobreviver. O pensamento parece ser o de que, se puderem aguentar tempo suficiente operando na consciência pública, como a criptomoeda antes dela, a IA se tornará “grande demais para falhar”. Neste sentido, estimular que cada vez mais pessoas forneçam seus dados para alimentar os algorítimos das Big Techs e utilizem os sistemas de IA é vital, mesmo que seja para gerar memes idiotas ou vídeos toscos para as redes sociais, já que emite a sensação de alguma utilidade. O abraço da extrema-direita à arte gerada por IA, portanto, além de uma opção estética, atende a uma solidariedade de interesses de classe. É por isso que, mesmo acumulando prejuízos, o governo Trump dobra a aposta e promete mais US$ 500 bilhões nos próximos anos para seu “Projeto Stargate”.
Refratários à cultura artística, o abraço do fascismo ao padrão estético de IA responderia também a outra dimensão: um desejo/impulso para o “fim do artista”. Presença incomoda, “libertar” a cultura artística do talento humano, a IA é vendida por seus apologistas como “democratização” artística; na realidade, porém, efetiva um esvaziamento do sentido artístico enquanto prática sensível, crítica e coletiva, portadora de uma multiplicidade de leituras. Agora, elas são substituídas pela opacidade unidimensional dos conteúdos gerados artificialmente, alimentados por sistemas algorítmicos que se apropriam do trabalho criativo sem autorização, sem crédito e ceifando o que, de fato, constitui uma obra de arte.
Não se trata de um efeito colateral inesperado, mas de uma consequência guiada por uma intencionalidade. A tecnologia não é neutra, desenvolvendo-se a partir dos propósitos que são dados a ela. A tecnologia que está hoje aprisionada pelos interesses privados, sendo guiada democraticamente pela coletividade desde sua concepção, poderia ganhar um sentido libertador.
Uma “arte sem artistas” é o desdobramento de um sonho distópico de gerar um “capital livre do trabalho”. Nos últimos anos, com inúmeros avanços tecnológicos de caráter disruptivo, impondo para milhões de pessoas formas desreguladas e precarizadas de relações de trabalho, além da crescente financeirização das economias, alguns ideólogos resgatam a ideia de uma ruptura entre o capital e o trabalho na geração de valor, tornando este último tendencialmente obsoleto para a criação de riquezas. Ainda que tenha se acelerado, não se trata de um fenômeno propriamente novo. Marx observou que já ocorria em seu tempo uma crescente separação entre a produtividade material e a produtividade em termos de valor; este processo, ainda que inicialmente pudesse ser entendido como uma “anomalia”, seria aprofundado ao longo da evolução do capitalismo.
Como aponta Robert Kurz, em sua obra A crise do valor de troca (2018), este foi “um processo histórico em larga escala no qual o processo de trabalho material e o processo de criação de valor começaram a divergir e a se tornar cada vez mais desproporcionais entre si” (p.21). No capitalismo tardio, a universalização do trabalho precário – mal remunerado, fisicamente desgastante e individualmente produtor de valor residual – contrasta com a riqueza destinada a poucos afortunados produtores de trabalho “imaterial”. Contudo, o sonho capitalista de um valor capaz de se valorizar indefinidamente, sem a necessidade de qualquer lastro material, é ilusório. As bolhas especulativas, independente de sua natureza, por si só não geram valor: apenas drenam a riqueza gerada em outros setores produtivos, buscando acelerar o processo de valorização de valor de forma artificial, por vezes com sucesso, noutras com consequências ruinosas.
Voltando a nossa discussão principal, é necessário um comentário adicional sobre a arte por IA enquanto expressão estética do fascismo. Se antes apontamos aqui diferenças entre os novos fascismos e sua versão clássica com relação a cultura, não poderíamos fechar este ensaio sem apontar suas semelhanças. Não se trata aqui de explorar suas aproximações mais explícitas, que em termos semióticos são muitas, mas sujeitas a atualizações, como na saudação nazista de Elon Musk, onde o seu “Sieg Heil” participa de uma tradição de apropriação irônica e não-irônica da iconografia fascista que floresce através do 4Chan, emum extremismo que se apresenta de forma contracultural.
Quando Benjamin Netanyahu exibe uma visão, gerada por IA, de uma Gaza etnicamente limpa, com um plano para transformar Gaza na próxima Dubai com base em um genocídio em curso, atualiza-se uma noção de “experiência estética da destruição” – termo mobilizado pelo filósofo Walter Benjamin quando analisou a estética fascista em seu ensaio A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, de 1936. Benjamin analisou como o fascismo transformava a política em espetáculo, utilizando a estética para glorificar a guerra e a violência, convertendo-as em objetos de contemplação passiva. Em meio às agruras da guerra e com a estetização da destruição, ele identificava que o fascismo buscava alienar as massas e suprimir sua capacidade de resistência e ação revolucionária.
A estética da violência, comum aos fascismos de ontem e hoje, não apenas romantiza a violência como instrumento de “purificação social”, como também a apresenta como resposta heroica a crises modernas, através de discursos anticomunistas, misóginos ou anti-imigração que simplificam problemas complexos em batalhas maniqueístas. Essa estética, porém, esconde uma contradição: ao mesmo tempo em que rejeita o “politicamente correto” como fraqueza, depende da teatralização do medo e da espetacularização do conflito para mobilizar seguidores, revelando-se menos como uma força revolucionária e mais uma reação desesperada à perda de privilégios em sociedades cada vez mais pluralistas.
A estética do fascismo, turbinada pela IA, ao celebrar a agressividade como um atributo de virilidade e pureza, converte o terror (por vezes mascarado sob a máscara do “humor’) em uma ferramenta de mobilização, onde cada ato violento se torna um símbolo político capaz de seduzir e enraizar sentimentos de pertencimento entre seus adeptos, enquanto deslegitima a pluralidade e a complexidade social.
Em vez de uma mera manifestação caótica, a violência é coreografada para produzir impacto emocional e mobilizar adesões, reproduzindo uma imagem de ordem e superioridade que se contrapõe à diversidade e à justiça social. Tal apropriação estética, longe de ser inofensiva, opera como um mecanismo de sedução e intimidação, sublimando a violência e desumanizando os alvos do ódio. Em última análise, essa valorização estética da violência se revela como uma estratégia ideológica que pretende, pela exaltação da brutalidade, fechar espaço para o debate democrático e legitimar a perpetuação de um estado de tensão e repressão.
Como a esquerda deve reagir frente as criações visuais por IA? O primeiro passo é reconhecer os problemas envolvendo seu uso e não replicá-lo. Quando as “armas do inimigo” constituem a identidade deste mesmo inimigo, utilizá-las é uma forma de rendição e reificação. Quanto às pessoas de direita ou influenciadas por suas versões radicais, o impacto ambiental da IA ou a pauperização dos artistas, certamente não as sensibilizará como argumentos. Talvez o melhor caminho, seja o de rir de pessoas que tratam a arte da IA como se fossem obras legítimas, como sugere o escritor inglês Gareth Watkins: “nossas armas mais eficazes contra a IA, e a direita que a adotou, podem não ser greves, boicotes ou o poder da dialética. Eles podem ser enfrentadas respondendo ‘criança’, ‘isso é uma porcaria’ e ‘isso parece uma merda’”.