28 Mai 2024
O boom da inteligência artificial disparou as necessidades de computação dos centros de dados e o consumo de água. Enquanto as resistências a esses complexos crescem em todo o mundo, grandes empresas de tecnologia buscam novas regiões para instalá-los. A Espanha entre eles.
A reportagem é de Pablo Jiménez Arandia, publicada por El Salto, 27-05-2024. A tradução é do Cepat.
“Meu interesse nesta questão vem porque já vivi isso”, diz Aurora Gómez enquanto caminha pelo parque Madrid Río, próximo ao rio Manzanares. Gómez, ativista pelos direitos digitais e ambientais, lembra um momento específico de sua infância ao falar sobre o projeto que o gigante da internet Meta – ex-Facebook – está prestes a construir em Talavera de la Reina, província de Toledo.
Aos 15 anos, Gómez ouviu pela primeira vez notícias sobre os planos de construir um aeroporto próximo à sua cidade natal, Ballesteros de Calatrava. Corria a segunda metade da década de 1990 e o governo de Castela-La Mancha da época decidiu expropriar algumas terras agrícolas muito férteis do seu avô. Sua família foi a julgamento e venceu. Mas nessa altura o Aeroporto de Ciudad Real, hoje um elefante branco em mãos privadas, do qual nenhum avião decola, já estava de pé.
Assim como aconteceu naquela época com esse aeroporto fantasma, o governo de Castela-La Mancha declarou o projeto planejado pela Meta de construir um enorme centro de dados como sendo de “singular interesse” para a região. Uma figura jurídica que facilita os trâmites que a empresa estadunidense deve cumprir para construir aquele que será o seu quarto centro deste tipo na Europa, o maior até o momento.
A aparência externa dos data centers pode variar bastante. Mas por dentro há poucas surpresas: fileiras de servidores colocados uns sobre os outros e que funcionam dia e noite. Uma espécie de fazenda da era digital que armazena e processa dados para que todos os tipos de aplicativos online possam funcionar. Nesses locais, a nuvem se torna física.
Nos últimos anos, as preocupações com o custo ambiental destas infraestruturas têm aumentado. Principalmente quando se fala dos maiores centros, conhecidos em inglês como hiperscale, um tipo de centro que atrai especialmente as grandes empresas de tecnologia devido às suas enormes necessidades computacionais. Países como a Irlanda, os Países Baixos e Singapura aplicaram recentemente diferentes tipos de moratórias à sua construção.
A Comissão Europeia também se concentrou neste tipo de complexos com a sua nova diretriz de eficiência energética, que em breve obrigará os proprietários de centros com uma capacidade instalada mínima de 500 kW a informar os seus gastos em energia.
Mas a eletricidade não é a única preocupação em torno destas infraestruturas. Os racks de servidores armazenados nos centros de dados necessitam de sistemas de refrigeração que evitem o aquecimento excessivo dos equipamentos. Embora as soluções técnicas variem entre uma instalação e outra, hoje é comum a utilização de tubulações com água fria para manter os servidores em temperatura constante.
Determinar quanta água um centro de dados consome não é fácil. Até agora, as grandes empresas de tecnologia têm se omitido, em muitos casos, a fornecer números precisos. Em outros, os dados revelados foram de pouca utilidade: nos Países Baixos, em 2021, em plena estiagem nacional, uma investigação jornalística revelou que um centro da Microsoft consumiu quatro vezes mais água do que a empresa tinha anunciado.
O atual boom da inteligência artificial está levando este problema a outro patamar. Os produtos da inteligência artificial generativa, como os chatbots ou aplicativos para criar conteúdo artificialmente, requerem capacidades computacionais nunca antes vistas. E, portanto, sistemas de refrigeração ainda mais potentes. Em consequência, diversas pesquisas indicam nos últimos meses um aumento contínuo na demanda de água por parte de gigantes da internet como o Google ou a Microsoft.
Em 2022, no calor da explosão deste tipo de tecnologia, a Meta redesenhou a estratégia global dos seus centros de dados, ao mesmo tempo que cancelou vários projetos que já contavam com trabalhadores no terreno. O novo plano da empresa de Mark Zuckerberg inclui a utilização de um chip de silício próprio – projetado para treinar modelos de IA – e milhares de processadores gráficos (GPU), que exigem uma demanda de energia muito alta e, portanto, maiores necessidades de refrigeração.
Consciente da crescente preocupação global em torno da água, a Meta e outros atores da grande indústria tecnológica procuraram durante anos soluções técnicas inovadoras para reduzir o seu consumo de água. Embora alguns deles, como o resfriamento por imersão, tenham sido descartados pelas dificuldades que isso acarreta.
Em março de 2023, o governo de Castela-La Mancha publicou uma primeira avaliação, aberta à consulta pública, do complexo que a Meta construirá em Talavera de la Reina. Dois meses depois, a Confederação Hidrográfica do Tejo, responsável pela gestão dos recursos hídricos desta região do interior peninsular, divulgou uma advertência: as projeções da empresa para a utilização de água potável para o projeto (665,4 milhões de litros anuais) deixariam muito pouca água disponível para outros usos nesta comarca.
Assim como em outras regiões espanholas, a falta de chuvas e o aumento das temperaturas têm provocado períodos de seca recorrentes nos últimos anos na bacia do Tejo, que irriga o território onde a Meta irá instalar o seu novo centro de dados. Embora estas terras não vivam uma situação tão extrema como outras áreas do país, nos últimos cinco anos as autoridades da região ativaram várias vezes planos de ação especiais contra a seca.
Diante dos alertas do órgão responsável pelo abastecimento de água, a Meta apresentou no ano passado um novo plano em que reduziu em 24% o consumo de água do projeto, após aplicar diversas medidas de eficiência. Entre elas a utilização de refrigeradores de ar seco para os servidores. Mas algumas vozes acreditam que os últimos números apresentados pela empresa não são suficientes para nos dar tranquilidade.
Miguel Ángel Hernández, da Ecologistas en Acción, destaca que os cálculos da disponibilidade hídrica foram feitos num “cenário médio”, tendo em conta tanto os períodos de seca como os de abundância dos últimos anos. “Mas acontece que caminhamos para um cenário em que há cada vez menos recursos disponíveis na bacia do Tejo. E em que as situações de crise, por episódios de altas temperaturas ou baixas precipitações, são cada vez mais graves”, analisa Hernández.
As dúvidas manifestadas por algumas vozes não impediram que o governo regional processasse oficialmente a avaliação de impacto ambiental do projeto em março passado, considerando o consumo de água esperado pela empresa proprietária do Facebook, Instagram e WhatsApp como “adequado” para a região.
Especialistas como Hernández, no entanto, acreditam que os cenários de seca extrema que, como outras regiões da Espanha, esta região, que fica a apenas uma hora e meia de carro de Madri, poderia sofrer, não são levados em consideração. “Como então serão resolvidos os problemas que surgem?”, pergunta Hernández, que garante que “o consumo de água do projeto leva ao limite a capacidade de abastecimento de Talavera”.
Susan Schaap mora em Zeewolde, uma pequena cidade da Holanda. Schaap lembra que a primeira vez que ouviu falar do centro de dados que a Meta planejava instalar em sua cidade foi durante uma videochamada organizada pela prefeitura. Na reunião, realizada online devido à Covid-19, estiveram cerca de 50 pessoas, entre vereadores e munícipes. Nela foram informados que o complexo planejado ocuparia um enorme terreno até então dedicado à agricultura.
Quando Schaap e seus vizinhos foram informados sobre esses detalhes, os enviados da empresa estadunidense já negociavam há meses com as autoridades locais. A falta de transparência em torno do projeto foi muito negativa para a população local, lembra Schaap. “A Meta dizia que a participação da comunidade era importante, mas enquanto isso escondiam tudo debaixo da mesa”. Da mesma forma, suas proporções – o centro seria o maior até então construído no país – e sua alta demanda por energia acabaram por colocar a maioria dos moradores contra ele.
“Se vamos pagar por isto, como cidadão tenho algo a dizer”, argumenta esta comerciária de profissão, convertida em ativista, que liderou o movimento de moradores há alguns anos contra o projeto Zeewolde, que foi finalmente cancelado pela empresa. Resistências semelhantes também ocorreram em países como Chile, Irlanda, México e Singapura, entre outros.
A procura de terrenos para a construção destas enormes infraestruturas é hoje um desafio para as grandes empresas tecnológicas. Num contexto de crescente oposição dos países da Europa Central e do Norte, as big tech voltam cada vez mais o seu olhar para o sul do continente. Numa tendência semelhante à que se vive do outro lado do Atlântico, onde os países latino-americanos acolhem cada vez mais infraestruturas deste tipo.
No sul da Europa, Portugal já se tornou um dos mercados que mais cresce nesta indústria. Também a Espanha, onde além da Meta, outros grandes atores tecnológicos como Google e Amazon construíram novos centros de dados nos últimos anos para satisfazer as suas necessidades de armazenamento e computação. Em fevereiro, a Microsoft anunciou um investimento milionário na Espanha que incluirá a construção de várias destas infraestruturas. A Amazon acaba de fazer o mesmo com um investimento para expandir três centros que já possui em Aragão e construir um novo.
Ana Valdivia é pesquisadora do Oxford Internet Institute (OII) e estuda os impactos dessa indústria no Sul Global. Valdivia antecipa que, paralelamente à expansão do setor, a resposta dos cidadãos aos grandes centros de dados também crescerá em países como Espanha, já sujeitos a eventos climáticos extremos. “Quando as pessoas estiverem conscientes do verdadeiro impacto destas infraestruturas, haverá mais resistência”, afirma.
O movimento da Meta, que conta atualmente com 24 centros de dados espalhados pelo mundo – a maioria deles nos Estados Unidos –, exemplifica bem essa tendência. Uma vez concluído, o centro de Talavera será o maior e também o mais meridional dos seus centros na Europa. Os outros três estão em países do norte do continente: Irlanda, Dinamarca e Suécia.
“[O armazenamento e o processamento de dados] é um problema para todas as grandes empresas de tecnologia, todas estão procurando onde construir”, explica um ex-engenheiro da Meta especializado no design de centros de dados, que trabalhou na empresa por um período de seis anos e prefere manter seu anonimato. Esta fonte salienta que hoje encontrar regiões “receptivas à construção” é “o fator fundamental” que leva estas empresas a decidirem por uma localização ou outra. Somam-se a isso fatores específicos de cada empresa, como as necessidades de conectividade, energia e um governo estável, explica.
Numa manhã ensolarada de janeiro, da fazenda de Luis Miguel Pinero é possível avistar ao fundo a Serra de Gredos coberta de neve. Logo atrás desta cordilheira ao norte de Talavera de la Reina, nasce o rio Alberche, que abastece a área onde será instalado o centro da Meta. Este rio afluente do Tejo irriga também as terras agrícolas de Pinero, um agricultor de barba grisalha e mãos calejadas pelo trabalho no campo.
Apoiado em uma prancha de madeira de sua fazenda, Pinero explica como nos últimos anos a região sofreu diversas restrições no abastecimento de água. Quando o caudal fornecido pelo Alberche não era suficiente, a água era desviada de outro caudal, o do Tejo, muito mais poluído. “Essa água não tem nenhuma serventia para mim”, diz este pequeno produtor de tomates orgânicos e outros vegetais.
Pinero está mais tranquilo este ano porque “choveu muito”. Não se trata apenas de chover o necessário para o campo, mas chover quando é preciso, explica. “Mas isso acontece cada vez menos. Chove cada vez mais de forma irregular. A mudança climática é perceptível aqui”, diz. As restrições no abastecimento de água que afetaram a sua terra nos últimos anos ocorreram especialmente no final de agosto e setembro, quando as reservas de Alberche já não foram suficientes.
Além da queda na qualidade da água, outro problema nestes períodos de seca tem sido as limitações de irrigação impostas pelas autoridades em determinados dias da semana, explica. O que levou a uma diminuição no número de culturas, como as couves, colhidas nessa época do ano. “Se for pego em agosto com pouca água, é problemático. É um período em que as couves ainda são pequenas”, diz. O mesmo se aplica aos tomates tardios do verão.
Ao contrário do que acontece em outros lugares, hoje em Talavera de la Reina e arredores praticamente não há resistência dos cidadãos ao grande centro de dados Meta. Pinero, que está cético quanto aos benefícios do projeto para a população local, acredita que tanto os políticos da região quanto a empresa assumiram a responsabilidade de retirar do debate público os possíveis efeitos negativos do projeto.
“As pessoas estão com a esperança que estes investimentos vão trazer empregos. Esse tipo de projeto deveria trazer isso, não é?”, pergunta Pinero, que viaja todas as semanas em sua van para Madri para vender seus produtos a atacadistas, a pontos de venda de produtos orgânicos e particulares. “Somos uma das áreas mais deprimidas da Espanha”, diz. Com uma taxa de desemprego de 24%, um declínio constante da população nas últimas décadas e um abandono permanente das instituições, muitos nesta região veem o investimento da Meta como uma possível salvação.
Mas outras vozes acreditam que é hora de repensar a construção de projetos tão exigentes em recursos. “Embora a empresa alegue eficiência, projetos como este têm um consumo muito elevado”, explica Begoña Valero, técnica de conservação da Ong SEO Birdlife, que acompanhou as diferentes fases de avaliação do complexo desde que começou a ser processado, há mais de dois anos.
Valero argumenta que é urgente uma maior consciência dos cidadãos sobre a pegada ambiental dos produtos e serviços digitais. “Devemos fazer a sociedade perceber que tudo isto, que parece tão etéreo, tem uma parte física. Que por trás dessas tecnologias estão essas infraestruturas”. E acrescenta que “o consumo de dados não vai diminuir”. “Quantos centros de dados são aceitáveis? Talvez tenhamos que racionalizar o uso dessas ferramentas”, reflete.
Em termos semelhantes se expressa Aurora Gómez, que há alguns meses criou, como forma de resistir ao centro da Meta em Talavera, a associação Tu nube seca mi río, para aumentar a conscientização sobre as consequências prejudiciais deste e de outros centros de dados na Espanha. Para Gómez, focar o debate na questão da eficiência energética dos data centers é um erro que só beneficia as grandes empresas de tecnologia, as únicas capazes de aplicar técnicas inovadoras em escala para reduzir os consumos de eletricidade e água.
E exige também falar da ameaça à nossa “soberania tecnológica” que, avalia, faz com que estes grandes complexos pertençam a um punhado de atores privados, capazes de impor uma narrativa associada ao “progresso” social e econômico da região – como aconteceu há 25 anos com o aeroporto que construíram nas terras da sua família, recorda. “Eles escolhem áreas despovoadas e envelhecidas, onde há pouca ou nenhuma resistência”, diz Gómez. “Nestas situações é quando pode surgir uma invasão do território”, conclui.
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IA e crise climática: as grandes empresas de tecnologia escolhem o Sul do mundo para instalar os seus gigantescos centros de dados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU