06 Dezembro 2024
“Desde a sua chegada a vários governos, os expoentes do novo rumo progressista se empenharam na retomada da integração regional. Estas tentativas envolvem especialmente a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac)”, escreve o economista argentino Claudio Katz, em artigo publicado por Viento Sur, 02-12-2024.
Mas adverte: “O principal obstáculo que a Celac enfrenta para retomar a integração regional é a preeminência dos TLCs [Tratados de Livre Comércio] de seus membros com o resto do mundo. Estes acordos são validados pelos governos da nova onda progressista”.
A tradução é do Cepat.
Claudio Katz é professor da cadeira “Economia para historiadores” da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e da Faculdade de Ciências Sociais e pesquisador do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia. Coordenou grupos de trabalho do CLACSO e é membro do Instituto de Pesquisas Econômicas da Argentina.
Desde a sua chegada a vários governos, os expoentes do novo rumo progressista se empenharam na retomada da integração regional. Estas tentativas envolvem especialmente a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Esta organização surgiu em 2010, promovida pelos líderes do progressismo anterior. Estes promotores formaram, pela primeira vez, uma instituição composta pelos 33 países da região, com a presença de Cuba e a exclusão dos Estados Unidos.
Na década passada, os arquitetos da restauração conservadora congelaram essa iniciativa e bloquearam o funcionamento da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Esta última organização perdeu 7 dos seus 12 membros originais e estava à beira do fechamento quando o presidente do Equador fechou a sua sede em Quito.
Em 2022, López Obrador promoveu o primeiro ressurgimento da Celac e no início de 2023 foi concluída sua revitalização em Buenos Aires. Dois líderes de centro-esquerda recentemente eleitos (Lula, Petro) participaram deste evento, juntamente com outros que surgiram de eleições anteriores (Luis Arce, Boric, Xiomara Castro) e o delegado do representante centroamericano (López Obrador). O anfitrião, Alberto Fernández, convidou também o expoente de um processo revolucionário (Díaz Canel) e porta-vozes do presidente mais contestado pelo establishment regional (Maduro).
A centralidade que o presidente mexicano teve na primeira reunião da Celac foi substituída na segunda pelo estrelato de Lula. Esta gravitação estava em sintonia com a estratégia promovida pelo presidente brasileiro para recuperar o protagonismo regional do Brasil através do fortalecimento dos laços com a Argentina.
A força motriz desta retomada foi a reconstituição do Mercado Comum do Sul (Mercosul). Lula assinou com o seu homólogo argentino um ambicioso acordo para recriar a integração de ambas as economias em 15 áreas, complementado por 14 eixos de convergência política. Desta forma, tentou reposicionar o seu país na vanguarda da região nas negociações com as grandes potências.
Mas esta revitalização do Mercosul requer a recomposição, antecipadamente, do equilíbrio interno no Brasil entre dois setores capitalistas muito díspares: os agroexportadores e os industriais. Lula, com o reinício das negociações para finalizar o acordo de livre comércio do Mercosul com a União Europeia, apoia o primeiro setor. Macri e Bolsonaro estiveram prestes a assinar esse acordo em 2019, mas não conseguiram superar as precauções do protegido agro europeu (especialmente francês) contra a potencial enxurrada de exportações competitivas da América do Sul.
Lula buscou o apoio da Argentina (e do agronegócio argentino) para chegar a um acordo. Ele propôs cláusulas ambientais que protejam os parceiros do Velho Continente de uma enxurrada de mercadorias provenientes do Novo Mundo. Estas regulamentações proibiriam a exportação de alimentos produzidos em áreas desmatadas, o que introduziria uma restrição autoimposta no volume de produtos embarcados.
A grande campanha de Lula contra os fazendeiros – que expandem a soja e a pecuária através da devastação da Amazônia –, conjuga a proteção ambiental com uma limitação às exportações para a Europa. O presidente já conseguiu desbloquear fundos internacionais para a proteção ambiental e promete vincular qualquer aumento nas vendas externas à maior produtividade do setor (e não à extensão da fronteira agropecuária).
Mas a União Europeia exige maiores garantias de restrições às exportações e pressiona alegando sua preocupação com o ambiente. Com este pretexto, ameaça punir os países sul-americanos que violarem os parâmetros de proteção climática estabelecidos pelo Velho Continente.
Os industriais paulistas, por sua vez, relutam em aceitar um acordo com a Europa que não abra novos mercados e envolva o risco de importações adversas. Obtiveram, porém, enormes benefícios com a retomada do Mercosul. Os fabricantes paulistas lucram com essa união aduaneira no setor automotivo e são os candidatos a obter maiores lucros nos setores que seriam incentivados nas próximas negociações (naval, têxtil, calçadista).
O Brasil é o quarto maior investidor estrangeiro na Argentina e os capitalistas da sua indústria aproveitam o déficit comercial enfrentado pelo seu sócio fronteiriço. O empresariado paulista apoia esses negócios ao mesmo tempo em que promove a incorporação de novas linhas de exportação (suprimentos bélicos) aos acordos do Mercosul.
Lula também incentivou a utilização de um mecanismo de financiamento do comércio interregional por meio de uma unidade de conta que já existe, mas está em estado de hibernação desde 2008. Esse instrumento permite limitar o uso de dólares para a troca entre os dois países por meio de créditos concedidos e compensados pelos bancos centrais, utilizando os seus próprios meios de pagamento.
O promovido sinal comum (Sul) cumpriria, de fato, essa função e complementaria os maiores créditos que o Brasil forneceria ao seu cliente argentino para financiar as exportações subsequentes.
Este esquema é muito comum na atividade comercial de outras regiões e teve um esboço nos países da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) com o Sucre [Sistema Único de Compensação Regional]. Mas está muito longe da moeda comum ou do fundo de estabilização compartilhado que sustentaria uma Nova Arquitetura Financeira. Por enquanto, favorece um grande aumento nas vendas para os negócios brasileiros.
As propostas financeiras do Brasil proporcionam um alívio imediato para a falta de divisas que a Argentina sofre para o fornecimento corrente de suas importações. Esta carência é uma consequência da sufocante supervisão que o Fundo Monetário Internacional (FMI) exerce sobre as suas reservas cada vez menores.
Mas ninguém sabe como o Banco Central desse país garantiria os compromissos assumidos no acordo. Outra questão são os efeitos do maior déficit no comércio industrial que o acordo prevê. Certamente existe uma correlação positiva entre o crescimento do Brasil e o Produto Interno Bruto (PIB) da Argentina. Mas a locomotiva paulista opera mediante a subordinação do seu vizinho do sul.
Essa sujeição econômica será fortalecida com o financiamento brasileiro da expansão do gasoduto argentino que distribui o combustível gerado em Vaca Muerta. Esse abastecimento de energia – que chegaria a Porto Alegre a preços competitivos – é o principal atrativo imediato da renovação do Mercosul para os industriais brasileiros. Estes fabricantes enfrentam o declínio da oferta de gás boliviano, fortemente afetado pelo esgotamento das suas reservas.
Num período muito curto de tempo, a Argentina poderá triplicar as suas exportações de gás, mas fortalecendo o perfil extrativista de uma economia definitivamente no trilho da primarização.
A recriação do Mercosul exige também a permanência do Uruguai, que testa um Acordo de Livre Comércio (ALC) com a China. O establishment desse país pretende multiplicar as suas exportações básicas e não tem nenhuma indústria ameaçada pela esperada enxurrada de importações asiáticas. Os seus porta-vozes promovem um modelo de extrativismo extremo, que negociam com o melhor licitante externo, destruindo os bens comuns do país. O que aconteceu com a água é um exemplo dessa degradação. O Uruguai é um país de clima temperado e úmido, irrigado por numerosos rios e córregos, mas que está ficando sem fontes de água devido à onipresença da celulose, da soja transgênica e da pecuária intensiva. Estas atividades combinam a absorção irracional de água com uma grande exposição aos agrotóxicos.
Lula procura dissuadir Lacalle Pou de fechar um acordo unilateral com a China, ressaltando o atrativo exportador oferecido pelo prometido acordo do Mercosul com a União Europeia. Também sugere um acordo posterior com a China sob a sua própria liderança. Com esse mesmo propósito da liderança brasileira, promove a introdução da Bolívia e a reincorporação da Venezuela ao Mercosul.
Mas a reativação dessa organização pressupõe uma vitalidade que não se vê na economia brasileira. O PIB per capita deste país está praticamente congelado há mais de uma década e o emprego não está crescendo. Esta estagnação vai além da conjuntura e não é mera consequência do cenário internacional adverso causado pela pandemia e pela guerra.
O Brasil está em sério declínio há muitos anos; retrocesso que se deve às fragilidades estruturais de uma economia semiperiférica afetada pela reorganização do capitalismo mundial. Devido a este declínio, não desempenha na região um papel equivalente ao da Alemanha na União Europeia e nem apresenta a vitalidade produtiva necessária para redirecionar o Mercosul.
Esta fragilidade explica por que a derrota da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) – e o subsequente freio ao projeto de livre comércio promovido pelos Estados Unidos – não levou ao surgimento da união aduaneira sul-americana. Pelo contrário, esse acordo definhou, enquanto os seus sócios menores exploravam alternativas para se unirem a outros líderes importantes.
Além disso, na sua administração anterior, Lula minou a iniciativa de criar uma organização financeira regional (Banco do Sul) para privilegiar os negócios das empresas brasileiras através da sua própria entidade: o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Portanto, o Mercosul enfrenta sérias dificuldades internas para transformar a Celac num grande motor da integração latino-americana. Estas limitações foram reforçadas pela chegada de Milei à presidência argentina, com um projeto hostil a qualquer entrelaçamento econômico da América do Sul. Ainda não se sabe como esta rejeição afetará as negociações do acordo entre o Mercosul e a União Europeia.
Na última sequência das preliminares para as negociações, as pontes abertas por Lula com altos funcionários do Velho Continente esbarraram na oposição de Macron na França e de Fernández na Argentina. Pelo contrário, os porta-vozes de Milei se mostraram favoráveis a um acordo. A diversidade de posições em jogo em torno deste acordo ilustra a plasticidade cruzada de interesses do agronegócio e da indústria na Europa, França, Brasil e Argentina. Estas forças desintegradoras afetam tanto o Mercosul como a Celac.
O principal obstáculo que a Celac enfrenta para retomar a integração regional é a preeminência dos TLCs [Tratados de Livre Comércio] de seus membros com o resto do mundo. Estes acordos são validados pelos governos da nova onda progressista. Ninguém discute a sua continuidade.
Nos países onde estão consolidados, tampouco se avalia a sua revisão. São considerados um fato natural da economia; por isso, prosperam as iniciativas de expansão para outras regiões do mundo. A resultante fratura da região – que sempre favoreceu o neoliberalismo– é, de fato, aceita pelos seus rivais de centro-esquerda.
Este cenário é muito visível nos quatro membros da Aliança do Pacífico, cujas novas administrações progressistas ratificaram os TLCs em vigor. Exalta-se a meta da tarifa zero, respaldando a expansão do comércio irrestrito com a região asiática.
No Chile verifica-se a maior adesão a estes acordos. O governo Boric não só abençoou a sua validade, mas também deu seu aval à incorporação do país no Tratado Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP-11) com as principais economias da Ásia-Pacífico. Este tratado abre as alfândegas a todos os tipos de importações e apoia a apropriação estrangeira de recursos naturais. O governo liberou inclusive os entraves que esse pacto enfrentava no Congresso desde 2019.
A frustrada Convenção Constituinte chilena também não examinou as mudanças nos mecanismos comerciais do modelo neoliberal. As suas leves sugestões de revisão foram tão arquivadas como a reconsideração da gestão do cobre, a modificação dos royalties mineiros, a reformulação do imposto sobre a renda ou a remodelação do sistema privado de pensões.
A mesma acomodação foi promovida pelo caótico governo peruano de Castillo. Este presidente propôs reverter o brutal extrativismo que prevalece na mineração, mas essa promessa foi esquecida. A irracional abertura comercial que o Peru conseguiu levou esse país a exportar batatas recém-colhidas, que retornam congeladas e embaladas ao mercado local.
Na Colômbia, Petro fez saber que as prioridades do seu país estão localizadas no campo político de alcançar a paz. Os seus economistas também estão avaliando uma reforma fiscal para aumentar as receitas e proporcionar algumas melhorias sociais. Nesta agenda, os TLCs são intocáveis, apesar da destruição que causaram em determinados setores da produção, como a atividade leiteira. A ênfase do novo presidente na proteção ambiental também entra em conflito com a validade destes acordos.
A administração de López Obrador começou com a ratificação do renovado acordo de livre comércio com os Estados Unidos e o Canadá (T-MEC). Este tratado consolida a permanência do México na zona do dólar e explica a relutância que AMLO demonstra em relação a qualquer projeto futuro de uma moeda comum latino-americana.
Os seus porta-vozes, por sua vez, defendem a continuidade do entrelaçamento com Washington e Ottawa com argumentos distanciados do neoliberalismo. Afirmam que a proximidade com o Norte permitirá aumentar a autonomia do México, ao facilitar um desenvolvimento que ampliará a soberania do país. Propõem “estar mais perto dos Estados Unidos, para ser mais autônomo em relação ao gigante”.
Mas até agora não foi corroborada nenhuma expansão significativa da economia devido às repercussões do T-MEC. Pelo contrário, o tratado recria os inúmeros desequilíbrios na produção e no consumo. O México sofre de baixo crescimento com elevada desigualdade, êxodo rural e informalidade laboral, o que explica a dramática dimensão do narcotráfico. O acordo com os Estados Unidos não gera um perfil diferenciado do regressivo padrão latino-americano.
A expectativa de maior autonomia por maior proximidade também apresenta sérias contradições conceituais. Representa um fortalecimento dos laços com os Estados Unidos, que sempre levaram a caminhos contrários à soberania. Salta à vista a contundente tensão desse rumo com a proclamada meta da unidade latino-americana.
Na região, todas as variantes do TLC em vigor favorecem os negócios dos grupos exportadores em detrimento do crescimento interno. Esses setores priorizam o retorno imediato das vendas externas ao desenvolvimento articulado que pavimenta a integração. A Celac responde a esta contradição com ambiguidades. Em seus eventos, repetem-se os discursos da fraternidade latino-americana, mas sem passar por nenhuma das etapas necessárias para consolidar essa familiaridade.
Alguns participantes da cúpula de Buenos Aires, como Petro, reconheceram esta impotência (“falamos muito de união, mas fazemos pouco para realmente obtê-la”). O balanço geral do encontro corroborou esse diagnóstico. O grande problema é que as grandes iniciativas de soberania regional – na esfera alimentar, energética ou financeira – exigem firmeza face ao imperialismo estadunidense, o que o novo progressismo não apresenta.
Os Estados Unidos são o inimigo histórico da unidade latino-americana. No último século, sabotaram todas as iniciativas para criar um bloco regional que ameaçaria o seu domínio sobre o quintal. Exerce esse controle através de entidades digitais (OEA) e promove alinhamentos de direita (Grupo do Rio) para minar as organizações autônomas da América Latina.
A institucionalização da Celac é frontalmente rejeitada por Washington, que teme perder a tradicional influência da OEA. Essa instituição apadrinhou todos os golpes militares, judiciais, midiáticos e parlamentares dos últimos anos, e é normalmente chamada como árbitra para resolver os conflitos internos. Desempenha um papel particularmente ativo na fiscalização das eleições, como entidade que legitima a validade das eleições. Maduro propôs que a Celac substituísse a OEA nessas funções e obteve alguns acenos, mas não o apoio efetivo dos demais líderes.
Os Estados Unidos observam com grande desagrado a eventualidade de ações econômicas coordenadas por parte da América Latina. Rejeita não apenas a presença de concorrentes europeus ou asiáticos na região, mas também as iniciativas dos rivais com capital local. Sempre promoveu a associação subordinada das classes dominantes da região e obstrui qualquer coordenação estatal fora do seu controle. Em particular, resiste às propostas patrocinadas por um dos três países de dimensão média da região.
Desde a fracassada tentativa de forjar um tratado pan-americano sob sua supervisão direta (ALCA), os Estados Unidos optaram por assinar acordos bilaterais. Mas o único acordo significativo que conseguiram consumar se desenvolve no hemisfério norte. A partir dali, impulsionam projetos para todo o continente. O T-MEC com o Canadá e o México é o seu único instrumento econômico eficaz para fazer frente às tentativas latino-americanas de integração.
Sua aposta mais recente é a ampliação do T-MEC aos países dispostos a assinar novos TLCs com o gigante do norte. Já está promovendo o início dessas negociações com o Equador, Uruguai, Paraguai e República Dominicana. Com estas iniciativas, espera lançar um projeto mais abrangente de competição regional com a China (Aliança para a Prosperidade Econômica das Américas).
Washington apregoa a conveniência de unir negócios sob o seu patrocínio, destacando as desvantagens da convergência regional. Mas esta publicidade esquece as nefastas consequências da ponderada proteção ianque. Um século de dependência, subdesenvolvimento e pobreza fornece provas suficientes das sequelas de qualquer modelo acordado com o Norte.
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América Latina. Os dilemas regionais do progressismo. Artigo de Claudio Katz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU