26 Julho 2024
"No último conclave do Mercosul – ao qual a Bolívia aderiu como membro de pleno direito – prevaleceu um clima otimista sobre o futuro do bloco e as diferenças puderam ser processadas num quadro partilhado. Porém, a ausência de Javier Milei levantou dúvidas sobre o papel da Argentina no bloco", escreve Julieta Zelicovich, doutora em Relações Internacionais pela Universidade Nacional de Rosário - UNR, na Argentina, pesquisadora associada do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas - Conicet da Argentina e professora da UNR.
O artigo foi publicado por Nueva Sociedad, julho de 2024.
O futuro está junto. Esta foi a principal conclusão da 64ª Cúpula do Mercado Comum do Sul - Mercosul, realizada no início de julho em Assunção, no Paraguai. Os membros do bloco encontraram, na capital paraguaia, mais coincidências do que o esperado e reafirmaram a disposição de priorizar a integração conjunta como mecanismo de inserção internacional. Se levarmos em conta as divergências expressas em cúpulas anteriores, as dificuldades do comércio intrazona e as crescentes tensões entre o brasileiro Luiz Inácio Lula Da Silva e o argentino Javier Milei, esta é uma grande conquista para o Mercosul.
Os documentos e discursos da 64ª Cúpula refletem um Mercosul ativo e próspero, com inúmeras coincidências e poucas diferenças, que consegue superar a distância ideológica entre os membros e o contexto internacional em mudança. O semestre da presidência pro tempore do Paraguai termina com 420 reuniões realizadas em todos os níveis da estrutura institucional do bloco formado por Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai e, agora também pela Bolívia, com a aprovação de 69 diretrizes da Comissão do Comércio, 19 resoluções do Grupo Mercado Comum - GMC e seis decisões do Conselho Mercado Comum - CMC, além da entrada em vigor de alguns importantes instrumentos regionais.
Depois de anos tempestuosos, o Mercosul parece entrar num período de calma e dar sinais de um rumo renovado para a integração regional.
Vários fatores - mudanças nos padrões de produção da região associadas à reprimarização das cestas de exportação, à polarização política, à pendularidade ideológica dos governos da região e às transformações da economia global - levaram o Mercosul a crises sucessivas, nas quais tanto a dinâmica intra-regional como o papel da o bloco como plataforma de inserção internacional de seus membros foram questionados pelos governos dos quatro países, embora nunca simultaneamente. O modelo do Tratado de Assunção (1991) e do Protocolo de Ouro Preto (1994) estava estagnado.
Iluminar um significado para a integração regional num contexto turbulento não foi uma tarefa fácil. Hoje pode ser visto antes como um acúmulo de peças que, aos poucos, foram dando sentido ao quebra-cabeça: entre outras, a reativação da agenda externa em 2016; o trabalho de atualização da estrutura institucional do bloco lançado em 2019; e a reativação do Grupo Ad Hoc para Examinar a Consistência e Dispersão da Tarifa Externa Comum - GAHAEC, naquele mesmo ano. Estas peças lançavam as bases, num processo não isento de tensões, de um trabalho técnico e sustentado para um possível Mercosul.
Na 64ª Cimeira, este trabalho anterior permitiu-nos chegar a acordo sobre um roteiro com as prioridades acordadas para o bloco regional. Estas prioridades podem ser organizadas em três pilares: reforço da integração regional, desenvolvimento de infra-estruturas físicas e negociações externas.
Em relação ao primeiro destes pilares – o fortalecimento da integração regional –, o Mercosul procura dotar-se de instrumentos que lhe permitam aumentar o intercâmbio entre parceiros e melhorar a sua qualidade. O comércio intrazona representa em média 10,5% das vendas totais dos países membros e apresenta tendência decrescente. Aumentaram as barreiras técnicas e fitossanitárias, o que dificultou a circulação de mercadorias. A recente criação do Comitê Ad Hoc sobre Medidas que Afetam o Comércio Intrazona - CAH-MACI pode marcar uma mudança nesta dinâmica, pois favorece um diagnóstico preciso das barreiras ao comércio intrazona e a possibilidade de ter um mecanismo institucionalizado para encontrar soluções e facilitar o intercâmbio, em linha com os objetivos do Tratado de Assunção.
Outros avanços neste primeiro pilar incluem a entrada em vigor do novo Regime de Origem do Mercosul, que adapta a regulamentação do bloco às práticas internacionais; a criação de um Grupo Ad Hoc de Propriedade Intelectual - GAHPI, considerado prioritário para o ambiente de investimento associado à I&D; e também a entrada em vigor do Acordo de Defesa da Concorrência do Mercosul. Destacam-se os progressos registados na Agenda Digital, com a implementação de mecanismos de coordenação e cooperação no domínio da cibersegurança, bem como a continuação dos trabalhos relacionados com a revisão da tarifa externa comum, visando dar-lhe consistência e reduzir a dispersão desta instrumento.
Em termos de integração física, o segundo pilar do roteiro, os membros concordam que a conectividade e a dinâmica fronteiriça são fundamentais para dar valor ao Mercosul. Nessa linha, a normalização da dívida do Brasil com o Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul - FOCEM, em 2023, fez com que este instrumento pudesse dar continuidade a diversos projetos: foram priorizadas oito novas iniciativas com financiamento de 70 milhões de dólares. O Grupo de Trabalho de Infraestrutura Física tem servido como fórum de intercâmbio e coordenação de políticas voltadas à conectividade em todos os níveis, com especial destaque para o Corredor Rodoviário Bioceânico e a Hidrovia. Os défices de conectividade têm sido, até agora, um dos principais obstáculos à integração: a prioridade dada ao pilar das infraestruturas pode começar a mudar esse panorama.
As negociações externas são o terceiro componente prioritário no presente e no futuro do Mercosul. Existe um consenso partilhado relativamente à necessidade de melhorar as condições de acesso a mercados terceiros e de canalizar esse esforço através de negociações conjuntas. Além disso, começa a surgir um certo acordo para flexibilizar as modalidades de negociação através de uma geometria variável, com velocidades diferentes para cada membro. As autoridades dos quatro países manifestaram o seu apoio à priorização desta agenda, e mesmo a Argentina - de forma mais subtil - e o Uruguai - explicitamente - sugeriram a opção de o fazer a velocidades diferentes.
Na agenda estão atualmente uma dezena de negociações em andamento que, se finalizadas, poderão significar acesso preferencial aos mercados para os setores produtivos do Mercosul, com cobertura equivalente a 45,2% do total das exportações atuais e 33,3% das importações, além de uma atualização regulatória e cooperação e mecanismos de resolução de disputas sobre questões comerciais e relacionadas com diversos parceiros.
As negociações foram concluídas com Singapura em 2023, o que marcou o primeiro acordo do Mercosul com um país do Sudeste Asiático. As traduções estão sendo revisadas. Com a União Europeia, está prevista uma reunião de negociadores-chefes e técnicos em setembro, em Brasília, quando estiver concluída a mudança de autoridades em Bruxelas, com o objetivo de desbloquear o acordo adiado.
As negociações com a Associação Europeia de Comércio Livre - EFTA também estão avançadas. Entre as novas frentes destaca-se a adoção do Quadro Geral para as negociações de um Acordo de Parceria Econômica Abrangente com os Emirados Árabes Unidos, com uma primeira sessão de negociação em julho de 2024. Acrescenta-se também a reativação do diálogo com o Japão. A nível regional, as negociações com El Salvador, a República Dominicana e o Panamá completam o quadro. Além disso, para o próximo semestre, o Uruguai propôs a reativação do mecanismo de diálogo regional com a China, proposta que encontrou bom eco nos demais membros do bloco.
Estas ações estão deixando para trás – por enquanto – as recorrentes tensões relacionadas com a flexibilidade do Mercosul. Há apenas dois anos, em novembro de 2022, Argentina, Brasil e Paraguai apresentaram um protesto formal ao Uruguai pelo início das negociações para adesão à Parceria Transpacífica. Hoje, ao contrário, os membros concordam em priorizar o espaço do bloco como instrumento e o valor dos esforços conjuntos nas negociações externas é reconhecido. Existe uma ideia partilhada de que os membros podem, ao mesmo tempo, fortalecer o bloco e tornar-se mais integrados com o mundo. O acordo com Singapura, neste sentido, teve um valor estratégico para além do seu conteúdo específico, ao apontar a capacidade do Mercosul de alcançar resultados neste terceiro pilar do roteiro.
A 64ª Cúpula e os trabalhos do primeiro semestre de 2024 começam a delinear novos consensos e agendas que redefinem o significado da integração à luz das mudanças no cenário global. Num contexto de crescente fragmentação geoeconómica e incerteza geopolítica, o Mercosul ganha valor estratégico para os seus membros, para além de uma leitura estrita das trocas de bens e serviços. Por um lado, existem propostas que sugerem o potencial do bloco para ganhar massa crítica em indústrias estratégicas e melhorar o impacto dos países à escala global; Por outro lado, também surgem argumentos sobre as possibilidades de exploração do mercado ampliado para facilitar a adaptação na transição energética e enfrentar os desafios externos, reduzindo a vulnerabilidade internacional dos países membros.
A agenda de integração energética é uma das mais proeminentes na conversa sobre um Mercosul do futuro. Os participantes na Cimeira concordaram na importância desta dimensão e no reforço da interligação eléctrica e de gás. Destacaram também as complementaridades dos diferentes recursos de cada país e como a integração pode permitir uma maior incorporação de fontes de energia renováveis nas redes de distribuição, cumprindo assim os objetivos das alterações climáticas.
Nessas ações e na recente incorporação da Bolívia como membro pleno – concluída neste semestre após a conclusão do processo de ratificação do seu protocolo de adesão assinado em 2015 – o Mercosul tem potencial para se tornar um ator incontornável na transição energética em escala global. Na mesma linha, o Grupo Ad Hoc sobre Comércio e Desenvolvimento Sustentável - GAHCDS tem realizado ações destinadas a garantir que os membros do Mercosul tenham ferramentas para ajustar o equilíbrio entre comércio e desenvolvimento sustentável, e para contestar situações de "protecionismo verde" antes de terceiros partes » que impactam negativamente a região. Com efeito, os trabalhos recentes centraram-se no diagnóstico das ações do Mercosul no comércio e no desenvolvimento sustentável, e nas medidas e políticas de desenvolvimento sustentável promovidas por terceiros países com impacto comercial no bloco.
Em seus discursos de Cúpula, os ministros das Relações Exteriores e os presidentes também sugeriram novos temas nos quais, segundo os Estados membros, o Mercosul tem alto potencial. Nessa linha, o Brasil delineou propostas para a formação de uma aliança de produtores minerais críticos e outra para governança regional de dados. O Uruguai apontou oportunidades de crescimento na exportação de serviços, postulando o Mercosul como um centro de “intelecto”. Argentina e Paraguai propuseram abordar a regulamentação da inteligência artificial em escala regional. O Paraguai também destacou a importância fundamental do Mercosul como plataforma agroalimentar, com um papel estratégico para a sustentabilidade alimentar e a segurança energética.
Diante do equilíbrio apresentado, é difícil sustentar que o Mercosul “não faz”, mas também não podemos ser ingênuos e cair no otimismo excessivo. Quem está fora da história do bloco regional ficará surpreso ao saber que os resultados da 64ª Cúpula são recebidos com a maior cautela: persistem críticas sobre as promessas não cumpridas de integração regional e ainda há um longo caminho a percorrer para passar das palavras às ações. Também não se pode ignorar que a ausência de Javier Milei na Cúpula é um sinal que gera incerteza quanto aos compromissos da Argentina. Também entre as questões pendentes estão vários documentos importantes ainda não ratificados.
Assim que surgiram núcleos de consenso, surgiram diferenças na Cimeira entre os membros, prevendo negociações tensas nos próximos meses. Por um lado, estão pendentes negociações para os dois setores que têm tratamento especial dentro da zona de livre comércio: as indústrias automotiva e açucareira. Em relação ao primeiro, ficaram evidentes as diferentes visões estratégicas: o Brasil aspira incorporar o setor ao comércio livre intrazona, enquanto a Argentina visava preservar os acordos bilaterais. Paraguai e Uruguai, por sua vez, apontaram as assimetrias do bloco e introduziram na discussão a abordagem da eletromobilidade. No setor do açúcar, o Grupo Ad Hoc não se reuniu no primeiro semestre de 2024.
Por outro lado, a falta de internalização regulatória lança sombras sobre o bloco. Entre outros instrumentos relevantes, a VIII Rodada de Negociações sobre Compromissos Específicos em Serviços, o Acordo sobre Comércio Eletrônico, o Acordo sobre Localidades Fronteiriças Vinculadas e o Acordo ainda não entraram em vigor – devido à falta de ratificação por parte de alguns de seus membros, a Eliminação da Cobrança de Tarifas de Roaming Internacional aos Usuários Finais do Mercosul. Em relação à Tarifa Externa Comum, embora a Argentina ainda não tenha ratificado a reforma de 2022, os demais membros já a aplicam.
Um terceiro ponto a considerar é o posicionamento do governo “libertário” de Javier Milei. A ausência do presidente argentino na Cimeira, consequência da escalada das tensões com Lula da Silva, fez-se sentir nos discursos dos restantes presidentes, que protestaram contra a ausência. O desdém de Milei pela reunião do bloco contrastou, porém, com a posição construtiva que o Itamaraty assumiu na reunião. Isto levanta dúvidas quanto ao grau de compromisso que Buenos Aires terá com os seus parceiros regionais. A posição da chanceler Diana Mondino encontra limites nos cargos do núcleo dirigente, dos quais a ministra não participa. Por exemplo, a reformulação das políticas de género na Argentina levou o novo governo a opor-se à proposta do Paraguai de criar um espaço de trabalho para abordar o papel das mulheres no comércio do Mercosul - algo que está em linha com os desenvolvimentos de outros blocos de integração regional e organizações internacionais. Outro ponto de conflito é que, ao mesmo tempo em que defendia em discursos a redução da tarifa externa e sua dispersão, a Argentina também solicitava o aumento do número de itens isentos.
No contexto da 64ª Cúpula, o Mercosul mostra capacidade de se recuperar das crises e funcionar mesmo quando há divergências ideológicas entre os presidentes. Lula da Silva, que participou em mais cimeiras do bloco regional do que qualquer um dos seus homólogos, aponta duas definições fundamentais: por um lado, a da resiliência do bloco - “O Mercosul é resiliente e sobreviveu a anos difíceis de desintegração” - e por outro, o momento de redefinição estratégica - «O Mercosul será o que queremos que seja".
O Mercosul está imerso num processo lento e gradual de redefinição dos seus horizontes e destinos partilhados na nova ordem internacional. Se na década de 1990 a integração regional visava proteger as democracias e promover o desenvolvimento através da expansão dos mercados num ambiente de globalização crescente, hoje a interacção regional necessita de ser dotada de um novo significado.
A 64ª Cimeira pode ter encontrado algum consenso para esse fim. A construção de prioridades e a agenda emergente delineiam dois papéis fundamentais para a integração regional: por um lado, a redução da vulnerabilidade externa dos membros, com o fortalecimento da integração em áreas como energia e infraestrutura ou uma abordagem comum de tecnologias disruptivas, como inteligência artificial; e, por outro, o reforço da sua capacidade de influenciar os mercados globais, prevendo capacidades regionais para novos setores estratégicos, como as cadeias de valor de minerais críticos, mas também agroalimentares e de serviços. No geral, existe uma compreensão partilhada do valor estratégico do bloco para além do estritamente comercial.
A persistência da falta de internalização e aplicação das regras, bem como o uso extensivo de exceções, indica que essas convergências nos discursos ainda precisam percorrer um longo caminho para se refletirem em mecanismos que orientem efetivamente as políticas econômicas de inserção internacional dos países. As agendas priorizadas destinadas a normalizar e fortalecer a integração regional, bem como as negociações externas, não produzirão resultados no curto prazo e exigirão uma boa estratégia de comunicação dos progressos para alcançar a paciência necessária entre aqueles que exigem mudanças imediatas. As crescentes tensões entre presidentes, num contexto de sociedades cada vez mais polarizadas, são também um alerta relativamente à coesão da integração regional num momento de reconfiguração dos interesses globais.
A recente cimeira marca assim um rumo possível e partilhado, com a integração regional como ferramenta para se inserir na dinâmica global. Ele ressalta ainda que esse caminho não será fácil nem isento de tensões, mas que os membros do Mercosul estão dispostos a percorrê-lo juntos.
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A resiliência do Mercosul. Artigo de Julieta Zelicovich - Instituto Humanitas Unisinos - IHU