05 Dezembro 2024
“Todos jogam xadrez na Síria. Todos querem avançar em seus interesses à custa da população local, sequestrada há mais de doze anos por ingerências regionais e internacionais. Resta observar se as forças locais terão ou não alguma margem para continuar avançando em sua recuperação de territórios”, escreve Leila Nachawati, especialista em Oriente Médio, em artigo publicado por Público, 03-12-2024. A tradução é do Cepat.
“Deter a agressão”. Este é o lema da ofensiva, lançada em 27 de novembro por vários grupos rebeldes no noroeste da Síria, que em poucos dias alcançou resultados sem precedentes: a tomada da maior parte de Aleppo e do enclave estratégico de Saraqib, que liga Aleppo a Damasco, além de diversos pontos da província de Hama. Este avanço, que provocou um colapso nas linhas do regime de Bashar al-Assad, marca um novo ponto de inflexão na guerra síria, reconfigurando o mapa do norte do país.
As imagens da ofensiva rebelde já são históricas: soldados do regime fugindo em debandada, combatentes rebeldes agitando a bandeira verde, branca e preta em áreas até recentemente controladas pela ditadura. Também reencontros emocionantes entre famílias separadas durante mais de uma década de revolução e guerra, e cenas de libertação de dezenas de homens e mulheres presos durante anos em prisões como a de Tarek Bin Ziad.
A reação do regime e de seu aliado russo não demorou a chegar. Como tem sido habitual nos últimos anos, a tática consistiu em bombardear núcleos populacionais onde vivem, em sua maioria, pessoas dupla ou triplamente deslocadas, provocando centenas de vítimas civis. No entanto, o atual contexto local é outro e a capacidade do regime de enfrentar o avanço rebelde se diferencia muito de anos anteriores.
O que implica esta ofensiva e como foi possível? O panorama sírio é tão complexo que é fácil se perder entre os interesses locais e as agendas das grandes potências, que transformaram o país em um campo de batalha geopolítico. Existem muitas dúvidas, questões contraditórias, unidades de ação impensáveis em outros momentos. Um emaranhado que desafia visões simplistas e requer mais nuances do que podem ser fornecidas em um único artigo. Com a informação disponível, vamos tentar identificar algumas chaves.
O fato de a ofensiva ter como alvo Aleppo é particularmente simbólico, porque a cidade, que chegou a se tornar o epicentro da resistência contra o regime de Bashar al-Assad, encarna tanto as esperanças quanto as tragédias do processo revolucionário sírio.
Entre 2012 e 2016, quando o leste de Aleppo permaneceu fora do controle do regime, emergiu um processo de autogestão revolucionária que inspirou outras regiões libertadas. Durante esse período, foram criados conselhos locais para gerir serviços básicos como água, saúde e educação, mas também com o propósito de assentar as bases de um futuro para a Síria com representação popular e com um papel significativo para as mulheres. No entanto, este processo de experimentação revolucionária foi frustrado pela intensificação dos bombardeios por parte do regime sírio e seus aliados russos e iranianos. A agressão incluiu ataques indiscriminados com barris explosivos e artilharia pesada, e o uso da fome como arma de guerra.
O documentário Para Sama, de Waad Al-Kateab, capta muito bem esses “cinco anos de amor, morte e esperança”. Também o livro País em chamas: Sírios na revolução e na guerra, de Leila Al-Shami e Robin Yassin-Kassab, que apresenta testemunhos em primeira mão de combatentes da oposição, ativistas locais e defensores dos direitos humanos. Oito anos depois, o contexto é muito diferente, mas o simbolismo de ver a bandeira revolucionária síria agitada ao lado da palestina na cidade de Aleppo, arrasada pelas forças do regime sírio, do Irã e da Rússia, é inegável.
Do bairro cristão de Al-Suleimaniya, em Aleppo, chegam nestes dias cenas de aparente normalidade natalina, apesar dos esforços do regime em incidir no caos desencadeado na cidade. Também outras como a protagonizada por Ahmad Al-Dalati, do grupo Ahrar al-Sham, que visitava uma mesquita de Aleppo após doze anos, e cujo conteúdo é revelador da pretensão local e antissectária de grupos anteriormente opositores.
A atual ofensiva é liderada por Hayat Tahrir al-Sham (HTS), uma coalizão considerada sucessora da Frente al-Nusra, antigo braço da Al-Qaeda na Síria. Desde 2017, o HTS tem tentado se desvincular de suas raízes extremistas, exercendo sua influência no norte do país através do chamado Governo de Salvação da Síria, uma administração local encarregada de gerir serviços civis como a economia, a saúde e a educação. Paralelamente, o Exército Nacional Sírio, uma coalizão apoiada pela Turquia que reúne facções islamistas, nacionalistas e antigos remanescentes do Exército Livre da Síria, mobilizou-se em direção a Tel Rifaat, local controlado pelas forças curdas com o apoio dos Estados Unidos.
Já em maio de 2023, o líder do HTS, Mohammad al-Golani, falou sobre a “alta moral revolucionária” e quão próxima estava a recaptura de Aleppo. As suas palavras refletem uma estratégia de longo alcance que parece que estava à espera do momento adequado para se concretizar. Nos comunicados emitidos nestes dias, o HTS ressalta a busca de unidade e apela a conceitos de justiça, liberdade e dignidade, evocando as aspirações revolucionárias de 2011. Prioriza também apelos a “garantir a segurança e estabilidade das regiões libertadas, evitando ações de vingança”, e a praticar “a compaixão, o perdão e o tratamento humano a prisioneiros e feridos”.
Segundo Fared Al Mahlool, jornalista sírio com vasta experiência nas áreas controladas pelo HTS, a quem entrevistamos para o jornal Público, o grupo evoluiu para um modelo mais pragmático em sua administração territorial. “Embora o HTS seja islâmico, não é extremista no sentido do ISIS. Não impõem leis religiosas rigorosas à população, como forçar as mulheres a se vestirem de uma forma específica”, explica. Mesmo assim, acrescenta que “cometeram abusos contra a população, como todas as facções, embora nos últimos anos tenham diminuído”.
Para muitos revolucionários sírios, a ofensiva tem um sabor agridoce, devido à trajetória do HTS, marcada desde o seu início pela repressão a ativistas e restrições à liberdade de expressão. Leila Al-Shami, coautora de País em chamas e uma voz destacada na revolução síria, descreve esta relação ambivalente: “O HTS é mais moderado do que em seu início, mas não são nossos aliados. Eu os apoio nesta luta, mas não no governo do país. Não têm legitimidade popular. O que vier depois de Assad será complicado, mas pelo menos sem este regime poderemos começar a construir uma alternativa, como fizemos em 2011”.
Segundo Ayham Al Sati, cofundador do Baynana, o primeiro meio de comunicação em espanhol fundado por jornalistas sírios, “a oposição atual não é a de 2011 e a sua legitimidade popular não é a mesma”. No entanto, ressalta a importância de não desestimular o papel das comunidades locais: “Muitas das pessoas que agora lutam para recuperar o território são filhos de regiões como Saraqib ou Kafranbel. Estamos vendo figuras que reconhecemos de 2011, que então lutaram contra um regime que bombardeava a sua população e agora voltam a fazer o mesmo”, destaca.
“É frustrante ouvir como o que está acontecendo se apresenta em termos simplistas, como ‘terroristas contra o regime’”, acrescenta Al Sati. “Existem grupos terroristas na Síria, mas nós, sírios, continuamos sendo sírios e merecemos, hoje, assim como em 2011, ser donos do nosso destino. Livres de todas as formas de tirania, como todos os povos merecem”.
De Sweida, uma cidade do sul da Síria com uma maioria de população de confissão drusa, saudavam os avanços da ofensiva no norte, no dia primeiro de dezembro. “De Aleppo, chegam boas notícias” e “recebemos com alegria o retorno de muitos sírios a suas cidades de Aleppo e Idlib” são duas das mensagens que vêm desta população, que havia permanecido relativamente à margem do processo iniciado em 2011 e há mais de um ano se manifesta contra o regime de Assad.
Concretamente, o representante local Hikmat al-Hiyri destacou a necessidade de pôr fim ao conflito, garantir o retorno dos deslocados e realizar uma transição política justa. Também chamou à unidade da Síria, respeitando os princípios dos direitos humanos, e pediu esforços internacionais para alcançar a reconciliação nacional.
Embora alguns vejam na ofensiva, com todas as suas contradições, um motivo de esperança, o sentimento não é compartilhado por todos. Em Rojava, a região autônoma de maioria curda no nordeste da Síria, administrada pelas Forças Democráticas Sírias (FDS) sob um modelo de confederalismo democrático, igualdade de gênero e ambientalismo, impera o desânimo. “Esta última ofensiva abre margem à Turquia para atacar Rojava com brutalidade, como tem feito há anos”, destaca um membro das FDS, cuja identidade omitimos a seu pedido.
“A Turquia nunca deixa de aproveitar para redobrar as suas agressões contra nós, usando facções opositoras para nos desestabilizar”. Um medo que cresce antes do retorno de Trump ao poder. “Em 2019, Trump permitiu que a Turquia lançasse uma ofensiva militar na região, provocando deslocamentos em massa. Por que seria diferente agora?”, questiona.
Se esta ofensiva deixou algo evidente é a nula capacidade do regime sírio de se sustentar sem a ajuda de seus aliados internacionais, particularmente da Rússia e do Irã. No atual contexto regional, marcado pelo genocídio realizado por Israel em Gaza e a campanha de bombardeios no sul do Líbano, o equilíbrio de forças mudou significativamente. Bashar al-Assad não conta mais com o apoio de anos anteriores.
O Hezbollah, um dos principais atores militares na Síria e responsável pelo assassinato de inúmeros combatentes e civis sírios, enfrenta agora uma crise profunda. Apesar de seus esforços para apresentar como uma vitória o que, na verdade, é uma perda incalculável, após os recentes ataques israelenses, o seu enfraquecimento é evidente. Investir mais recursos no fortalecimento do regime sírio não parece ser uma prioridade realista. Dito de outro modo, “não há botas sobre o terreno” que defendam o regime na situação atual.
Para compreender melhor o impacto do Hezbollah na Síria, recomendamos o artigo de Elia Ayoub, Dez coisas para saber sobre o Hezbollah, que analisa como o seu envolvimento no conflito sírio transformou tanto o grupo quanto a dinâmica regional.
O Irã, outro pilar fundamental do regime sírio, enfrenta uma profunda crise econômica. A sua elite governante sofre um forte questionamento interno, após os protestos em massa dos últimos anos. Soma-se a isto a pressão constante de Israel, empenhado a arrastá-lo para um conflito global, e o esforço do regime iraniano em se concentrar no desenvolvimento de seu armamento nuclear. Com tantas frentes abertas, a margem de manobra do Irã na Síria parece mais limitada do que nunca.
De sua parte, a Rússia atravessa momentos críticos. Com a invasão da Ucrânia consumindo os seus recursos, sua presença na Síria diminuiu drasticamente em comparação a anos anteriores. Embora o Kremlin tenha reafirmado o seu apoio ao “governo da Síria para restabelecer rapidamente a ordem” e tenha reagido bombardeando núcleos populacionais, como é a sua prática habitual, a sua capacidade de intervenção é limitada e não conta com o apoio da força terrestre para enfrentar o avanço dos rebeldes.
E qual é o papel desempenhado pela Turquia? As informações são contraditórias: há aqueles que apontam que Erdogan facilitou a ofensiva e aqueles que afirmam que foi surpreendido e superado por ela. A verdade é que não faltam tensões entre Assad e Erdogan. Assad se recusou a se reunir com o presidente turco até que este retire as suas forças do norte da Síria, e Erdogan nunca teve oportunidade melhor para desestabilizá-lo, consolidar-se como ator regional e reprimir qualquer avanço da população curda do país.
Neste contexto, espera-se que Israel também se mexa. Apesar da retórica oficial de inimizade, o regime de Assad tem sido, na prática, um vizinho cômodo para Tel Aviv. Antissionista apenas em seus discursos, Assad não fez qualquer tentativa de recuperar as Colinas de Golã em 50 anos, nem respondeu às agressões israelenses. Pelo contrário, diante de cada agressão ou ameaça, a tática de Assad foi ignorar Israel e intensificar as campanhas de bombardeios contra o norte da Síria, provocando inúmeras vítimas civis entre uma população já devastada.
Sobre os paralelismos entre as táticas do regime sírio e seus aliados russos e iranianos, por um lado, e as de Israel, por outro, o jornalista Ahmad Rahhal destacou a destruição provocada pelos recentes bombardeios contra a população de Idlib: “Tanto Assad quanto Israel se vingam rebeldes bombardeando civis”.
Uma mudança de regime na Síria poderia alterar este “equilíbrio”. Israel deixou clara a sua visão de um novo Oriente Médio, segundo a qual as fronteiras estabelecidas pelo Acordo Sykes-Picot fracassaram e se arroga o direito de reconfigurá-las. Se Assad cair, tendo em conta que os revolucionários e rebeldes sírios são por definição antissionistas, não se deve descartar que Netanyahu estenda para a Síria a sua campanha de terra arrasada. Se for assim, é improvável que a Rússia o impeça, dada a boa sintonia entre os dois estados no que diz respeito ao contexto sírio.
Será necessário observar como os Estados Unidos se posicionam com o retorno de Donald Trump ao cenário político. Durante a sua presidência, Trump manteve uma política errática na Síria, marcada pela retirada das tropas estadunidenses do nordeste do país em 2019, o que permitiu uma ofensiva turca contra os curdos e gerou deslocamentos em massa. O seu enfoque “America first” priorizou interesses estratégicos imediatos, deixando os aliados locais em uma posição vulnerável.
“A Rússia parece que está permitindo que os rebeldes sírios derrubem Assad”, declarou Richard Grenell, que foi diretor de Inteligência Nacional na administração anterior de Trump, em 30 de novembro. “Isso é grande. É hora de jogar xadrez”, acrescentou.
Todos jogam xadrez na Síria. Todos querem avançar em seus interesses à custa da população local, sequestrada há mais de doze anos por ingerências regionais e internacionais. Resta observar se as forças locais terão ou não alguma margem para continuar avançando em sua recuperação de territórios.
Segundo Robin Yassin-Kassab: “A revolução iniciada em 2011 foi esmagada, as forças locais condicionadas ou absorvidas por atores mais poderosos e autoritários. As centenas de conselhos locais para organizar a vida civil não existem mais, o país está dividido, traumatizado pelos senhores da guerra e ocupantes estrangeiros. No entanto, de imediato, parece possível não apenas desafiar, mas acabar com o fim do reinado do monstro, o que significaria que milhões de pessoas possam voltar para casa, e que a sociedade civil possa começar a se reconstituir. O futuro não pode começar até que Assad tenha partido”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O que está acontecendo na Síria? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU