01 Novembro 2024
A professora e teórica estuda a crise do estado de bem-estar em países como os Estados Unidos e como o medo da desproteção é usado para alimentar o ódio e conseguir votos.
A reportagem é de Mariona Jerez, publicada por El Diario, 30-10-2024.
Joan C. Tronto (Minnesota, 1952) é professora de Ciências Políticas na Universidade de sua cidade natal e pesquisadora centrada na ética dos cuidados e em sua relação com a política e a democracia. Ela escreveu vários livros, dos quais foram recentemente traduzidos para o espanhol e para o catalão "Democracia e cuidados" e "Quem cuida?", ambos editados pela Raig Verd. Neles, discute a necessidade de retornar os cuidados ao centro da democracia e da economia para poder viver da melhor forma possível.
Uma ode à interdependência que Tronto contrapõe com as derivas ultraliberais em auge nos últimos anos. De fato, a autora usa como exemplo a campanha das eleições dos Estados Unidos, durante a qual se viu como Trump alimentou o medo da desproteção dos cidadãos como uma maneira de conseguir votos.
Qual é a relação entre os cuidados e a política?
A política é a forma como nos organizamos para conseguir propósitos. Os cuidados têm sido geralmente pensados como algo privado, fora do reino do político. Mas, na verdade, a política deveria organizar o mundo para que possamos cuidar bem.
Que mudanças seriam necessárias para trazer os cuidados da vida privada para a vida pública?
Os cuidados devem ser tanto parte da vida privada quanto da vida pública, na medida em que requerem e criam relações. O que a política pode fazer é nos ajudar a organizar essas relações para que sejam o melhor possível.
Um exemplo encontramos em uma lei impulsionada por Tim Walz, governador de Minnesota [e candidato democrata à vice-presidência], que garante que todas as crianças recebam café da manhã e almoço gratuitos nas escolas. Esse gesto pode mudar muito as relações. Há mais igualdade, liberdade com os amigos, menos ansiedade, menos vergonha, menos estigmas...
Qual é o maior impedimento para distribuir melhor os cuidados?
A lógica dos cuidados nas economias de mercado é a de cuidar de si mesmo e pronto. Se há algo que você não pode fazer, você paga para que o façam. Se você não tem dinheiro, é culpa sua. Em muitos níveis, conseguir um bom status econômico se torna uma forma de cuidar. Mas não deveria ser assim.
A economia deveria mediar os cuidados o mínimo possível. O interesse monetário distorce nossos valores sobre o que realmente deveria nos importar e como deveríamos nos cuidar melhor. Se a saúde custa dinheiro, você estará mais interessado em ter dinheiro para prover cuidados do que na qualidade desses cuidados.
A pandemia de 2020 mudou a forma como as pessoas veem os cuidados? Tornou-os mais visíveis na agenda política?
A pandemia teve um grande efeito nos cuidados, mas foi temporário. Como a muitas pessoas aterrorizava adoecer, começaram a reconhecer até que ponto suas vidas dependiam dos trabalhadores de cuidados, sejam profissionais de saúde, de limpeza, motoristas de ônibus ou repositores de supermercados. De repente, se tornaram visíveis. De fato, isso empoderou esses grupos a demandar melhores condições de trabalho.
Pela primeira vez, uma crise sanitária tomou prioridade em relação à economia. As pessoas passaram mais tempo em casa e perceberam que havia muito trabalho no lar. Houve uma grande mudança na percepção.
Você acredita que esse aprendizado perdurará?
Em 1919, houve uma epidemia global de gripe. Mas as pessoas a esqueceram e acho que também se esquecerão desta. Os anos que se seguiram a essa epidemia são conhecidos como os loucos anos 20. Os anos que se seguiram ao COVID-19 representaram uma ‘vingança de férias’, o fenômeno de viajar sem parar, como se o fato de termos que ficar trancados durante a pandemia despertasse esse desejo. As pessoas estão gastando dinheiro em coisas fúteis porque podem e isso é uma reação ao fato de que tivemos que cuidar mais por um tempo.
E tirar mais tempo livre, neste caso viajando, não se poderia dizer que também é uma forma de cuidado? Mais concretamente, de autocuidado?
O autocuidado é egoísta. Além disso, fomos impulsionados a cuidar de nós mesmos cada vez mais, em parte, porque alimenta a economia. Cada vez mais se vivem vidas mais solitárias. E isso é prejudicial. Os humanos são animais sociais e precisamos poder viver e pensar nos outros.
Essa cultura do “you do you” [faça por você], do autocuidado, é uma forma de levar as pessoas a pensar que estão se cuidando, mas estão apenas se individualizando e gastando mais dinheiro. E isso leva ao que chamo de irresponsabilidade privilegiada: há quem pode ser irresponsável sobre suas próprias necessidades porque há outro cuidando deles. Por exemplo, muitos homens podem se dar ao luxo de parar de fazer trabalhos domésticos porque supõem que suas mulheres vão se encarregar.
Há poucas semanas foi publicado um estudo que mostrava como alguns pais tendem a usar suas licenças de paternidade para prolongar suas férias ou as faziam coincidir com eventos esportivos como a Copa do Mundo. Como podemos mudar essas dinâmicas?
Esse exemplo é muito curioso e triste. Quando se cria uma política, sempre há quem encontra formas de se beneficiar de uma maneira que não era a planejada. É isso ruim? Sim. Por isso deve-se eliminá-la? Não, porque talvez haja muitos mais homens que a usaram para investir tempo em seus filhos.
É preciso fazer campanha e tentar alcançar os jovens para ter um debate público. Pensar sobre como mudar as relações entre as pessoas mais jovens pode mudar as das mais velhas. E para isso é importante que tenham modelos de masculinidade de homens que participam dos cuidados.
De volta aos Estados Unidos, as eleições presidenciais estão chegando. Como os cuidados afetam o voto em um país com pouco estado de bem-estar?
Pode ser que os cuidados não estejam na primeira página da política, mas estão por baixo. O partido republicano se dedicou a dizer que os americanos estão desprotegidos. No livro "Estranhos em sua própria terra" (Capitão Swing, 2018), a socióloga Arlie Russell Hochschild explica que o que motiva muitas pessoas a se voltarem para a extrema direita é que sentem que foram abandonadas pelo governo.
A verdade é que não foi assim, mas eles pensam que outras pessoas estão recebendo mais do que eles e tentam proteger o que têm. E os movimentos neoliberais estão se alimentando desse medo. Em meus livros, chamo isso de a fraude da proteção, que é uma forma de instrumentalizar os cuidados. Se falamos nesses termos, estamos aceitando que há um outro, um inimigo, que não só nos rouba recursos, mas que não merece ser cuidado.
O sentimento de estar descuidado motiva essas pessoas que pedem uma América para os americanos. É uma posição negativa, visceral e enfadada da qual Trump se beneficiou nos últimos dez anos.
O que significaria uma segunda vitória de Trump para a democracia dos cuidados?
As coisas retrocederiam. Desmantelariam o estado do bem-estar, tornariam os trabalhadores mais dependentes de seus empregadores. Tudo isso levaria a uma sociedade que confiaria menos, que teria menos senso de solidariedade. E à medida que você se move nessa direção, a violência aumenta. É verdadeiramente difícil retornar de um círculo vicioso como esse.
Nesta campanha eleitoral, em quais aspectos se pôde observar o uso politizado dos cuidados?
Os republicanos se concentraram na temática transgênero, dizendo que se usa dinheiro público para comprar produtos relacionados ao processo de mudança de sexo em vez de cuidar dos cidadãos. Algo que têm em comum os eleitores republicanos é uma visão conservadora dos papéis de gênero. Assim, negar e atacar pessoas transgênero é uma forma de assegurar e solidificar sua base porque nada assusta mais os eleitores de Trump do que não ter as categorias de gênero definidas ou que os homens tenham que cuidar.
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“Nada assusta mais um eleitor de Trump do que a ideia de que um homem tenha que cuidar”. Entrevista com Joan C. Tronto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU