10 Outubro 2024
Estávamos aqui em 7 de outubro. Eu, meu marido Ohad e nossos três filhos. O mais velho, Ethan, tinha 12 anos, Yael tinha 10 e a menina tinha um ano e oito meses. Acordamos porque havia alarmes tocando por toda parte. Sabíamos o que fazer porque já os tínhamos ouvido antes. Fomos para a sala segura e logo percebemos que algo diferente estava acontecendo, pois começamos a ouvir gritos em árabe e tiros em nossa casa.
O testemunho é recolhido por Michele Giorgio, publicado por Il Manifesto, 08-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Os buracos de bala ainda são visíveis nas janelas e paredes. Depois veio o cheiro de fumaça e, do lado de fora, podíamos ver carros em chamas. Tentamos fechar a porta da sala segura, mas ela tinha um problema e não conseguimos. Ouvíamos tiros e gritos o tempo todo. E muitos, muitos foguetes acima de nós. Os alarmes começaram a soar às 6h30 da manhã e, por volta das 8 horas, meu marido decidiu sair da sala segura e nos trancar lá dentro: era a única maneira possível de fechar a porta. Do lado de fora, ele escreveu para seu melhor amigo. Perguntou-lhe onde estava o exército e lhe contou que havia muitos terroristas. Ele podia vê-los pela janela. Ele também escreveu dizendo que tinha certeza de que morreríamos, que era o fim.
Por volta das 10 horas, os terroristas conseguiram entrar na casa, jogaram granadas e conseguiram entrar na sala segura. Quatro deles. Estavam todos de uniforme, armados da cabeça aos pés. Eu estava sentada com a menina em meus braços e disse às duas crianças mais velhas que ficassem perto de mim. Eles imediatamente pegaram nossos celulares, gritavam conosco em árabe, mas também em inglês, e disseram: “venham para Gaza”.
Eu entendi imediatamente. As crianças me perguntaram: 'O que eles querem de nós? “Eles querem nos levar para Gaza.”
Eu disse a elas para gritarem por ajuda: eu tinha certeza de que o exército estava por perto. Eu tinha certeza de que a maioria dos tiros que ouvíamos vinha do exército: não podia imaginar que houvesse tantos terroristas. Mas depois de alguns minutos gritando, um deles apontou seu rifle para mim e ameaçou atirar. Ele não nos deixou escolha, então saímos da sala segura e um deles jogou um cobertor sobre mim porque eu estava de pijama.
Quando saímos, vi Ohad no chão, ele estava ferido e sangrando, mas ainda estava consciente. Perguntei a ele o que fazer. Ele me disse para ir com eles. Tentei salvar a minha menina: coloquei-a sobre ele porque tinha certeza de que não levariam um bebê. Em vez disso, eles a levaram e nos empurraram para fora da casa. Eu não me despedi. Só estava pensando em como salvar meus filhos. Do lado de fora, pediram a chave: queriam nos levar para Gaza no meu carro, mas todos os carros estavam queimando, inclusive o meu.
Estávamos na rua, esperando, e eles me filmando. Eu implorava para que deixassem as crianças irem embora e, enquanto isso, olhava ao redor para ver se havia uma chance de escapar. Mas havia muitos terroristas ao nosso redor, não podíamos fazer nada. Duas motocicletas chegaram e os homens da primeira levaram meu filho Ethan. O outro levou a mim e minha filha de dez anos, Yael. A pequenina estava chorando, então eles a entregaram para mim. Começamos a dirigir pelo kibutz. As casas estavam queimando, assim como as árvores e os carros. Eu ainda não me dava conta do que estava vendo. Eu tinha certeza de que nós éramos o “problema”: eles haviam conseguido sequestrar uma família. Atribuí o fato ao defeito na porta da sala segura. Eu não entendia, embora pudesse ver as casas queimando. E me convenci de que tudo ia acabar porque os vi gritando no walkie talkie e muitos deles saindo do kibutz. Achei que tudo se resumia ao fato de que eles haviam sequestrado uma família.
Na estrada para Gaza, estávamos nas duas motocicletas, cercados por centenas de terroristas e cidadãos da Faixa, que estavam voltando para casa após os saques. Via crianças da idade dos meus com facas nas mãos, carregando grandes TVs ou fornos de micro-ondas. Era surreal, eu não conseguia entender o que estava vendo. Tudo o que eu conseguia pensar era em como escapar. Estávamos nos aproximando cada vez mais da fronteira, e eu podia ver Gaza cada vez maior. Dois tanques do exército atravessaram os campos a toda velocidade, e centenas de terroristas começaram a entrar em pânico. Havia também um helicóptero disparando em nossa direção, e algumas motocicletas caíram no chão. Essa foi a última vez que vi meu filho, na motocicleta que continuava a avançar.
Um dos terroristas levou a mim e minhas duas filhas para um contêiner próximo. Ele apontou o fuzil para nós e disse que nos levaria para Gaza. Eu lhe perguntava: “Onde está meu walad”? Walad significa filho em árabe. “Onde está meu walad?” Ouvi um dos tanques se aproximando do contêiner, então saímos correndo - eu com a menina no colo - e fizemos sinal para o tanque, que não parou. Não podia: havia muitos terroristas ao redor. Mas sua passagem nos deu alguns segundos para fugir pelos campos. Corremos por cerca de vinte minutos, sem sapatos, de pijama. Eu estava exausta depois de ter carregado a bebê por tanto tempo. Pedi a Yael que se deitasse no chão e fingimos estar mortas, cobrindo-nos com o cobertor que tinham me dado antes de nos levarem embora. Ficamos assim por meia hora, acho, depois ouvi vozes se aproximando e entendi que nos encontrariam. Nós nos levantamos e dois homens chegaram, dois terroristas. Um deles falava inglês e nos perguntou para onde estávamos indo. Eu lhe disse que estávamos voltando para Nir Oz. Ele me disse que Nir Oz estava em chamas, que todos estavam mortos e que seria melhor se fôssemos com eles para Gaza. Ele tentou me convencer a segui-los.
Eu os observei e vi que não tinham armas. Eu disse a eles: “Vocês já levaram meu filho” e voltamos a correr nos campos. Eles não nos perseguiram: acho que estavam com pressa de voltar para Gaza porque tinham visto os tanques e o helicóptero.
Ficamos nos campos por cerca de três horas e meia. Sei que já usei essa palavra antes, mas era surreal. Eu estava correndo, com a menina nos braços. Estávamos com sede, era o fim do verão. De vez em quando, ao nosso redor, víamos terroristas, acima de nós, foguetes, e havia o som dos alarmes do kibutz - e então o vimos. Tudo estava em chamas, parecia que eu estava em um filme.
Eu estava tentando descobrir o que fazer. Decidi não voltar para Nir Oz pelos portões, porque havia muitos terroristas ali. Caminhamos ao redor do kibutz pelos campos e chegamos à parte norte. Lá, vimos um ônibus vindo em nossa direção. Hoje sei que foi o primeiro ônibus de soldados que chegava ao kibutz, depois de oito horas. O exército não estava lá. Aqui (em Nir Oz) não houve combates.
Quando os soldados chegaram, os últimos terroristas já haviam ido embora. Depois de ter levado 76 pessoas e matar, agora sabemos, mais de 54. A história é longa, interminável. Eu a encurto. Depois de 52 dias em Gaza, Ethan voltou.
Não sabemos o estado de saúde de Ohad. Nós o deixamos ferido em casa e eu tinha certeza de que eles não o levariam. Mas, depois de algumas horas, recebi uma mensagem do exército: ele não estava em casa. Não conseguíamos entender o motivo. Pensamos: ele deve ter saído para nos procurar. Talvez esteja por aí, talvez nos campos. Morto. Não tínhamos como saber. Somente no início de novembro o exército nos disse que Ohad certamente havia sido sequestrado. Ainda hoje não consigo dormir quando penso no que Ethan passou. Eu tinha certeza de que eles tratariam bem as crianças e que ele não estaria sozinho, pois havia mais 76 pessoas do kibutz.
Mas quando ele voltou, contou-nos que passou 16 dias sozinho, com os soldados do Hamas que não o tratavam bem. E não estou falando da comida: ele comia apenas uma pita e um pepino por dia, mas é possível sobreviver com isso.
Eles o obrigavam a assistir às filmagens que haviam feito com câmeras corporais. Quando chorava, apontavam a pistola para ele ou o espancavam. E lhe contaram muitas histórias: disseram-lhe que Israel não existia mais, que eu estava em Gaza e suas irmãs não. Ele ficou em quatro casas. Depois de 16 dias, eles o levaram para o Hospital Nasser, em Khan Younis: eles mantinham muitos reféns de Nir Oz lá. Essa parte também é horrível, mas fico mais calma quando penso nisso, porque ele não estava sozinho. Ele estava com outras nove pessoas em uma sala pequena, pessoas de Nir Oz, cinco crianças e cinco mulheres no total. O mais novo tinha dois anos e meio, e a mais idosa, 85.
Quando voltou, Ethan não sabia que eu estava aqui, ficou muito surpreso ao me ver. Ele entendeu que uma nova vida havia começado para ele, pois não pode voltar para cá. O kibutz não existe mais, as pessoas se foram. E eu decidi começar uma nova vida: não vivo mais com a comunidade, decidi me mudar para outro kibutz. Não é fácil começar de novo para um menino daquela idade.
Mas ele está bem e nós também. Digo a todos que sobrevivemos. Vamos nos curar fisicamente, mas não podemos nos curar até que Ohad retorne. Não sabemos nada sobre ele. Desde janeiro, não sabemos nem mesmo se ele está vivo.
Um pequeno grupo extremista em Gaza publicou imagens dele em meados de janeiro. Provavelmente datam da primeira semana da guerra, pois seu cabelo ainda estava raspado. Eles escreveram que Ohad foi morto pelo fogo do exército. Não sabemos se isso é verdade ou não, mas não ouvimos mais nada sobre ele desde então. Vivemos assim, sem saber. Essa é a parte mais difícil, as duas coisas mais difíceis de nossas vidas: o que não sabemos e o pensamento de que eles estão lá. As crianças me perguntam sobre Ohad e sobre eles, todos os dias.
Por que está demorando tanto? Ele vai voltar? Está vivo? Não tenho respostas para elas. Mas, sabendo que não tratavam bem as crianças, não quero nem pensar no que estão fazendo com os homens. Precisamos que o mundo nos ajude a trazê-los de volta, a tirá-los de lá. Do horror, dos túneis.
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“Via as casas queimando e Gaza cada vez mais perto” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU