27 Março 2025
"Pensando/sentindo o bispo de Roma como um bispo/pai "suficientemente bom" nutro em mim o desejo de exercer a difícil tarefa de ser um padre na mesma direção – um padre "suficientemente bom". O sacramento da ordem imprime caráter indelével, mas porque não é uma operação mágica, não necessariamente forja personalidade amadurecida e saudável. Isso é um processo lento, gradual e para toda vida. O caráter reclama personalidade", escreve em artigo padre Gegê Natalino, pároco da Igreja de São Daniel Profeta (Favela de Manguinhos), Rio de Janeiro, e mestre em Teologia e doutor em Ciência da Religião.
Certa vez, perguntei a uma amiga angolana prestes a se casar: "você ama seu noivo?". Ela respondeu, sem vacilar: "padre, eu amo sim, amo o suficiente para casar". Sem saber, minha amiga mergulhou na preciosa e potente noção de "mãe suficientemente boa" (ou mãe boa o bastante) do pediatra e psicanalista inglês Dr. Donald Winnicott. Tomo de empréstimo a noção de Winnicott, parida no universo psicanalítico (relação mãe/bebê), para trazer à baila a desconcertante e desafiante grandeza psíquica de Francisco como Papa "suficientemente bom".
Para maior compreensão do pensar winnicottiano, transcrevo as palavras do psicólogo Rossandro Klinjey no programa Sem Censura da TV Brasil: "A mãe suficientemente boa, como um pai, é aquele que é um dia desnecessário; ou seja, eu te educo para que você não precise de mim". E continua o psicólogo: "Então, se eu te educo para precisar de mim, eu te destruí".
O trabalho fundamental da mãe / pai / educadora / gestor / bispo / madre / padre / pastor etc., é propiciar a autonomia e não a infantilização, o aprisionamento e dependência do outro. Essa situação de castração da personalidade é mais comum do que podemos imaginar no mundo presbiteral. A meu juízo, a dinâmica psíquica de Francisco se apresenta como valioso fármaco para a saúde do sistema eclesial, que também é um sistema mental.
Na perspectiva de Winnicott, a "mãe suficientemente boa" dispensa a fantasiosa ilusão de perfeição ou infalibilidade. Na mitologia grega, Tétis, mãe de Aquiles, desejando a imortalidade/invulnerabilidade do filho quase o mata banhando o corpo do herói no rio Estige. Aquiles foi salvo porque, num instante de lucidez, a mãe o puxou pelo calcanhar – registro da vulnerabilidade. Mãe é uma coisa muito perigosa. No desejo de perfeição pode estar a nossa ruína. Jung fala do arquétipo da "mãe devoradora" – aquela que, pelo desejo de amar e proteger, aprisionado e infantiliza o filho. Mal-aventurados são os filhos e filhas entupidos de amor e proteção.
Psicologicamente falando, quando Jesus diz a Maria que "precisa fazer a vontade do Pai", podemos ler como anúncio de que nenhuma mãe pode se tornar gaiola para o filho. A Igreja, pensada e sentida como "Santa Madre" também merece ser compreendida de forma a não mergulhar seus filhos e filhas no rio da fantasia nociva da invulnerabilidade. A "Santa Madre" é também "A Igreja-instituição 'casta meretriz'", como bem reflete o artigo de Leonardo Boff. Escreve o teólogo: "tal reconhecimento é terapêutico, pois nos cura de uma ideologia idolátrica...". Nascida da Trindade, a Igreja carrega o tesouro do Cristo num vaso de argila. Pela graça, existimos, nos movemos e somos".
Ensina a canção: "Quem se diz muito perfeito, na certa encontrou um jeito insosso pra não ser de carne e osso".
Querer ser "perfeita" é caminho de frustração (para a mãe) e de limitado desenvolvimento (para o bebê). Dizendo de outro modo, mãe boa demais atrapalha. É preciso que a mãe seja boa o bastante: nem invasiva e nem evasiva. Esse tipo de maternagem promove um espaço necessário para o desenvolvimento de um indivíduo amadurecido, criativo e em busca de autonomia. Mãe ou pai que ama demais (ou de menos) faz mal ao desenvolvimento saudável do filho ou filha. Mutatis mutandis, um bispo "bom demais" infantiliza os padres, padres "bons demais" infantilizam paróquias, e assim por diante. Mas também o insuficientemente bom ou tragicamente mau priva os filhos/filhas dos conteúdos necessários à construção do eu – de um ego que suporte o peso do mundo.
O conceito de "mãe suficientemente boa" supera o ideal desastroso de "perfeição". Frustrar e não satisfazer todos os desejos e caprichos do filho ou filha permite a construção de uma personalidade saudável.
Quantos seminaristas e padres se perderam por terem sido "amados demais"? Lembro agora de um padre em que o amor excessivo do bispo arruinou a sua alma. O excesso de privilégio e proteção foi proporcional ao excesso da desgraça. Na música "O filho único", diz Erasmo Carlos: "amor demais desprotege e carinho demais faz arrepender".
Para Leonardo Boff, Francisco não é só um nome, mas um projeto de Igreja. Em chave psicológica, posso também dizer que Francisco é uma "dinâmica psíquica", uma força psicológica que desafia o "sair", o crescer e o amadurecer. Nessa perspectiva, o ódio endereçado a Francisco, em especial por parte de um segmento do clero (bispos/padres), pode ser também entendido por razões psicológicas. Francisco é um fármaco – oferta de um caminho psicológico. "Igreja em saída" implica "psique em saída" – crescimento. Quem mais odeia Francisco é quem mais necessita de Francisco.
Pensando/sentindo o bispo de Roma como um bispo/pai "suficientemente bom" nutro em mim o desejo de exercer a difícil tarefa de ser um padre na mesma direção – um padre "suficientemente bom". O sacramento da ordem imprime caráter indelével, mas porque não é uma operação mágica, não necessariamente forja personalidade amadurecida e saudável. Isso é um processo lento, gradual e para toda vida. O caráter reclama personalidade.
Os seminários, em geral, se tornaram escolas para produzir "perfeitos" e "infalíveis". O resultado dessa ilusão ou fantasia podemos aferir em não poucas situações clericais. Como mostra o filme "Conclave", um clérigo pode chegar aos mais altos postos eclesiásticos e ainda assim carecer de uma personalidade à altura da maturidade humana e crística. A propósito, para Jung a personalidade do analista vale mais que o arsenal teórico. O papado de Francisco, a meu ver, exercido da dinâmica da "mãe suficientemente boa", desafia, em especial, o clero, a "sair" rumo ao desenvolvimento da personalidade e a maturidade no âmbito da vida e da fé. Francisco é uma dinâmica psíquica humanizada e humanizadora. Quanto mais o ego amadurece, mais autônomo e criativo se torna.
Há clérigos que envelhecem e morrem sem nunca terem dito no mundo uma palavra que soe original. Em chave psicológica, o papado de Francisco exige desmame, deixar o seio, "sair". Até o fim da vida (e depois dela) Francisco pagará um altíssimo preço por ter exibido e enfatizado a mais terrível e necessária exigência da psique humana e eclesial: "sair". Diz Dom Hélder Câmara: "Partir é não rodar, permanentemente, em torno de si, numa atitude de quem, na prática, se constitui centro do mundo e da vida".
Filosoficamente, Emmanuel Levinas fala de dois tipos de "saída": uma tipo o herói Ulisses (que sai para retornar ao mesmo lugar) e a tipo Abraão (que sai e enfrenta o risco das novidades preparadas por Deus). Tradicionalistas e conservadores se enchem de temor e tremor ante o segundo tipo de "saída". Não basta dizer: "eu amo a Santa Madre Igreja". O filho só é fiel à mãe quando vai além da mãe, além do leite recebido. Lendo a dinâmica Francisco no horizonte da "mãe suficientemente boa" ou do bispo suficientemente bom, podemos esperançar o nascimento de bispos, no Brasil e no mundo, mais alinhados às grandes exigências do Vaticano II, logo, mais heroicamente dispostos à "saída" e, por esta razão, mais suficientemente corajosos para abandonar tudo que na instituição-Igreja se tornou obsoleto, ultrapassado e mórbido.
Estamos diante de desafios e decisões eclesiais que necessitam da força do Espírito, mas que não anulam a necessidade de disposições psíquicas. O "ex opere operato" reclama e ambiciona as humanas disposições, incluindo as mentais. Considerando, pois, a população presbiteral, independente do grau no sacerdócio, todos podemos ser, psicologicamente, desafiados por Francisco – um bispo/pai "suficientemente bom": nem invasivo e nem evasivo; um ser, sob ação do Espírito, capaz de amar e cuidar, e também capaz de frustrar, de promover brechas ou espaços mediante os quais podemos nos inventar como singularidades irrepetíveis que marcham, nas sendas tortuosas da história, rumo à maturidade do Cristo.
Há uma dimensão "suficientemente boa" na pedagogia de Jesus, divino mestre, que não mimou seus discípulos, mas – sem desampará-los - fez com que navegassem, rumo à maturidade, nas ondas do mar do desmame, do risco, do medo e da aventura do Evangelho. Jesus não atou seus discípulos ao seio de uma mãe leitosa. O Espírito Santo é o agente por excelência do desmame.
No âmbito da personalidade, os seminários do Brasil deveriam (e poderiam) forjar uma população presbiteral mais adulta, crítica e liberta do colo/seio da mãe. O desmame não é destruição do vínculo, mas sua afirmação num patamar mais elevado no desenvolvimento da personalidade integral. Quando um bispo (inclusive um Papa), pároco, gestor ou educador se torna "extraordinariamente bom", estraga pelo excesso (=invasivo/repressivo); quando precariamente bom, peca pela oferta escassa de conteúdo estruturante (=evasivo/fluido).
Saúde, vigor e vida longa a Francisco; mas quando chegar a hora de partir para a casa celeste, a mensagem está dada e o remédio está posto. Quando morrer, a Terra dirá: "por aqui passou um homem que honrou a Vida"! Mas, aos que vivem triste e doentiamente presos à peste do carreirismo, aos que, velada ou publicamente, sonham com a morte do Papa (e torcem para que aconteça logo), aos que vivem na busca sem medida por cargos elevados, emblemas, rubricas e penduricalhos eclesiásticos, a esses a Mãe Terra, um dia, misericordiosamente, os acolherá como estrumes necessários para o nascimento de algo que seja mais digno da grandeza do mundo.
O Papa "suficientemente bom", quando chegar a hora, pode morrer em paz. Essa não é a mesma situação daqueles que alimentam vínculos de dependência emocional na trágica ilusão de serem bons demais e, por isso, se tornam insuficientemente bons ou tragicamente maus. Consciente ou inconscientemente, promovem a castração, a dependência e a imaturidade. Esses sempre dependerão do amor infantilizado, servil e aprisionado dos seus filhos, dos seus comparsas, dos seus "queridinhos"; ou melhor, dos seus "súditos".
Parabéns, Francisco – Papa "suficientemente bom" – nem invasivo e nem evasivo, bom o bastante para quem quer crescer e amadurecer, na vida, na psique e na fé!