01 Outubro 2024
Estamos nos acostumando com tudo; nossa retina está protegida de atrocidades que não produzem uma única careta em nossos rostos.
Mas quando vemos tudo perdido, quando ninguém cede porque as ideias e as posições se tornaram inamovíveis, vem do Papa Francisco e tem um gesto, algumas palavras que transformam e inundam o coração de humanidade.
“Humilde e simples. O centro que se desloca para as periferias existenciais”.
O artigo é de José Miguel Martínez Castelló, professor de instituto no Patronato da Juventude Operária (PJO), publicado por Religión Digital, 30-09-2024.
Todos os inícios do curso são estimulantes. Numa sociedade tão complexa como a atual e dominada, até ao paroxismo, pelo consumo, assume-se como um fato natural e inesperado que o verão tem de significar um regresso com as baterias carregadas e assim mudar o estado das coisas com novos projetos e sonhos. Da mesma forma, forma-se uma necessidade em nosso inconsciente e é acreditar que as coisas, nossos problemas e questões vão melhorar. Contudo, na história esta crença se dissolve como o açúcar.
Saímos do trabalho com os mesmos problemas e voltamos a eles, mas corrigidos e aumentados. Este sentimento cresce exponencialmente se olharmos para o cenário político, para os seus palcos e testemunharmos as diferentes cenas, o subir e descer da cortina com um estupor cada vez mais crescente. Vivemos com a certeza de que se joga gasolina no fogo, de que não queremos parar esta lógica desumana que acendeu meio mundo. Estamos nos acostumando com tudo; nossa retina está protegida de atrocidades que não produzem uma única careta em nossos rostos.
Mas quando vemos tudo perdido, quando ninguém cede porque as ideias e as posições se tornaram inamovíveis, o Papa Francisco chega e tem um gesto, algumas palavras que transformam e inundam o coração com a humanidade, com aquela fraternidade que é o motor de toda ação cristã.
O Religión Digital tem ecoado essas histórias muito próximas que Bergoglio tanto alimenta e que nos fazem entender que nem tudo está perdido. Vamos mencionar algumas delas para nos enriquecermos e assim crescermos em misericórdia e em serviço, orientando tudo o que fazemos.
Não é a primeira vez que ele expressa o princípio de sua revolução silenciosa, a única capaz de alterar os rumos da humanidade: “O verdadeiro poder é o serviço. Fazer pelos outros e para os outros”. E ele insiste repetidamente com os jovens: “Façam a revolução da caridade e do serviço”. Alguém poderá objetar que palavras se levam pelo vento, mas o legado de Francisco é a sua capacidade de realizar pequenos gestos e projetos, microutopias que podem mudar esse estado de coisas viciado pela indiferença e pelo passar do tempo.
A primeira prova, o primeiro gesto revolucionário, é simples, mas com repercussões inegáveis. Durante uma audiência geral no início de setembro, ele surpreendeu a todos ao convocar cientistas do mundo inteiro para encontrar a cura do Alzheimer, pedindo apoio, envolvimento e oração. Isso não é pouca coisa. Em um mundo que descarta as pessoas idosas porque já não produzem e seu consumo é menor, direcionar a atenção para a doença que apaga a memória e o passado é um chamado de atenção frente a esse esquecimento real e ao apagamento das gerações que nos permitiram ter o que temos. Ele aproveitou para levantar a voz e apoiar as famílias que cuidam de mais de 55 milhões de doentes no mundo, número que deve subir para 75 milhões até 2030. Cuidar, dignificar e humanizar são verbos infinitos e profundos em toda a pastoral de Francisco. É a revolução silenciosa, humilde e simples do serviço, da misericórdia, onde Cristo é o centro que se desloca para as diferentes periferias existenciais.
Outro gesto que descreve a Igreja que Francisco quer é encontrado quando ele se dirigiu, no dia 22 de setembro, aos jovens e às pessoas que fazem parte do Christmas Contest, dentro do concurso promovido pela Fundação Pontifícia Cultura para a Educação. Trata-se de coletar canções inéditas de todo o mundo inspiradas no Natal. Uma iniciativa que surge a partir do nascimento de Cristo, do convencimento de que a encarnação de Deus no mundo tem um objetivo claro: a paz entre todas as culturas e nações, além de religiões, fronteiras, línguas e orientações sexuais. É um verdadeiro desafio ao espírito atual da política internacional, que é marcada pela polarização e pelo constante apontar do dedo para quem não está na mesma linha ideológica, coletiva ou partidária. Com isso, ele recupera o pulso da juventude, seu talento frequentemente silenciado, e os coloca no lugar que merecem, pois sem eles a vida se mostra sem energia e sem necessidade de mudança. A música e as vozes dos participantes devem ser testemunhas de paz e esperança. Não está tudo perdido, pois em meio ao mal e ao egoísmo predominantes, se ergue a voz da ilusão contra a doença, a guerra ou a migração forçada.
Se alguém tem dúvidas sobre como Francisco realiza sua revolução, às vezes através de pequenos gestos como os mencionados, ele também usa palavras contundentes sobre temas que não sabemos ou não queremos abordar, que sempre apresentamos com um "sim, mas não". Durante o retorno de sua última viagem pela Ásia e Oceania, ele praticou essa revolução, sem gritos ou parafernálias conceituais, indo direto ao ponto. Ante a pergunta da jornalista Anna Matranga sobre qual seria o voto mais coerente nas eleições presidenciais dos EUA, considerando temas como aborto e imigração, que são geridos como a Igreja defende, ele respondeu de forma que deveríamos ler e estudar repetidamente para saber como viver livremente segundo o evangelho. Suas palavras são impactantes:
“Ambos estão contra a vida, tanto quem expulsa os imigrantes quanto quem mata crianças. Ambos estão contra a vida. Não se pode decidir, eu não posso dizer, não sou dos Estados Unidos, não vou votar lá. Mas sejamos claros: tanto não dar aos migrantes a possibilidade de trabalhar quanto não acolhê-los é um pecado, é grave. No Antigo Testamento há um refrão: o órfão, a viúva e o estrangeiro, ou seja, o migrante. Esses três são os que o povo de Israel deve proteger. Quem não cuida do migrante comete uma falta, é um pecado, um pecado também contra a vida dessas pessoas. Celebrei a Missa na fronteira, perto da diocese de El Paso. Havia muitos sapatos de migrantes, que terminaram mal ali. Hoje há uma corrente de migração na América Central, muitas vezes tratados como escravos, pois se aproveitam deles. A migração é um direito que já estava nas Sagradas Escrituras e no Antigo Testamento. O estrangeiro, o órfão e a viúva, não se esqueçam disso. Isso é o que eu penso sobre os migrantes”.
E, sem pausa, olhando nos olhos com um olhar doce, mas preciso e profundo, ele continua:
“Depois, o aborto. A ciência diz que no mês da concepção estão todos os órgãos de um ser humano, todos. Abortar é matar um ser humano. Gostem ou não gostem da palavra, mas é matar. A Igreja não se opõe porque não permite o aborto; a Igreja não permite o aborto porque mata. É um assassinato, é um assassinato! E precisamos ser claros: afastar os migrantes, não deixá-los se desenvolver, não deixá-los viver é algo mau, é maldade. Afastar uma criança do peito da mãe é um assassinato, porque há vida. E sobre essas coisas devemos falar com clareza. 'Não, mas, no entanto…'. Nada de 'mas', ambas as coisas são claras. O órfão, o forasteiro e a viúva: não esqueçam disso”.
Em um mundo onde as barreiras e fronteiras estão cada vez mais altas, onde se descarta as pessoas que estão sozinhas, sejam menores que estão no mar em risco de vida, e onde o diálogo se torna cada vez mais difícil, quase uma expressão utópica e impossível, temos a sorte de contar com um Papa que fala claro, sem complexos, de forma tranquila, dando voz aos invisíveis e sem voz da terra. Por isso ele é incómodo, por isso exaspera, por isso querem sua cabeça em uma bandeja. Assim terminou o Batista, e a resposta de Jesus foi seguir com sua missão, curando enfermos e possuídos, pessoas com necessidades que estavam nas margens do caminho e da história. Francisco, simplesmente, tenta fazer o mesmo. Não é ele o vigário de Cristo na terra? Sua revolução continua.
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Além dos gestos e das palavras: a revolução silenciosa de Francisco. Artigo de José M. M. Castelló - Instituto Humanitas Unisinos - IHU