21 Agosto 2024
"O fato de um dos mais importantes filósofos vivos dedicar um ensaio à interpretação das Escrituras pode parecer surpreendente apenas para aqueles que não estão familiarizados com o pensamento e o trabalho de Agamben. Como autêntico filósofo, ele não segue as modas passageiras e os temas de atualidade, mas propõe uma reflexão aguda e original sobre a possibilidade, aliás, a necessidade, de aprender com a antiga arte da hermenêutica bíblica”, escreve Enzo Bianchi, monge italiano e fundador da Comunidade de Bose, publicado por La Repubblica, 17-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A interpretação das Sagradas Escrituras não pode ser considerada e abordada apenas como um problema técnico, circunscrito à mera disciplina da exegese, mas deve ser situada em um mais amplo contexto cultural e antropológico. Um contexto cultural que, dominado como é pelo paradigma do homo technologicus, aparece parcelado em uma multiplicidade de especializações, encolhido em si mesmo para satisfazer as exigências e manter os ritmos necessários à sua própria subsistência e, portanto, incapaz de grandes visões, de descortinar horizontes vastos e abertos. Um clima que, marcado pela ansiedade do curto prazo, fica restrito à exterioridade, à superfície das realidades, e que, portanto, de muitas maneiras, poderíamos definir como “angústia espiritual”.
Há, portanto, inúmeros obstáculos que tornam extremamente problemático o acesso às Escrituras como lugar produtor de sentido e esperança, inspirador de práxis, capaz de agir sobre a pessoa e sobre a vida. Essas dificuldades surgem no clima cultural predominante e também dentro da igreja. Tais obstáculos podem, por um lado, engendrar a sensação de uma falta de atualidade das Escrituras e, por outro lado, reduzir a lectio biblica a uma atividade entre muitas.
Além disso, em um mundo em que se lê pouco, se lê com pressa, se lê muitas vezes para se distrair, se lê principalmente para consumir, se lê para se informar tentando armazenar o máximo possível no menor tempo possível, a leitura de um livro exigente como a Bíblia pode ser um problema. Que a distinção na interpretação das Escrituras entre sentido literal e sentido espiritual, entre figura e cumprimento, que nos foi transmitida pela antiga leitura judaica e pela tradição cristã secular, não deve ser aplicada apenas às Escrituras, mas também à vida, o defende Giorgio Agamben, em Lo Spirito e la Lettera: sull’interpretazione delle Scritture [O espírito e a letra: sobre a interpretação das Escrituras], publicado pela Neri Pozza.
O fato de um dos mais importantes filósofos vivos dedicar um ensaio à interpretação das Escrituras pode parecer surpreendente apenas para aqueles que não estão familiarizados com o pensamento e o trabalho de Agamben. Como autêntico filósofo, ele não segue as modas passageiras e os temas de atualidade, mas propõe uma reflexão aguda e original sobre a possibilidade, aliás, a necessidade, de aprender com a antiga arte da hermenêutica bíblica, a possibilidade de “olhar para a vida como uma escritura da qual os fatos e eventos em que ela parece se resolver constituem o sentido literal, mas cujo verdadeiro sentido aparece apenas para aqueles que conseguem percebê-los como figuras de um sentido espiritual que precisa ser decifrado”.
É claro que o “Está escrito” pode endurecer-se e esterilizar-se, tornando-se letra morta e não permanecer “palavra viva e eficaz”, da mesma forma que nossa vida também pode ser a mera soma de acontecimentos banais e anedotas insignificantes ou encontrar verdade quando relida e interpretada em seu sentido último. “Como nas Escrituras, a interpretação dos fatos e episódios da vida não é outro fato ou episódio, mas seu cumprimento como profecia de um sentido espiritual”. Aqui está a expressão-chave em torno da qual gira o argumento de Agamben: “sentido espiritual”. Todo texto das Escrituras tem um sentido literal, cabe à hermenêutica trazer à tona o sentido espiritual, que não é outro, diferente, mas é concorde com o literal, “é simplesmente a plena compreensão dele”. Agamben se deixa guiar pelo exegeta por excelência, Orígenes, para quem “as Escrituras, em seu conjunto, por mais exata e minuciosamente compreendidas que sejam, não constituem, penso eu, senão os primeiros elementos e uma introdução bastante sumária em relação à totalidade do conhecimento” (João, XIII,V,30).
Ao mesmo tempo, é somente a Escritura que, quando abordada no Espírito que a inspirou, conduz o leitor para além de si mesma, introduzindo-o no “além do que está escrito” (tò hypèr à gégraptai): mas esse conhecimento é ação do Espírito que se realiza somente no leitor disposto a se deixar envolver radicalmente por ela. Orígenes escreve: “Não é dado a todos investigar o que está ‘além do que está escrito’, exceto com a condição de se assemelhar”. Assemelhar-se vai além do entender e do compreender, mas é o ato de tal qualidade de interiorização que tem o efeito de ser interiorizados pela letra que se interioriza. Dessa forma, a letra cumpre seu significado.
Para Agamben, “o sentido espiritual não é outro sentido: é a compreensão perfeita - ou seja, última - do sentido histórico: a elevação da história de que consiste a exegese espiritual coincide com a escatologia”. Além disso, para Orígenes, o reino dos céus coincide com a plena compreensão da Escritura, o Reino de Deus é a realização da interpretação da Sagrada Escritura. Não é por acaso que foi aos mestres da Lei Mosaica que Jesus dirigiu uma de suas mais duras invectivas: “Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos que estão entrando” (Mateus 23,13).
É claro que os “ai de vós” de Jesus não são maldições, mas gritos de comiseração, ao mesmo tempo em que denunciam o pecado, anunciam o juízo de Deus, aqui dirigido àqueles que detêm por profissão as chaves interpretativas da Lei, ou seja, do texto fundador da fé judaica, em vez de abrir o reino dos céus àqueles que estão entrando nele. A genialidade e a audácia do pensamento de Agamben é entender que o problema da interpretação das Escrituras (certamente as sagradas, mas, na verdade, toda escritura) coincide com a própria história da cultura contemporânea. De fato, aproximar as Escrituras à vida significa constatar como hoje desponta uma demanda urgente por sentido, que é explicitada como necessidade de significado da vida e como busca de direção, uma demanda por orientação e ordenação de toda a esfera relacional em que se articula a existência pessoal.
Em um contexto de anonimato e competitividade, despersonalização e individualismo, surge a necessidade de uma cultura da presença; da atomização e fragmentação da vida atual surge um anseio de unificação e de comunhão, a necessidade de uma referência unificadora que salve da desintegração o eu pessoal seduzido por múltiplas tentações centrífugas; ao imperativo atual da produtividade e da eficiência, ídolo ao qual é sacrificado o ser humano, se soma o gemido que anseia pela gratuidade e pela recuperação da dimensão do ser sobre a dominação do fazer; de uma situação de opulência, de abundância, de posse de muitas coisas surge a instância de simplificação, de redução ao essencial, de passagem da exterioridade à profundidade, do múltiplo ao unitário: uma instância de radicalidade. “A letra mata, mas o Espírito vivifica”, sentencia o apóstolo Paulo (2Cor 3,6), passar existencialmente da letra ao espírito, do fato da cotidiana existência pessoal ao sentido da vida de cada pessoa, da história da humanidade ao cumprimento da história. “O risco”, escreve Agamben, “é ficar aprisionados na letra nua, assim como, ao viver, corremos o risco de nos fechar na vida nua, da qual também não podemos nos desincumbir”.
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Porque ler as Sagradas Escrituras é o exercício espiritual de que precisamos. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU