18 Setembro 2024
“Ao termos abandonado formas eclesiais que, sem estrondo e barulho, assimilavam a Palavra de Deus e do Magistério, deixamo-nos seduzir por uma massificação do cristianismo pautada pela esterilidade e facilmente ideologizada, capaz de defender teses em clara rota de colisão com o Evangelho, mas exteriormente apegadas a tradições e devoções”, avalia Manuel Joaquim R. dos Santos, padre e coordenador do Clero da Arquidiocese de Londrina.
No século IV, como sabemos, as polêmicas em torno do chamado arianismo tinham o potencial de mobilizar toda a Igreja, os seus bispos e até o Imperador. Gente “do bem”, como diríamos hoje, deixava-se seduzir pela tese de que Jesus não seria eterno, nem teria a mesma natureza do Pai e que fora criado no tempo por Deus. O Concílio de Niceia, convocado e presidido por Constantino, refutou e condenou essa teoria, assim como o próprio Ário.
Nessa época, o cristianismo movia mentes e corações em discussões apaixonadas. Pastores eram exilados e retornavam ovacionados pelos fiéis, para mais tarde sofrerem eventualmente novo exílio! Era um momento em que o povo gritava elegendo os seus bispos, como no caso de Atanásio, em Alexandria, ou Ambrósio, em Milão.
Vivíamos uma conceitualização dessa nova religião, alçada a oficial do império, nitidamente elaborada a partir de recursos filosóficos greco-latinos. Despedíamo-nos, por sua vez, de um cristianismo com o odor dos evangelhos, retratado nos Atos e nos primeiros Santos Padres e avançávamos para uma religião elaborada e hegemônica, que em poucos anos substituiria o Império em decadência vertiginosa e assumiria as suas estruturas, vestes e hábitos.
A efervescência desses primeiros séculos refletia um processo natural de acomodação das várias reflexões sobre os mistérios que se celebravam e uma necessidade de, condenando visões consideradas hereges, consolidar uma versão que melhor retratasse o pensamento registrado nas Escrituras. Não é um detalhe, portanto, que os Santos Padres fossem homens por demais “ensopados” nelas! Num ambiente ausente ainda de clericalismo, fenômeno que surgiria em seguida, o povo em geral participava das discussões e tomava partido, como fazemos hoje com a política ou o futebol. A crença era, de fato, uma paixão!
A cristandade, devidamente instalada na Alta Idade Média e sucumbindo ao modus operandi de uma sociedade, agora feudal, rapidamente foi eliminando a sinodalidade e a identidade igualitária entre os batizados, priorizando a distinção entre as funções, que se revestiram com a tonalidade de casta e de classe! A estratificação conhecida, de “clero, nobreza e o povo”, não encontrou resistência na própria organização eclesial!
O latim como língua oficial, ignorado pela maior parte da população dos países que então se formavam, era mais um entrave! A Sagrada Escritura, estranha até para os clérigos em geral, passou a ser um mistério, no pior sentido do termo! O mysterium salutis virou, infelizmente, um mistério! A religião, bem orquestrada e conceitualmente pacificada, iniciava um longo período que perdurou até ao século XX, trazendo para a barca de Pedro todos os povos e nações. Nem sempre pacificamente!
Nos últimos quatro anos, fomos surpreendidos por intervenções de leigos durante as celebrações, contestando palavras do padre ou do bispo. Um fato inédito em 1600 anos! A priori, poderíamos ser levados a pensar que, após o Concílio Vaticano II ter resgatado o sacerdócio comum dos fiéis e dado protagonismo aos leigos, seria um belíssimo exercício de participação e comunhão, digna dos primeiros séculos atrás referidos. Algum pastor mais ingênuo atribuiria a essa atitude um claro sinal de maturidade eclesial! Seja como for, os episódios surpreenderam o clero e gerou um mal-estar geral.
Em primeiro lugar, não podemos ter receio de fazer a comparação. É fato que os leigos atuais rejeitam um papel passivo e se recusam a ser meros ouvintes e cumpridores de normas! O próprio conceito de autoridade, individual ou das próprias instituições, foi modificado. Poucos seguem à risca o pensamento de seus líderes, vistos em geral como “chefes” falíveis! E há décadas apenas uma minoria de católicos vem observando as prescrições, não só morais, mas outras determinadas pela Igreja. Há algum tempo, a observância cega acabou! O povo de hoje quer participar de tudo! Há uma ânsia de “sinodalidade”, tão bem captada pelo Papa Francisco. Os leigos questionam, perguntam e opinam.
Mas a comparação acaba por aí. Temos um problema sério, em meu entender. Se observarmos as ditas intervenções mencionadas, verificamos que, em geral, foram "inoportunas”! Ou seja, visaram calar o padre ou o bispo, quando este chamava a atenção para a verdade do Evangelho, denunciando situações incompatíveis com a Boa Nova ou alertando para os perigos oriundos de determinadas alienações. Foram participações que não refletiam maturidade eclesial, como seria desejável!
O combustível que moveu esses leigos a se levantarem com coragem e a interpelarem o padre não foi “parresia”! Esses homens e mulheres deixaram que a paixão por determinadas ideologias se sobrepusesse e até substituísse o seu direito adquirido pelo batismo de autêntica participação. E mais, em geral, são os mesmos que se recusam a discutir questões de fronteira que, em tese, seriam apaixonantes!
E então, constatamos que de certo modo estamos perdendo uma batalha. Os Concílios, as Assembleias, os Documentos e a palavra do Magistério não estão chegando ou não estão fecundando o coração e a mente dos cristãos batizados. Ao termos abandonado formas eclesiais que, sem estrondo e barulho, assimilavam a Palavra de Deus e do Magistério, deixamo-nos seduzir por uma massificação do cristianismo pautada pela esterilidade e facilmente ideologizada, capaz de defender teses em clara rota de colisão com o Evangelho, mas exteriormente apegadas a tradições e devoções. Eis a “coragem” que faz levantar essa gente do banco!
A sinodalidade preconizada por Francisco diz respeito a um jeito específico de ser Igreja. Porém, para que se torne uma realidade além das Assembleias, necessita do substrato emancipatório que vem pela formação e adesão! Seguidores de influencers, por exemplo, terão muita dificuldade em entender o que escrevo sobre este assunto, referindo-me aos primeiros séculos! Outrossim, o discipulado e a missionaridade fazem do leigo um sujeito semelhante aos primeiros cristãos. E então, somente então, a sua participação será profícua e legítima.
Os casos denunciados há poucas linhas denotam um laicato divorciado da caminhada eclesial. Ora, isso não pode ser considerado laicato! Eles revelam o perigo de termos leigos malformados e alienados, que entendem a sua participação como “arroubos democráticos” questionando a autoridade dos seus líderes! Assim se compreende, por exemplo, que o Papa sofra mais críticas ad intra do que ad extra! E que essas críticas, se dirijam exatamente ao que Francisco vem fazendo em termos de renovação da Igreja e ao questionamento dos modelos econômicos e sociais que atentam contra a dignidade do ser humano. Por óbvio, essa oposição não denota nenhuma “maturidade eclesial”!
Finalmente, a menção ao povo da época patrística se deu por considerar que a proximidade entre pastores e leigos (para vós sou bispo, convosco sou cristão – Santo Agostinho), devidamente vivida e celebrada em pequenas comunidades de fé, facultava aos leigos a liberdade e legitimidade de uma participação invejável. Esta mudança de época atual levanta problemas seríssimos ao devido potencial de união entre os cristãos. Contudo, se não o constatamos é porque o senso de pertença à Comunidade dos que professam o Nome de Jesus não existe ou é demasiadamente superficial para criar essa noção. Somam-se a este fator visões equivocadas de pastoreio, que são anacrônicas e contraproducentes. Com tudo isso, os nossos leigos não se levantarão do banco ou, se o fizerem, seria melhor que ficassem sentados.
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Falar nem sempre é parresia! Artigo de Manuel Joaquim R. dos Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU