14 Setembro 2024
"A característica da laicidade é a liberdade de seguir o Espírito sem estar vinculado ao incardinamento em uma estrutura organizacional. Torna-se, assim, típica da natureza do leigo uma liberdade de pensamento e movimento que possibilita a ação do Espírito, que sobre ele 'sopra onde quer', criando a novidade que diz no hoje a Palavra", escreve Michele Bortignon, em artigo publicado por Settimana News, 13-09-2024.
Michele Bortignon é orientadora espiritual leiga há mais de trinta anos. Tendo completado sua formação com os padres jesuítas, continuou adaptando os exercícios espirituais inacianos a uma espiritualidade leiga: o “Kaire!” (https://kaire-tameion.blogspot.com/)
Vivemos em uma Igreja hierárquica e ministerial: isso significa que aqueles que desejam se comprometer com algum serviço são formados, autorizados, incardinados na estrutura e recebem um ministério. Nada a objetar: uma organização funciona assim.
O ministério é promovido pela instituição para um serviço. O carisma é movido pela situação para um serviço. Ambos, ministério e carisma, se dedicam a fazer a Igreja crescer. Os carismas nascidos ao longo da história se estruturaram majoritariamente em ordens religiosas ou, mais recentemente, em movimentos leigos.
Mas, além dessas formas, há espaço para uma espontaneidade que atue na Igreja sem ser clericamente estruturada? Há espaço para iniciativas, para serviços que surgem em pessoas que se sentem chamadas a responder a uma necessidade, mas sentem também que esse serviço é todo a ser inventado, a ser experimentado começando, por ora, a fazê-lo como sabem e como podem?
Pode-se esperar da Igreja encorajamento e confiança e que o julgamento sobre essas iniciativas seja expresso olhando para os frutos e não para as autorizações obtidas? Poderia essa ser a estrada através da qual os cristãos leigos podem assumir espaços de protagonismo na ajuda ao próximo e na evangelização?
Pode-se pensar que um leigo, por falta de “profissionalismo”, seja menos adequado para falar de Deus. A experiência mostra que as pessoas sentem se você pode ser um local de encontro com o seu Senhor, habilitado por uma relação vivida, por isso à busca deles por experiência de Deus responde uma experiência de Deus vivida.
Uma preparação específica não é suficiente? É necessária, mas para dar-lhe incisividade é preciso ter uma experiência do que se está falando. A palavra de quem está vivendo a realidade dos leigos a quem se dirige, com os problemas ligados ao casal, aos filhos, ao trabalho, à situação econômica, à inserção social talvez seja a mesma, mas é o fato de tê-la vivido que faz a diferença.
O conteúdo pode ser idêntico, mas o espessura existencial é diferente; e é isso que a torna autoritativa. O leigo empenhado torna-se para os leigos o termômetro da possibilidade e da atratividade de ser cristão. Quando ele fala, ninguém pode lhe opor um “Sim, coisas bonitas, mas na realidade não é possível vivê-las”, ou um “Dizes isso porque não tens esses problemas”.
A especificidade do leigo está, portanto, na experiência das realidades do mundo, vivida por ele em primeira pessoa junto ao seu Senhor. O primeiro requisito para seu apostolado é uma experiência pessoal de Deus, nutrida em uma relação intensa a partir da vida e das Escrituras, vivida como experiência permanente de salvação. É como se Deus lhe dissesse: “Seja para os outros a partir do que você vive comigo. Não um repetidor, mas alguém que vive comigo; e a partir disso ajude os outros a viverem comigo.”
No nível existencial, batizado é quem fez a experiência de ser imerso no amor de Deus e dele emergiu nova criatura, feito filho de Deus ao encontrar Nele um Pai e em Cristo o caminho para caminhar na vida. É dessa experiência de salvação que nasce em cada batizado o impulso interior para encarnar esse amor nas situações que se encontra a viver.
Ao seguir esse impulso interior, o leigo se encontra a percorrer o caminho da fraqueza: não é dele legitimar sua atuação por um currículo de estudos ou por reconhecimento oficial da hierarquia: isso faria com que sua atuação assumisse uma configuração ordenada, uma clericalização; uma ministerialização, ou seja, contrária à índole carismática que a ação leiga deve manter.
A única validação que o leigo pode dar e tem o direito de ver reconhecida por sua ação são os frutos do Espírito que nascem do que faz. O leigo não pede, portanto, um mandato, mas um reconhecimento do que já há nele; ou a confiança no que começa a se mostrar e que, cuidado, pode crescer.
O leigo cristão é chamado a viver o apostolado valorizando aquelas diferenças que lhe dão identidade: o que não lhe é próprio não deve ser considerado um limite, mas uma indicação de que a direção certa para ele é diferente. Muitas vezes, a conotação específica que é chamado a dar à sua atuação vem de uma situação de vida que é só sua. Conotação que se expressa em algumas características específicas.
A característica peculiar da laicidade é a imersão na realidade do mundo.
No nível pessoal, os leigos têm o dever de entender a Palavra de Deus vivendo-a e de reanunciá-la com a própria vida a um mundo que, em contínuo mudança, já não a compreende. E podem fazê-lo vivendo no Espírito de Cristo as situações nas quais se encontram, constituindo assim uma reserva de sentido e esperança à qual o mundo pode recorrer quando se depara com o fracasso de suas próprias perspectivas.
No nível coletivo, a imersão na realidade do mundo confere aos leigos a tarefa de interpretar os fenômenos sociais e culturais e identificar os modos de se inserir neles vivendo-os cristianamente. Ao seu lado, o magistério deve inspirar o laicato em sua ação e ajudá-lo a discerni-la, mas não é seu papel dirigi-la: a Palavra deve se tornar ação política, social e cultural através do laicato.
Como é do Espírito, o carisma é dado por um tempo e para um propósito. Aceito e vivido, determina um ministério de fato, a ser vivido em comunhão com o ministério ordenado, que estrutura a Igreja de forma estável, para o bem comum. Se, em um primeiro momento, só você o sente agir em você de forma obscura, serão depois seus frutos a manifestá-lo e a prová-lo autêntico.
Não, portanto, em nome da Igreja age quem exerce um carisma, mas em virtude do Espírito; de qualquer forma em comunhão com a Igreja.
A característica da laicidade é a liberdade de seguir o Espírito sem estar vinculado ao incardinamento em uma estrutura organizacional. Torna-se, assim, típica da natureza do leigo uma liberdade de pensamento e movimento que possibilita a ação do Espírito, que sobre ele “sopra onde quer”, criando a novidade que diz no hoje a Palavra.
O leigo, inserido existencialmente na multiplicidade das situações da vida concreta, pode então pensar e experimentar novas formas de vida em Cristo. Os frutos então mostrarão a verdade do que está vivendo, e dessa verdade o magistério é chamado a tomar conhecimento para enriquecer a Tradição.
Também o anúncio evangélico do leigo é feito a partir da própria experiência de vida vivida com Deus, na escuta e na disponibilidade às chamadas que Deus lhe dirige dentro das situações que se encontra a viver, às vezes pedindo-lhe para romper velhos esquemas, culturais mais do que de fé.
No depósito da fé há uma verdade a ser transmitida intacta e uma verdade a ser feita emergir confrontando-a com a vida; uma verdade, esta última, que da primeira é gerada e a sua vez a enriquece. O leigo, imerso na vida em todas as suas facetas, está nas melhores condições para empregar e fazer frutificar o talento da Palavra, fazendo-a expressar nova verdade ao contato com novas situações e realidades.
E, inversamente, para ler na Palavra a verdade à luz da experiência da vida. Em uma consciência que se torna reta para poder agir moralmente, o Espírito Santo age doando criatividade para experimentar novas soluções e coragem para implementá-las. E as consequências dirão a verdade dessas escolhas.
Não apenas as Escrituras se tornam Palavra de Deus quando o Espírito Santo as une à vida das pessoas, mas a própria vida das pessoas se torna Palavra de Deus quando vivida no Espírito de Cristo. Cada situação se torna assim, para o leigo, um lugar para encontrar o Senhor, que o ajuda a vivê-la no Seu Espírito: na fé, na esperança, no amor. E se transforma assim em história de salvação. É com as histórias que nascem do viver com Deus o seu cotidiano que o leigo pode se tornar companheiro de estrada das pessoas com quem caminha.
Para as perguntas que fizemos no início – se para o leigo pode haver um espaço de protagonismo dentro da Igreja no serviço que se sente chamado a fazer –, creio que é errado aconselhar esperar receber uma resposta antes de começar a fazer: seria, mais uma vez, uma atitude clerical. Como leigos estamos na Igreja, não na hierarquia eclesial. Buscando sintonia, não um ministério.
Quem se sente chamado pelo Espírito deve começar sem demora a caminhar no caminho que, junto a Ele, irá construindo, vislumbrando na neblina apenas o passo seguinte e levando em conta dificuldades, suspeitas e resistências.
Somente os frutos lhe dirão se está caminhando no caminho certo. Certamente, junto com esse caminho, se encontrará a dar seu toque pessoal ao rosto da Igreja que está se construindo na história.
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O “espaço” para os leigos na Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU