24 Mai 2024
“Haverá um dia um bom estudante brasileiro, Gabriel Rogério Sousa, que estudará a fundo, em uma prestigiada universidade romana, no ano de Nosso Senhor de 2224, a história do primeiro século do novo milênio, 2000-2100, sobre o tema da “mudança de paradigma” no modo de considerar as mulheres na Igreja" escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, Em seu blog Come Se Non, 23-05-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Sua pesquisa ficará incompleta, mas encontraremos um fragmento precioso, que vou agora relatar”.
Sem dúvida, afirma Rogério, a aparição de Francisco como papa mudou muitas coisas na linguagem da Igreja Católica.
Desde as primeiras palavras do dia 13-03-2013, ficou claro que o centro de gravidade do discurso do magistério sofreria uma grande virada, e que, a partir daquele momento, afirma Rogério, palavras como “periferia”, “superação do clericalismo”, “Igreja em saída”, “Igreja hospital de campanha”, “primado da misericórdia”, “fraternidade universal”, luta contra o “mundanismo espiritual” e contra a “autorreferencialidade” se tornariam centrais.
As duas figuras decisivas dessa “mudança de paradigma”, argumenta Rogério, foram o “poliedro” e a “pirâmide invertida”.
Contudo, ao lado desse grande movimento de renovação, permanecia, na linguagem de Francisco, precisamente no nível de uma compreensão do feminino em relação ao masculino, o elemento de um “monólito não poliédrico” e de uma “pirâmide não invertida”, sustenta Rogério.
Os diversos registros com que Francisco havia falado da mulher, as piadinhas sobre as sogras ou sobre as solteironas, as exaltações das mães e das irmãs, as reconstruções sumárias da história e as retomadas dos princípios ontológicos atestavam, afirma Rogério, um modo de compreender a mulher profundamente tradicional e não imune a preconceitos.
Uma pesquisa sobre as “fontes” de algumas expressões permite detectar, segundo Rogério, que uma análoga leitura “clássica” se encontra, no mesmo papa, em algumas reconstruções do “ministério ordenado”, por exemplo, afirma Rogério, na parte final de Querida Amazonia.
Então, defende Rogério, não é difícil perceber que – na grande descontinuidade de palavras, atitudes e procedimentos, que emerge de numerosos atos de Francisco papa, sobre dois temas em particular, ou seja, sobre a compreensão da mulher e sobre a compreensão do ministério – manifesta-se uma dívida muito forte em relação a um imaginário pré-moderno.
De modo exemplar, uma entrevista de maio de 2024 contém uma afirmação que pode ser lida, defende Rogério, como uma síntese desses dois pontos de seu magistério.
Quando questionado sobre a possibilidade de permitir que as mulheres tenham acesso ao diaconato, ele afirma: “Se forem diaconisas com as Ordens Sagradas, não”, e acrescenta: “As mulheres sempre tiveram a função de diaconisas sem serem ordenadas”.
Essas duas frases, argumenta Rogério, só podem ser compreendidas se forem inseridas em uma longa história, tanto da visão da mulher quanto da visão da ordem. Por um lado, vemos com clareza que a mulher ainda é vista, afirma Rogério, como “desprovida de perfil público”: em comparação com as palavras de João XXIII sobre o “sinal dos tempos da mulher no espaço público”, Francisco permanece, segundo Rogério, aquém. Ele ainda está em um mundo e em um imaginário em que as mulheres “servem em privado”, não em público.
Há, depois, um segundo aspecto de destaque, ou seja, o fato de chamar o ministério ordenado de “ordem sagrada”: isso constitui, sustenta Rogério, um indício significativo de uma compreensão “sagrada” também da “reserva masculina”. A separação da ordem seria garantida, de forma não secundária, pela sua “reserva masculina”: aqui não seria arriscado pensar, sustenta Rogério, que a “pirâmide” absolutamente não pode ser invertida. Ou seja, que a “hierarquia dos sexos” é um elemento pensado por Francisco como constitutivo da tradição católica e que, por isso, ele fala da relação entre mulher e ministério segundo uma visão na qual, afirma Rogério, a mulher não pode entrar na dimensão do “serviço de autoridade”.
Mas aqui duas outras características, em grande tensão entre si, entram no julgamento sobre Francisco, afirma Rogério. Por um lado, a busca de um “serviço das mulheres”, necessário para a Igreja como “pirâmide invertida”, mas que não afete a “pirâmide não invertível” da reserva masculina à ordem sagrada. Nesse nível, defende Rogério, outra “relíquia” do passado pode ser muito útil: a possibilidade de atribuir às mulheres uma “potestas iurisdictionis”, até mesmo a mais elevada, contanto que a exclusão da ordem não seja posta em questão.
Para fazer isso, defende Rogério, pode-se voltar àquela “divisão do poder” que marcou a história medieval e moderna, e que o Concílio Vaticano II parecia ter superado valorosamente. Atribuir às mulheres muitas qualidades que a tradição atribuía aos bispos, a fim de não deixar as mulheres entrarem no “círculo mágico” da sagrada ordem (ao qual, então, nem o bispo pertencia): essa seria, afirma Rogério, uma das intenções não ocultas de Francisco.
Mas um segundo ponto é decisivo na declaração relatada naquela entrevista: o fato de que algumas mulheres foram chamadas de diáconas, afirma Rogério, ninguém pode negar. Mas considerar essas “diáconas” como “diáconas não ordenadas”, apesar de haver na história “ritos de ordenação” referentes às mulheres, que, portanto, para todos os efeitos, foram ordenadas, manifesta, segundo Rogério, uma possibilidade diferente. Ou seja, a de configurar um “diaconato feminino”, diferente daquele “reservado aos homens”, que não faria parte da “sagrada ordem”. Seria uma forma de “ordenar sem ordenar”, defende Rogério.
Sob a inspiração de pesquisas históricas bastante preconceituosas e de propostas teológicas bastante remendadas, afirma Rogério, Francisco teria pensado em reconhecer um “diaconato” para as mulheres, mas apenas entre aspas, um diaconato sem autoridade eclesial, um diaconato “honorário”, uma espécie de “diaconato honoris causa”, uma “medalha de chocolate”.
Esse modo de conceber a ordem sagrada, e não o ministério ordenado, e de pensar a mulher como excluída da esfera pública simbólica, mas integrada apenas na forma pública mais jurídica do poder administrativo, afirma Rogério, caracterizou Francisco até a manifestação de dois fatos novos.
Por um lado, uma série de encontros, desejados pelo próprio papa, justamente encontros com mulheres, e com mulheres “teólogas” e com mulheres “ordenadas” de outras tradições cristãs, que, segundo Rogério, teriam começado a mudar tanto sua visão da “sagrada ordem” quanto sua visão simbólica da “mulher”; por outro, o Sínodo dos Bispos, que precisamente em sua segunda assembleia, em outubro de 2024, teria introduzido, defende Rogério, uma leitura diferente da questão e aberto novas interpretações não só da “sagrada ordem”, mas também da posição da mulher em relação a ela.
De facto, precisamente na conclusão daquela assembleia, o Papa Francisco, tomando a palavra, tinha começado, afirma Rogério, com estas palavras comoventes: “Queridos irmãos, considerando tudo, tendo pedido muitas orações por mim e tendo rezado muito sobre isto, com muitos bilhetes colocados debaixo da estatueta de José sonhador, dei-me conta de que Deus não faz preferência entre os sexos...”.
Mas aqui o manuscrito se interrompe. Do futuro, só temos essa reconstrução parcial, fragmentária e incompleta: um pequeno traço de esperança, quase “spes contra spem”, afirma Rogério.
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Francisco e a mulher diácona: fragmentos de uma pesquisa do ano 2224. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU