Longe de ser uma fatalidade, as enchentes são a consequência de uma combinação de fatores: ocupação desordenada do solo, alta precipitação em regiões mais altas, mas também negligência, omissão, negacionismo climático e uma imensa incapacidade de articulação e prevenção por parte de gestores públicos.
A reportagem é de Gilson Camargo, Elstor Hanzen e Silvia Marcuzzo, publicada por ExtraClasse, 14-05-2024.
A chuva fina e persistente, típica de outono no extremo-sul do Brasil, começou no dia 27 de abril e logo se transformou em enxurrada, provocando alagamentos generalizados em diversos municípios gaúchos até virar a pior enchente da história do Rio Grande do Sul desde 1941.
Até o fechamento desta edição, na segunda-feira, 13 de maio, a Defesa Civil do Rio Grande do Sul havia registrado 147 mortes relacionadas ao desastre, com um saldo de 806 feridos, mais de 538.245 mil pessoas desalojadas e 127 desaparecidas – outras 77.405 estão recolhidas em abrigos.
Entre o final de abril e o início de maio, o estado, que ainda contabilizava os prejuízos e as mortes provocados pelos ciclones de 2023, viveria dias de terror, mergulhado em uma nova, porém anunciada catástrofe. De fato, uma decorrência do aumento da temperatura do planeta, mas agravado ao mau uso e ocupação do solo, negligência à legislação ambiental, omissão, falta de planejamento e articulação de governantes. Não faltaram alertas sobre a iminência de eventos climáticos extremos no estado. Afinal, nem cinco meses haviam se passado das enxurradas que varreram regiões inteiras e causaram mais de 80 mortes em diferentes pontos do RS no ano passado.
Um levantamento feito pelo próprio governo do estado já seria suficiente para uma radicalização de um plano de prevenção a desastres desse tipo. Vazado em meio à tragédia, o relatório demonstra que o número de mortos por desastres naturais, ao longo dos últimos 11 meses, foi mais de dez vezes superior ao total de mortes registradas em um período anterior de 19 anos no estado. Foram 14 óbitos provocados por eventos climáticos extremos de 2003 e 2021, enquanto que os quatro ocorridos entre junho de 2023 e maio de 2024 se aproximam de 200 mortes.
Depois da chuva intensa que caiu sem parar por mais de cinco dias em algumas regiões, 450 dos 497 municípios gaúchos e quase 2 milhões de pessoas foram atingidos por alagamentos. De acordo com a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), foram mais de 800 milímetros de água acumulada, ou seja, quase oito vezes os 112,8 mm esperados para o mês de maio.
As primeiras cidades atingidas pela tragédia foram as do Vale do Rio Pardo, com queda de granizo em Santa Cruz do Sul. Em 24 horas de temporais, 15 municípios foram alagados e a Defesa Civil emitiu alerta para toda a Metade Sul. O dia 29 de abril marcou o início da fase mais aguda da tragédia.
No Rio Grande do Sul, boa parte das áreas urbanas foi erguida em regiões de banhados ou próximas de margens de cursos d’água. Muitos municípios ocupam planaltos e vales, áreas sugestivamente denominadas ‘planícies de inundação’. Na primeira ocorrência conhecida logo no começo das chuvas, uma casa atingida por um raio, em Taquara, pegou fogo. Diante da persistência do mau tempo, o Instituto Nacional de Metrologia (Inmet) emitiu alerta vermelho de chuvas para todo o estado.
No dia 30, em Paverama, as primeiras vítimas fatais das tormentas: dois homens morreram dentro de um carro que foi arrastado pela enxurrada. Ao final do dia, já eram oito mortes. Estradas foram bloqueadas e começaram a se multiplicar vídeos nas redes sociais, mostrando pessoas, casas, pontes e animais sendo arrastados pela correnteza. A queda de um trecho da BR-290, em Eldorado do Sul, marcou o início do bloqueio viário, deixando regiões inteiras isoladas. Várias cidades foram imediatamente cobertas pelas águas por estarem na confluência dos rios que cortam a Região Metropolitana e que saíram das caixas, indo sobrecarregar o Guaíba, caso de Eldorado do Sul e Canoas.
Após décadas de flexibilização e descumprimento às leis ambientais e sem dar atenção aos alertas sobre os riscos iminentes de tragédias em escala devido ao aquecimento global, o Rio Grande do Sul chegou ao final de abril em estado de flagelo, capturado pelo negacionismo climático. Como sempre acontece em momentos como este, não faltou quem preferisse atribuir a tragédia não ao aquecimento global, mas a uma fatalidade, guerra ou desígnio divino.
Sempre envergando colete da Defesa Civil, o governador do estado fez relatos sobre a tragédia para a imprensa e apareceu em uma live pedindo ajuda ao presidente Lula. Em outras gravações, Eduardo Leite (PSDB) ponderava que a chuva veio muito rápido e “nos” surpreendeu, mais ou menos na linha do que afirmara quando dos temporais que arrasaram os vales no ano passado.
Leite defendeu alterações na legislação ambiental, o que gerou manifestações contrárias de ambientalistas. Mesmo assim, o novo Código Estadual do Meio Ambiente foi sancionado com cortes em 2020. Para o governador, a Lei “teve como base amplas discussões que envolveram sociedade e instituições e alinharam o estado às leis federais”.
Junto com o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), o governador disse em uma live nas redes sociais durante a manhã de sexta-feira, 3, que a perspectiva do poder público, naquele momento, era de que o cenário de tragédia ambiental se agravasse no Rio Grande do Sul. “Serão dias difíceis. Pedimos que as pessoas saiam de casa. O nosso objetivo é salvar vidas. Coisas serão perdidas, mas devemos preservar vidas. Nossa prioridade é resgatar as pessoas. Em relação ao restante, nós daremos um jeito posteriormente”, afirmou Leite. De fato, o pior ainda estava por vir.
Em Porto Alegre, o rompimento de um antigo esquema de proteção contra cheias, o qual, de acordo com ex-técnicos da prefeitura, nunca recebeu manutenção, se rompeu na sexta-feira, 3 de maio, inundando o centro da capital e no 4º Distrito. A única saída possível de Porto Alegre naquele momento era a RS-040. Com boa parte do sistema de tratamento de água inoperante, em razão do alagamento das estações de bombeamento de água bruta, a capital precisou suspender o abastecimento em boa parte do município. Outros equipamentos falharam nos dias seguintes, levando a enchente a outros bairros, como o Menino Deus e a Cidade Baixa. Em meio ao caos, no domingo, o prefeito chegou a sugerir que os porto-alegrenses fossem para a praia para fugir da enchente.
“A prefeitura foi negligente, deixou de atender às necessidades da cidade”, afirmou Augusto Damiani, engenheiro aposentado, ex-diretor-geral do Departamento de Águas Pluviais (DEP), extinto pela administração de Nelson Marchezan, e ex-diretor geral do Dmae. Em uma live que circulou em meio à tragédia, ele diz que a situação na capital foi agravada devido à falta de manutenção do sistema de drenagem. Hidrólogo e mestre em recursos hídricos, Damiani diz que o mau gerenciamento foi agravado com a extinção do DEP, cujas atribuições foram transferidas para o Dmae, e muitos trabalhos de manutenção deixaram de ser feitos ou não foram bem realizados. Ele cita que existem problemas identificados há tempo. Um deles é que a casa de bomba 17, que fica próxima à Igreja das Dores e estourou na terça, 7, inundando a Cidade Baixa, está com um defeito desde 2018 e não consegue reter a água que vem do Guaíba.
Damiani, que trabalhou 37 anos na prefeitura, explica que o Muro da Mauá é um complexo de 14 comportas que necessitam de manutenção periódica. “É preciso que elas corram pelos trilhos, tenham as borrachas ajustadas, os parafusos colocados com pressão para que fechem totalmente, mas isso não foi feito”, aponta. Quanto à rede de esgoto pluvial, ele diz que há tempo falta mão de obra para fazer reparos básicos.
“Os parafusos das tampas estavam arrebentados e, mesmo assim, não foram substituídos, um problema identificado em setembro de 2023. A prefeitura não fez o seu serviço, como trocar parafusos e colocar borrachas de vedação”, aponta. Damiani estima que faltam 2 mil funcionários no Dmae.
De um total de 12 enchentes registradas em Porto Alegre desde 1873, a deste ano foi a que inundou a sua maior extensão territorial devido ao aumento vertiginoso do nível do rio Guaíba.
Em uma época na qual não existiam esquemas de proteção contra as cheias, as águas do rio chegaram a 4,75 metros em 1941, no que havia sido a pior enchente da história. Em 2023, o rio subiu a 3,46 metros, o que exigiu o fechamento das comportas da Mauá. Desta vez, no entanto, o pico ultrapassou os 5,35 metros, permanecendo acima de 5,2 metros até o dia 9 de maio, quando as águas começaram a baixar lentamente em todos os rios do estado.
No Vale do Taquari, uma das regiões mais destruídas pela terceira vez em menos de nove meses, o rio Taquari, entre Estrela e Lajeado, ultrapassou 33 metros, altura equivalente a um prédio de 10 andares. Outro Vale, o do Rio Pardo, também foi ferozmente atingido pelo dilúvio em terras gaúchas. Em Sinimbu, uma das cidades mais afetadas da região, a prefeita Sandra Backes (Democratas) descreveu a destruição como “cenário de guerra”. “A cidade está completamente destruída. Não tem mais comércio, não tem mais indústria, não tem mais emprego e todos os prédios públicos foram atingidos”, relatou em vídeo nas redes sociais da prefeitura.
O advogado e dono do jornal Tribuna Popular, de Sinimbu, Paulo Dhiel, 53 anos, contou que, nos mais de 30 anos em que ele vive no município, nunca havia visto tamanha destruição. “A velocidade e intensidade da água impressionaram muito. Em poucas horas, a enxurrada chegou a 1,64 metro aqui na nossa rua, inundou todo o primeiro andar da sede do nosso local de trabalho. Aqui ao lado, onde a gente mora, abriu uma cratera de 30 por 25 metros em pouco tempo. Uma tragédia como em uma guerra. Estarrecedor”, relatou. “Agora é reagir e remover os rastros das camadas de lama.”
Distante a cerca de 200 quilômetros de Sinimbu, São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre, tem 217.409 habitantes. Ao menos 180 mil moradores do município (82%) foram impactados pela catástrofe e precisaram buscar acolhimento em casas de amigos e parentes ou em abrigos do poder público, segundo a prefeitura. O próprio prefeito, Ary Vanazzi, teve sua casa submersa. “Perdi coisas materiais e a minha história”, resumiu. A água do Sinos extravasou por cima de um dos diques de contenção na noite de sábado, 4, inundando das regiões Norte e Oeste até a estação da Trensurb, na avenida João Corrêa.
O jornalista Fábio Nagel, 57 anos, está entre os 180 mil que foram expulsos pela fúria da enchente no dia 4 de maio. “A água veio muito rápido e forte. Às 6h, saí para pegar pão no mercadinho, ela estava no meio-fio. Cinco minutos depois, estava na canela e em uma hora tomou o térreo do prédio. Às cinco da tarde, tivemos que ser resgatados de barco quando a água já estava quase no segundo andar no nosso prédio”, narra.
Ele, a mulher e os dois filhos estão na casa de amigos em uma região alta da cidade, que ficou sem abastecimento de água potável durante três dias – graças a uma manobra feita por técnicos do Serviço Municipal de Água e Esgotos, São Leopoldo foi a primeira cidade da região a restabelecer o fornecimento, no dia 7. “Nunca presenciei uma enchente que chegasse na primeira rua do centro de São Leopoldo. Tenho uma foto de 1966 com a minha mãe bem em frente à igreja matriz, as águas chegando a esse ponto. Mas nada parecido com a intensidade que aconteceu desta vez”, destaca Nagel.
“O que vocês viram pela tevê não chega nem perto de tudo que estamos vivendo, mercados vazios, ruas cheias e um silêncio de quem tenta engolir o choro. A angústia da procura de parentes, animais, segue. Perdi as contas de quantos pedidos de resgate recebemos. A energia que está em nossa cidade é pesada, triste. Impossível não estar assim. São sonhos, lutas, histórias, e vidas perdidas”, afirmou a jornalista Camila Capelão Vargas.
A maior catástrofe climática do RS interrompeu os serviços essenciais, deixando mais de 1,5 milhão de pessoas sem energia elétrica e sem água potável por dias. A ponte da BR-116 sobre o Rio dos Sinos foi interditada junto com outras centenas de rodovias. Ao mesmo tempo, quem não estava isolado pela enchente e se deixou levar pelo medo do desabastecimento correu para os mercados. Itens básicos como água, frutas, verduras, ovos, frango sumiram das gôndolas. Em um abrigo de Novo Hamburgo, ao assistir na tevê uma entrevista do governador, uma mulher criticou: “Está fazendo o que sabe fazer, falar bonito”.
Para o doutor em Ciência Política e professor João Pedro Schmidt, a tragédia é resultado de um modo de produção e consumo insustentável adotado em larga escala, impulsionados nos anos 1950, aliados ao aquecimento global. Além dos países ricos, maiores emissores de gases de efeito estufa ao longo da história, ele atribui a crise à ação de cientistas negacionistas e atores do sistema financeiro que lucram muito com essa lógica.
Ganhador do Nobel da Paz em 2007, o pesquisador, climatologista e um dos fundadores do Instituto de Estudos Climáticos da Universidade Federal do Espírito Santo, Carlos Nobre, pontua que os fenômenos ocorridos no RS são resultado da destruição ambiental em larga escala no planeta.
“Desmatamento, uso de combustíveis fósseis e produção do agronegócio são os grandes responsáveis pela emissão de gases causadores do aquecimento global”, resume, lembrando que a ciência já comprovou a relação entre esses fatores e os desastres naturais.
Nobre destaca que o sistema de previsão meteorológica consegue antever fenômenos extremos por meio de sofisticados modelos matemáticos. “Esses modelos previram alto nível de precipitação em diversos lugares do Rio Grande do Sul, acabou chovendo 800 milímetros em seis dias. Essas informações foram repassadas pelo Cemaden ao governo do RS”, assegura.