13 Mai 2024
Cidade da região metropolitana de Porto Alegre passa pela terceira enchente desde 2023 — esta é de longe a pior delas
A reportagem é de Pâmella Atkinson, publicada por Agência Pública, 12-05-2024.
Destroços nas ruas, águas em bairros inteiros, lama, resgates, tumultos, medo e insegurança. Este é o cenário nas ruas de São Leopoldo, região metropolitana de Porto Alegre. A cidade se soma aos 431 municípios gaúchos atingidos pelo temporal que assolou o estado. Números que por si só já são alarmantes, mas a urgência aumenta quando nomes, vozes, rostos e histórias são acrescentadas à maior calamidade do Rio Grande do Sul.
Não é a primeira vez que os moradores de São Leopoldo passam por enchentes. Em junho e novembro de 2023, o comerciante Adenir Ferri, de 49 anos, também teve sua casa atingida. “A água foi mais baixa, foi mais simples. Conseguimos levantar os móveis, depois voltamos para casa, limpamos, tocamos a vida, compramos o que tinha estragado, pintamos a casa… tocamos a vida normal”, relembra. Agora, a situação foi mais grave. A água quase atingiu o teto da casa, a força foi tanta que o impacto dos móveis e objetos levados pela enchente estragou o forro da residência.
Dentro da casa ainda alagada, o comerciante Adenir Ferri, de 49 anos, busca o que salvar de seus pertences. Durante a noite ele trabalha em uma pizzaria de São Leopoldo, e agora usa os dias para tentar reconstruir a vida que foi levada pela força da água. Uma vida que não será mais a mesma, que agora está marcada pelo medo e insegurança de viver o pesadelo novamente.
“Aqui está o meu quarto. Eu vou limpar, vou pintar, vou mobiliar e deitar aqui de novo. Agora eu não vou mais me sentir seguro aqui. Teve água até o teto, eu não vou mais dormir tranquilo aqui. A minha vontade agora é de ir para o lugar mais longe possível de qualquer rio, córrego, valão, longe da água. Foi muito traumatizante, foi muito difícil. A água subiu muito rápido aqui e a gente não conseguiu fazer nada, nada… só conseguiu sair”, conta o morador da Frederico Mayer, Feitoria.
Eram quase 17h do sábado, 4 de maio, quando a enchente começou a invadir a rua Potteinstein. Às 19h, quando a faxineira Eliani Queiroz saiu de casa, a água já estava no pátio. Há quatro dias, a moradora volta para casa todos os dias na tentativa de reconstrução, realizando limpeza e tentando salvar seus pertences. “Da cozinha deu para salvar o fogão, da sala a TV e do quarto o que sobrou foi um cobertor”, conta Eliani. A água atingiu praticamente todo o primeiro andar da casa em que mora há 4 meses, no bairro Feitoria.
Ao mostrar os estragos deixados pela água, Eliani puxa uma toalha de banho vermelha com uma grande mancha marrom do topo de uma pilha de roupas molhadas e explica, “As roupas todas aqui para lavar, uma mais manchada que a outra. As que estão em cima estão menos sujas”. O caminho pela casa não vem acompanhado de menos estragos, as marcas da água nas paredes ultrapassam 1,5 metros.
Eliani é uma das 395,6 mil vidas gaúchas que precisaram deixar seus lares para fugir das águas da enchente, segundo dados da Defesa Civil.
Uma tragédia que assola também sua família. Seus irmãos, também moradores da região, precisaram sair às pressas. Suas casas foram totalmente tomadas pelo volume da água, que mesmo com a baixa do nível do rio, segue dentro das residências de muitos moradores. Foi na sexta-feira, dia 3 de maio, que a água invadiu a casa da irmã, que buscou abrigo com Eliani. No sábado, todos precisaram sair da região e encontraram refúgio na casa de parentes de cidades próximas, Esteio e Sapucaia.
Na casa da faxineira, o momento é de reconstrução. Na terça-feira, 7 de maio, Eliani começou a limpeza de tudo o que sobrou. A principal preocupação no momento é com a contaminação pelo o que a água deixou. “Mais é o perigo da água, as doenças, a sujeira que vem junto. Já as coisas materiais, vamos fazendo mutirão, vamos vendo, vamos nos virando para reconquistar. Eu quero mais é saúde pra todo mundo”, fala com esperança a moradora.
Na hora de contabilizar perdas, há aquilo que se pode recuperar e aquilo que não volta mais. Adenir, que é estudante, buscava entre as águas seus materiais de aula, cadernos e anotações. “Eu tô caminhando pra cá e pra lá, já devo ter pisado em cima […] Eu não achei meu caderno, o meu computador molhou, eu não encontro minha CNH, meu RG… coisas antigas da família que eu guardava, nada restou”, suspira. Na rua, Adenir encontra uma caneta esferográfica, que reconhece como sua. Durante a entrevista, ele carrega a caneta no bolso, quase como uma espécie de símbolo, algo para se apegar em meio ao caos. “Minhas plantinhas morreram todas”, avalia com tristeza o comerciante, em meio a estimativa de danos.
Entre aqueles que perderam tudo, a dor se mostra maior sobre aquilo que não se pode recuperar. Márcia Adriana Matteus, 54 anos, lamenta entre lágrimas a perda de registros importantes da sua vida e da sua família. “O pior não é os bens materiais, eu estou há três dias entrando aqui, meus diplomas estão todos ali, todos molhados. Minhas fotos de infância, minha vida, meu passado, toda a minha história. Estava tudo aqui dentro, fotos dos meus filhos quando eram pequenos, fotos da minha mãe que já faleceu, fotos de quando eu era criança. Eu não consegui recuperar nada, está tudo molhado… É a história da gente que não tem como recuperar, móveis a gente recupera, a gente trabalha de novo e consegue”.
Márcia também perdeu tudo, a água subiu até mais ou menos um metro do segundo andar da casa onde vive sozinha na rua Celso Thomaz Cunha Justo, na Feitoria. Dois de seus três filhos, que vivem na região, também perderam tudo. O mais novo, de 23 anos, estava construindo a vida, havia mobiliado a casa há dois meses. “A gente pensa, como é que vai pagar agora? Ele trabalha de motoboy, perdeu tudo. Ficou só com a geladeira”, relata a mãe.
A força da enchente, tornou o cenário irreconhecível “Não sobrou nada, quebrou tudo. Está horrível, parece que entrou um monstro dentro de casa”, conta Márcia, que saiu de casa ainda na quinta-feira, 2 de maio.
No sábado em que a água invadiu a Feitoria, a prefeitura municipal decretou situação de calamidade pública na cidade. Na madrugada, o Rio dos Sinos, que corta e abastece o município, atingiu a marca de 8 metros e 20 centímetros, um recorde histórico.
Aproximadamente 180 mil habitantes da cidade foram afetados direta ou indiretamente pelas cheias. Destes, cerca de 12 mil encontram-se alojados em abrigos do município, e estima-se que mais de 100 mil pessoas estejam desalojadas. Os outros 88 mil cidadãos que tiveram que deixar seus lares, buscaram abrigo em parentes e amigos que moram nas regiões não afetadas ou nas cidades próximas. Os dados são da prefeitura, que conta com 88 abrigos catalogados até o momento, que acolhem também 2,8 mil animais resgatados.
Um estudo do ClimaMeter, coletivo internacional de cientistas que analisa extremos meteorológicos logo após sua passagem, revela que a crescente nos estragos não é à toa. As mudanças climáticas causaram um aumento em 15% nas fortes chuvas que assolaram o estado do Rio Grande do Sul. Isso ajuda a explicar a catástrofe histórica que o RS enfrenta, um fenômeno sem precedentes. A pesquisa utiliza dados demográficos de padrões climáticos do final do século XX (1979 a 2001), comparando-os com as primeiras décadas do século XXI (2002 a 2023).
Apesar das águas do Rio dos Sinos seguirem baixando, a previsão é de mais chuva até domingo, 12 de maio. O alerta é para que as pessoas em regiões atingidas fiquem atentas ao nível da água, que pode voltar a subir. Até o fechamento desta matéria, a medição do Rio dos Sinos em São Leopoldo era de 5,73m às 12h do sábado, baixando 1cm por hora.
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São Leopoldo: a cidade gaúcha onde quase todos perderam o lar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU